Consumo em alta, mudanças climáticas e lei antidesmatamento pressionam preços da bebida mais popular do Brasil e do mundo
O mundo está bebendo mais café do que é capaz de produzir. Isso aconteceu em 2023 e pode se repetir este ano, com os efeitos das mudanças climáticas sobre as safras nos principais países produtores. Consumo em alta, falta ou excesso de chuva e a expectativa sobre a nova lei antidesmatamento da União Europeia pressionam o preço do café para níveis historicamente altos.
Líder mundial na produção e exportação de café, o Brasil enfrenta a seca de maior extensão e intensidade dos últimos 70 anos, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Temperaturas mais altas, estiagem prolongada e chuvas esparsas atingem as maiores regiões produtoras em Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo.
Os efeitos dessa nova pressão sobre uma das bebidas mais populares do mundo já podem ser sentidos no bolso. O preço médio do café tradicional torrado e moído estava, em média, R$ 39 no varejo em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro em agosto, segundo levantamento mais recente feito pela Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC).
Só em 2024, o café torrado e moído acumula 25% de alta, segundo o IPCA.
Quebras de safras e picos de preço não são novidade na trajetória histórica de uma das commodities mais comercializadas globalmente. O ingrediente novo, desta vez, talvez seja o agravamento das condições climáticas e as incertezas sobre o futuro das regiões produtoras em um momento de expansão da cultura do café.
O hábito vem se expandindo em países asiáticos e economias emergentes, e pressionando a demanda. Além disso, o mercado de cafés especiais está crescendo e o interesse dos consumidores nesse tipo de grão também.
Incerteza sobre clima
Embora seja uma commodity, o café guarda peculiaridades que o diferencia das demais.
Os grãos se dividem entre as espécies arábica e robusta e seus preços são fixados de forma diferenciada, conforme território de origem e qualidade. As safras se caracterizam pelo efeito da bienalidade: um ano se produz mais e no seguinte, menos. O Brasil responde por mais de um terço da produção, seguido por Vietnã e Colômbia.
O café é uma planta sensível, que requer condições específicas de altitude e chuvas regulares para a produção.
Em 2024, ano em que deveria produzir mais, o Brasil deve colher uma safra menor do que a esperada por conta de estiagens, chuvas esparsas e mal distribuídas, e altas temperaturas durante as fases de desenvolvimento dos frutos. Há incerteza se as chuvas previstas para outubro e novembro serão capazes de mitigar esses efeitos.
“A falta de umidade em decorrência do longo período sem chuvas já prejudica o desenvolvimento da safra 2025/26 de arábica e de robusta – as plantas estão debilitadas e o déficit hídrico nas regiões produtoras tem se intensificado”, preveem os analistas do Cepea, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/USP.
É pouco provável uma reversão do quadro atual e a expectativa sobre uma quebra de produção contribui para a manutenção dos preços altos.
Grande produtor do tipo robusta, o Vietnã enfrenta as consequências de um tufão e uma seca severa, a pior em uma década. Isso abriu espaço para que outros países, incluindo o Brasil, aumentassem suas exportações da espécie, de sabor mais amargo, com teor de cafeína maior, utilizada em blends e nos cafés solúveis.
É o terceiro ano seguido em que os estoques mundiais do grão estão em baixa.
“O café idealmente é produzido em altitudes mais altas e com algum grau de sombra. Há muito investimento em tecnologia e hoje os cultivos estão avançando para o cerrado, para Rondônia. Há espécies diferentes sendo produzidas. Mas a água ainda é um elemento fundamental”, observa a economista Luiza Dulci, autora de uma tese sobre a produção de café em Minas Gerais.
Café pouco, minha xícara primeiro
Além da oferta reduzida e do consumo em alta, a nova legislação antidesmatamento da União Europeia é outro ingrediente a causar pressão sobre os preços do café. As novas regras buscam reprimir a importação de commodities ligadas a desmatamento e entrariam em vigor em janeiro de 2025.
O Brasil e a União Europeia vêm travando uma disputa sobre o tema e a expectativa é que este prazo seja adiado para dezembro de 2025. A Comissão Europeia concordou em dar mais tempo para os exportadores se adaptarem, mas a proposta ainda precisa passar pelo parlamento europeu.
“O café é o quarto produto da balança comercial, abrigando 330 mil produtores, sendo 280 mil de pequenos cafeicultores, sendo produzido em 1983 municípios de 16 estados”, argumenta, em nota, o Conselho Nacional de Café. A preocupação é se os produtores brasileiros de café, em especial os pequenos, serão capazes de atender às novas regras. Há incerteza sobre o que de fato será exigido.
Essa imprevisibilidade gerou uma corrida pelo café brasileiro, adicionando mais uma fonte de pressão sobre os preços.
As indústrias de torrefação europeias estão ampliando seus estoques.
Entre janeiro e setembro, as exportações brasileiras para a Alemanha cresceram 70,8%, seguidas por Bélgica (+131,5%) e Itália (+47,3%). Somando os países do bloco, a União Europeia representou quase 60% dos embarques de café brasileiro entre janeiro e setembro de 2024.
Como se vê, são muitos os fatores que se relacionam entre si e a mudança em um deles pode ter um efeito-cascata em toda a cadeia. Não é tarefa simples entender o que tem tornado a bebida mais cara.
O café, como toda commodity, tem seu preço definido nas bolsas de Nova York e Londres. Mesmo os pequenos produtores são afetados pela volatilidade e por movimentos especulativos.
Há um longo percurso entre a colheita dos grãos ainda verdes e o ponto em que vertemos a água e uma mágica acontece em nossa xícara. Neste caminho, há um elemento tão poderoso quanto invisível: as forças do mercado. É o que está por trás das regras de um jogo assimétrico em que o agricultor que colhe o grão e enfrenta os maiores riscos é o que menos ganha.
O paradoxo do café
Brasil, Vietnã e Colômbia respondem, juntos, por mais de 60% dos cultivos de café. Os grãos são exportados ainda verdes e torrados nos países importadores. Isso significa que os países produtores ganham a menor fatia do bolo, por terem se especializado na etapa mais barata desta cadeia.
Em contrapartida, Suíça, Alemanha e Itália controlam as etapas de torrefação e industrialização. Juntos, esses três países respondem por 95% do comércio dos produtos industrializados à base de café.
O exemplo mais evidente dessa assimetria são as cápsulas. Estima-se que os torradores de café recebam até 80% do valor do grão, enquanto os produtores ficam com cerca de 4%. Há ainda a figura dos traders, que exercem grande influência sobre o mercado.
“Eles geralmente compram contratos futuros de café de vendedores estrangeiros e os revendem para clientes estrangeiros, o que significa que o café nem sequer chega a tocar o solo suíço. Os membros da Swiss Coffee Trade Association lidam com mais de 50% das exportações globais de café”, explicam Uallace Moreira Lima e Keun Lee, autores de um artigo sobre o tema publicado recentemente no Seoul Journal of Economics.
Essa assimetria tornou-se conhecida como o “paradoxo do café”.
“O Brasil tinha um monte de empresas torrefadoras médias e pequenas que foram quebrando ou sendo compradas por grandes empresas nos últimos 30 anos. Hoje a principal no Brasil é a Três Corações”, explica Luiza Dulci.
A liderança no mercado nacional começou a ser desenhada há cerca de vinte anos, quando a empresa brasileira uniu-se em uma joint venture com a gigante israelense Strauss Group, um conglomerado de atuação global que detém desde marcas que vão desde água mineral, até snacks. Joint venture é quando duas empresas compartilham recursos, como dinheiro, tecnologia ou expertise, mas continuam como entidades independentes. Dividem os riscos, os lucros e o controle do projeto.
Com isso, a Três Corações expandiu sua atuação para outras regiões do país, comprando marcas que lideravam mercados regionais, como Café Manaus, Brasileiro, Pimpinela, Iguaçu e Letícia, além de ter investido em máquinas de café e cápsulas – segmento dominado pela Nespresso, da Nestlé. São, no total, trinta marcas de café sob controle da Três Corações e da Strauss.
A Strauss aparece em quinto lugar na lista das dez maiores torrefadoras do mundo em volume de grãos processados. No topo da lista estão Nestlé (Suíça), JDE (Holanda), The J. M. Smucker Company (Estados Unidos) e Starbucks (Estados Unidos). Completam o ranking Lavazza (Itália), Melitta (Alemanha), UCC Ueshima Coffee (Japão), Tchibo Coffee International e Massimo (Alemanha) e Zanetti Beverage Group (Itália).
Os dados são da edição de 2020 do Coffee Barometer.
Segundo o ranking divulgado pela Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), as cinco maiores indústrias de café do Brasil são, pela ordem, Três Corações e Strauss, a JDE (Pilão e L’or), Melitta, Maratá e Camil (União, Seleto e Bom Dia).
Em janeiro deste ano, a holandesa JDE comprou o segmento de cafés e chás da sergipana Maratá. Entre as cinco maiores empresas com capacidade de processamento no Brasil, apenas uma é nacional.
Brasil foi de país líder a mero espectador
Por liderar a produção de café, o Brasil pode impactar o mercado globalmente. Entretanto, a capacidade de influenciar o preço hoje é limitada ou mesmo inexistente. Mas nem sempre foi assim.
O Brasil exerceu um papel de liderança nas iniciativas de regulação global e controle dos estoques de café ao longo do século 20. Esses esforços culminaram no primeiro Acordo Internacional do Café, em 1962, que criou uma nova política reguladora baseada na faixa de preços e em cotas de exportação.
O acordo vigorou por cerca de vinte anos, baseado na convergência de interesses e na cooperação internacional, até ser totalmente abolido em 1989. “A partir daí houve perda do controle nacional sobre a produção de café e a entrada de um conjunto de intermediários ganhando cada vez mais”, explica Dulci. “Quando temos alta nos preços, efeitos das mudanças climáticas, a gente não consegue agir enquanto país porque há outros sujeitos que controlam essa cadeia.”
Este não foi um movimento isolado, mas parte de uma tendência de concentração e internacionalização de alimentos por corporações, em um contexto global de promoção do livre comércio e de desregulamentação da economia.
Com isso, os estoques saíram do controle dos Estados nacionais para ficar nas mãos de algumas poucas corporações.
“Superar barreiras requer intervenções direcionadas na forma de políticas industriais, capacitação e impostos de exportação no café não processado em países emergentes, respostas às barreiras comerciais e até mesmo fusões e aquisições de marcas estrangeiras. Outra opção radical seria formar um cartel de café semelhante à OPEP, unindo três a cinco países que lideram a produção de café”, sugerem Moreira Lima e Lee, no artigo já mencionado.
Devido à variedade de climas, relevos, altitudes e latitudes, o país produz tipos variados de café. Nos últimos anos, o Brasil vem cultivando grãos de alta qualidade, além do chamado café commodity.
A demanda maior pelos chamados cafés gourmet e especiais, e por cadeias de produção mais limpas e sustentáveis pode ser uma oportunidade para o Brasil retomar seu protagonismo.
Há muitas discussões em curso sobre as assimetrias deste mercado e a necessidade de remunerar os produtores de forma mais justa. Resta saber se serão capazes de produzir mudanças estruturais ou se tornarão mais um nicho de mercado.