Senadores pedem também inclusão de embutidos na lista de produtos com 60% de isenção, e tentam até a alteração do conceito de “alimento in natura”
Em tramitação no Senado, a reforma tributária já recebeu mais de 1,7 mil emendas. Algumas delas, articuladas por ao menos 10 senadores, favorecem a indústria de refrigerantes e de alimentos ultraprocessados. Uma análise do Joio encontrou dez emendas que pedem a retirada das bebidas açucaradas da lista do imposto seletivo, que elevará a taxa sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente.
E não é a única contra-ofensiva da bancada aliada à indústria de ultraprocessados. Outras emendas pedem que alimentos com conservantes e antioxidantes sejam considerados “in natura”, o que possibilitaria a entrada na cesta básica, com isenção total de imposto. Há ainda senadores pedindo a entrada de embutidos, como salsicha, mortadela e salames, na lista de produtos com redução de 60% na alíquota.
Entre os senadores investigados pelo Joio estão Zequinha Marinho (Podemos/PA), Luis Carlos Heinze (PP/RS), Fernando Farias (MDB/AL), Vanderlan Cardoso (PSD/GO), Marcos Rogério (PL/RO), Rosana Martinelli (PL/MT), Mecias de Jesus (Republicanos/RR), Efraim Filho (União/PB), Dorinha Seabra (União/TO) e Izalci Lucas (PL/DF). Em comum, todos eles integram a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que abraça também os interesses da indústria de alimentos.
Essa sintonia é escancarada há anos. A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), por exemplo, faz parte do Instituto Pensar Agro, que “defende os interesses da agricultura”e presta assessoria à FPA. A Associação Brasileira de Proteína Animal (Abpa), que representa as processadoras de carnes, fez parte da articulação contra a adoção de sinais de alerta na parte frontal dos rótulos.
Em 2019, quando deputados federais e senadores lançaram a Frente Parlamentar Mista de Alimentação e Saúde, Alceu Moreira (MDB/RS), então presidente da FPA, comemorou. “É um novo braço da Frente Parlamentar da Agropecuária e trabalha com outro vértice, que é a alimentação, a saúde. Esse conceito vai levar o agro para o consumo, para o centro urbano”, disse à época.
Não à toa, representantes da indústria de ultraprocessados foram convidados, por senadores, ao menos cinco vezes para reuniões no Congresso, entre setembro e novembro deste ano. No dia 10 de setembro, João Dornellas, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), e Paulo Rabello de Castro, da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), foram chamados para debater o tema “Cashback e cesta básica nacional” – duas questões presentes na reforma tributária. Quem presidiu a sessão foi o senador Izalci Lucas, da FPA. No último dia 25, foi o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (Abir), Victor Bicca, quem participou de uma audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça.
Dornellas e Rabello já se manifestaram publicamente a favor da inclusão de embutidos na cesta básica. Em março, quando participou de audiência pública na Câmara dos Deputados, Dornellas questionou a ciência, ao chamar de “fracas” as pesquisas que ligam o consumo de ultraprocessados ao desenvolvimento de uma série de doenças. Ele participou de outras duas reuniões no Senado referentes à reforma tributária – em outra delas, quando o tema era “comércio internacional agropecuário”, a Abia enviou uma diretora.
Entenda
A primeira etapa da reforma tributária, aprovada em 2023, previu a possibilidade de criar impostos seletivos sobre produtos nocivos à saúde. O que se está decidindo agora é o escopo de produtos sobre os quais pode incidir essa tributação especial. Entre os alimentos, a proposta do Ministério da Fazenda do governo Lula previu a criação de um imposto sobre bebidas açucaradas, de forma específica, e não sobre ultraprocessados como um todo. Caso isso seja aprovado no Senado e na Câmara, será necessária a apresentação de um projeto de lei para definir as alíquotas.
Veja abaixo as emendas que mais beneficiam os ultraprocessados e a indústria de refrigerantes.
Por uma cesta básica menos saudável
O senador Luis Carlos Heinze assinou a mais escrachada das emendas: apagar os trechos da reforma que preveem, na cesta básica, “privilegiar alimentos in natura ou minimamente processados” e “consumidos majoritariamente pelas famílias de baixa renda”. A emenda não fala, em nenhum momento, qual a importância em suprimir os dois critérios. Em sua justificativa, o senador aborda de forma rasa a composição da cesta – e se apega bem mais à questão da revisão periódica das políticas tributárias, previstas no mesmo artigo, mas não na parte suprimida por ele.
“Qualquer decisão sobre a composição da cesta básica nacional deve ser fundamentada em critérios científicos consagrados e nas melhores práticas internacionais (…) alinhada com padrões globais de saúde e bem-estar, especialmente aqueles definidos por organizações internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)”, diz o texto.
Há quase dez anos, a OMS recomenda o consumo de alimentos in natura ou minimamente processados – e relaciona a ingestão de ultraprocessados ao desenvolvimento de doenças crônicas, como hipertensão, obesidade e diabetes. Em 2019, a FAO reuniu um documento com evidências robustas contra o consumo de ultraprocessados.
“Estudos do início do ano mostram que os ultraprocessados estão ligados a 32 tipos de doenças. A gente tem visto aqui, tanto na Câmara no primeiro semestre, quanto no Senado um exercício de negacionismo cientifico, eu diria, sobre os males relacionados aos ultraprocessados”, defendeu Marcello Baird, da ACT, durante audiência na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, no Senado. “Para melhorar o texto atual precisamos só tirar alguns itens que não sei por que ficaram, como macarrão instantâneo e lasanha congelada, na alíquota reduzida.”
“Ainda fomos muito conservadores com os ultraprocessados. Me preocupa principalmente a questão das crianças, tem aumentado diabetes, obesidade e aumento de peso em crianças e adolescentes. Se nós adultos consumimos 20%, em média, de ultraprocessados por dia, as crianças de 2 a 5 anos já consomem 30%. A Califórnia, por exemplo, tem proibido a produção de diversos aditivos e a venda em diversas escolas, como corantes e etc”, disse.
Apesar dos dados, em outra emenda, Heinze tenta uma estratégia diferente. Ele pede aos colegas para acrescentarem, no parágrafo único do Artigo 132, um novo quesito para que um alimento não perca a condição de in natura: “concentração ou adição de conservantes ou antioxidantes para manter a integridade do produto”.
Parece até piada, já que um alimento deixa de ser in natura quando recebe algum aditivo químico. Mas não para Heinze e outros quatro senadores. Zequinha Marinho, Mecias de Jesus, Rosana Martinelli e Dorinha Seabra protocolaram a mesma emenda, com exatamente o mesmo texto. “A adição de conservantes ou antioxidantes garante a integridade e segurança dos produtos alimentícios, preservando suas qualidades nutricionais e evitando desperdícios”, defendem, todos se valendo de uma redação idêntica.
Outras emendas ainda sugerem o acréscimo de ultraprocessados na cesta básica. Rosana Martinelli e Mecias de Jesus querem colocar bolachas sem recheio, do tipo água e sal, enquanto Zequinha Marinho e Dorinha Seabra pedem a inclusão de massas prontas recheadas. Os argumentos são os mesmos: garantir a segurança alimentar da população, com preços acessíveis, e a diversidade de produtos na mesa dos brasileiros.
No texto final aprovado pela Câmara dos Deputados, as massas prontas estão na lista dos produtos com 60% de redução na alíquota.
Embutidos em promoção!
Nessa mesma lógica, o senador Luis Carlos Heinze protocolou uma emenda para acrescentar embutidos, como mortadela, salsicha, linguiça, apresuntado e presunto, na lista de produtos com 60% de desconto na alíquota. “Embora não sejam considerados os mais saudáveis, para muitas famílias de baixa renda, eles representam uma das poucas fontes de proteína acessíveis. Torná-los mais baratos pode ajudar a garantir que essas famílias não sofram de deficiências nutricionais, o que é fundamental para a saúde pública”, diz a emenda.
Outros quatro senadores (Zequinha Marinho, Vanderlan Cardoso, Rosana Martinelli e Mecias de Jesus) também pediram a inserção desses produtos, mas de forma disfarçada (Heinze também protocolou emenda semelhante). Em suas emendas, eles mencionam apenas a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) dos produtos, categoria usada para fazer o enquadramento tributário: 1601.00.00, 1602.31.00, 1602.32.10, 1602.32.20. 1602.32.30, 1602.41.00 e 1602.49.00. Uma pesquisa rápida mostra que os códigos abrangem os embutidos já mencionados (presunto, mortadela, etc) e nuggets.
Os parlamentares não se deram nem ao trabalho de justificar por que esses alimentos deveriam estar na lista de 60% de desconto na alíquota. Eles mencionam apenas outros alimentos requisitados por eles: leite condensado, creme de leite, molho de tomate e salmonídeos. Segundo eles, os itens são muito consumidos pelos brasileiros e apresentam benefícios à saúde.
Em defesa dos refrigerantes
Para fechar com chave de ouro, a maioria dos senadores pesquisados, com exceção de Dorinha Seabra e Izalci Lucas, pediram a retirada das bebidas açucaradas da lista do imposto seletivo – ou imposto do pecado. Em linhas gerais, todos eles defendem os mesmos argumentos: os refrigerantes não têm culpa pela taxa de obesidade no Brasil, sobretaxar os produtos seria uma punição aos brasileiros, e a indústria, além de ser economicamente importante, ainda se esforça muito para reduzir o consumo de açúcar no país – já que substituíram o açúcar pelo adoçante, com os produtos “zero açúcar”.
“A indústria promete, estabelece metas que elas mesmas fiscalizam, depois usam para publicidade: refrigerante zero açúcar! Eles criam soluções pouco eficientes para a saúde. Trocaram o açúcar por adoçante, que também faz mal; a gordura saturada por gordura trans – não preciso nem dizer os malefícios disso”, disse, em entrevista ao Joio, Maria Laura Louzada, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Segundo a argumentação de Zequinha Marinho, por exemplo, as “justificativas não se aplicam ao Brasil, o que torna desnecessária e discriminatória a criação de um imposto seletivo direcionado às bebidas açucaradas”. Diz ainda que “há uma clara tentativa de ‘vilanização’ do açúcar”.
Outros senadores, como Vanderlan e Heinze, seguem nessa mesma linha. E eles usam dados para explicar por que a regra não se aplica ao Brasil.
“Segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF/IBGE, as bebidas açucaradas representam apenas 1,7% da ingestão calórica média do brasileiro. Noutro passo, 56,3% do consumo de açúcar no Brasil decorre da adição manual no preparo final de alimentos, em casas, bares e restaurantes, açúcar este que foi incluído na cesta básica; de acordo com o Ministério da Saúde, por meio da pesquisa VIGITEL, no Brasil, de 2007 a 2023, o consumo de refrigerantes caiu 51,8%, enquanto a obesidade aumentou 105,9%”, justifica Marcos Rogério, ecoando um argumento batido da indústria de refrigerantes.
“Com fundamento nas pesquisas acima citadas, é possível afirmar que a sobretaxação de bebidas açucaradas não resolverá o problema da obesidade no país. Muito pelo contrário, os efeitos de tal tributação serão extremamente prejudiciais aos interesses da sociedade, na medida em que impactará o bolso do consumidor, assim como a renda dos comerciantes informais, dos mercados, dos restaurantes e da indústria, o que certamente terá reflexos nos postos de trabalho de tais setores”, conclui.
É o mesmo argumento usado por Victor Bicca, presidente da Abir, durante a mais recente audiência no Senado. “Dados do Vigitel, do Ministério da Saúde, mostram que a obesidade cresceu no Brasil 105,9%, desde 2017, o que é preocupante. Em contrapartida, a frequência do consumo de refrigerantes caiu 51,8%. Ou seja, não há uma correlação direta entre o aumento da obesidade e o consumo de refrigerantes, porque vem caindo anualmente”, disse.
Ele também lembrou de outro ponto mencionado em algumas emendas: a indústria já tem feito muito pela redução da obesidade, embora não seja responsável por isso. “O setor de alimentos retirou 144 mil toneladas de 5 categorias de alimentos. Isso não existe no mundo, só o Brasil fez, com o Ministério da Saúde. E a Anvisa fez um estudo no ano passado que demonstrou que, desses cinco setores, o que mais avançou na redução do açúcar foi o setor de refrigerantes, que ficou 37% além da meta. Ou seja, já há um trabalho de reformulação, para buscar um solução pra obesidade mesmo que não haja uma correlação.”
A solução para os senadores é outra: em vez de pesar a mão nos impostos, basta criar campanhas de educação alimentar e alertar sobre os prejuízos à saúde que os refrigerantes trazem. Heinze, por exemplo, diz que “a educação e a conscientização têm o potencial de mudar comportamentos de maneira mais sustentável, respeitando ao mesmo tempo a autonomia dos cidadãos”. O curioso é que o próprio senador já apresentou, em 2009, um projeto de lei para retirar os alertas de transgênico das embalagens do produto — e, como deputado federal, já votou contra a exigência destes rótulos.