Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Governo Lula, ano três: distante do povo e do mercado, mas com uma última chance

Congresso deixou transparecer que sempre foi sobre luta de classes, e nada mais. Já o presidente da República talvez tenha a oportunidade derradeira de reatar laços com a população e deixar um caminho para a rearticulação da esquerda

Já sabíamos que seria o outono do patriarca. Um Congresso Nacional virado no whey protein das emendas secretas e na testosterona das redes sociais. Um presidente da República fragilizado e pertencente a outro tempo histórico. Um Partido dos Trabalhadores distante dos trabalhadores e enfeitiçado pelo canto de sereio da Faria Lima. As forças de esquerda alijadas de qualquer espaço efetivo de poder. Mesmo jogando as expectativas para o nível do pré-sal, o fato é que o governo Lula 3 está saindo pior que a encomenda, a ponto de ser difícil imaginar que exista um Lula 4 – e, se existir, talvez seja preferível não ver. 

Mas o fundo do poço resolveu provar, mais uma vez, que sempre há uma saída. Convenhamos: a História ofereceu ao PT mais chances de redenção do que qualquer um poderia querer. As marchas de Junho de 2013, a reeleição de Dilma, a reviravolta na vida de Lula, para mencionar apenas alguns momentos-chave nos quais um cavalo encilhado se apresentou, mas teve de seguir viagem sem cavaleiro, porque faltaram ao partido coragem, independência ou interpretação de conjuntura para enfrentar alguns interesses de poucos em benefício de muitos. 

O baile histórico do Congresso Nacional oferece a Lula mais uma bifurcação. A derrubada do decreto a respeito do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e dos vetos sobre a conta de luz, bem como a recusa em discutir a progressividade do imposto de renda são demonstrações muito concretas de um esgotamento das relações. Escrevo esse texto em cima de um bocado de wishful thinking e algumas evidências políticas de mudança de rumos, em especial a decisão do governo em politizar a proteção dos privilégios relacionados a impostos e às renúncias fiscais. 

Há uma diferença notável na comparação com outros momentos de crise: o patriarca está à beira do precipício e, se finalmente olhar para baixo, nos verá aqui, vivendo mais de uma década à espera de uma corda de salvação. Já não cabe a Lula decidir pela via da conciliação: deputados e senadores o lançaram para fora da sala, e anunciaram o que sabíamos. Sempre foi sobre luta de classes, e nada mais. 

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O pragmatismo diante da bifurcação

“Não há correlação de forças”: essa consigna pragmática foi a justificativa para tudo o que se fez, e especialmente para o que se deixou de fazer em Lula 3. Não podemos enfrentar os interesses de qualquer setor corporativo, não podemos promover os direitos das crianças, não podemos avançar na agenda da equidade racial e de gênero. Não podemos nada. O mercado é o único a ser escutado, seja diretamente, por André Esteves e outras figuras que se arrogam uma espécie de interpretação do interesse geral, seja indiretamente, pelos emissários do lobby que capturaram todos os espaços de tomada de decisão. Manter o Planalto fechado para a participação social seria a chave para o sucesso. 

Em tese, segurarmos a respiração até a rouxidão das bochechas seria o necessário e o suficiente para nos mantermos vivos dentro do serpentário. Mas eis que não apenas nós fomos picados, como os ministros, um a um, e o próprio Lula prova do veneno que tanto tentou evitar. 

Os vinte anos de existência institucional do lulismo foram sustentados pela fé de que as elites aceitariam entregar um quinhãozinho de nada se pudessem manter o todo. Como toda fé, essa despenca de uma só vez diante da demonstração de que não só essas elites querem tudo para si, como não têm problema em tomar na mão grande o pouco que conseguirmos juntar. É da História do Brasil: eles não comem arroz com feijão, mas ficam ultrajados com a possibilidade de que comamos. 

E é esse ponto que Lula pode ter desconsiderado em seus cálculos para a volta ao Planalto. Ele parecia realmente acreditar na capacidade quase santificada de conciliação, como se fosse o único ungido com capacidade de pacificar um país impacificável. Como se tivesse a destreza para sobreviver quatro anos com uma faca espreitando o pescoço. 

O petista se prontificou a ser um cozinheiro incansável, pronto para entregar um banquete perene de emendas para os parlamentares, privilégios para o mercado financeiro e cofre aberto para o agronegócio. Em troca, poderia entregar a nós o que sobrasse na despensa palaciana. Exausto após dois anos e meio de uma comilança insaciável, ele tem diante de si uma trupe de convidados que não só reclama da temperatura da comida, como arrota à mesa e pede cada vez mais: essa gente não tem educação. 

Os tempos mudaram. Um conciliador já não é necessário. Jair Bolsonaro foi o ponta de lança de um experimento sobre os limites da capacidade de um povo em suportar, na era das redes sociais e das fake news, uma situação para lá de insuportável – inclusive, pagando com a vida dos próprios familiares. Em suma, essas elites já não precisam de um intermediário que amorteça as tensões da desigualdade, e o massacre na Palestina concretiza o discurso de que um bocado de morte é até bom. 

Entre dar marcha a ré e manter a crença na marcha inexorável do progresso humano, os bilionários do mundo fizeram uma escolha clara: que morram vocês, porque nós não abriremos mão de um único jatinho. Resta a Lula fazer sua escolha. 

Em comparação com o começo do século, essa casta também mudou de composição. Bilionários têm brotado do chão em velocidade cada vez maior. A elite brasileira, sempre sabuja, segue expressando-se pela boca e pelos gestos de hugos mottas da vida – mas hoje está, inegavelmente, submetida a uma elite global, formada por muito ricos que não têm problema em dizer a que vêm: sugar todo e qualquer trocado que encontrarem pelo caminho. Afinal, não sabemos quanto tempo resta de capitalismo. Ou pelo menos das condições materiais que foram os pilares desse sistema. 

O orgulho que essas pessoas demonstram da própria selvageria é uma vantagem, seja para Lula, seja para a sociedade, pelo menos no que diz respeito à capacidade de expor privilégios e discutir os rumos do planeta. Jeff Bezos e o casamento multimilionário em Veneza, Elon Musk e a pilhagem de dados do Estado à luz do dia, Mark Zuckerberg e a defesa incondicional de um mundo branco, hétero e machista, são oportunidades para mostrarmos que, se deixarmos o mundo na mão dessa gente, não há plano B, nem C, nem D: vamos todos, em vida, experimentar os sete círculos do inferno. 

Em casamento multimilionário em Veneza, Jeff Bezos exibe o orgulho que as elites têm de sua própria selvageria. Foto: Reprodução

Diagnósticos encastelados

Ainda na fase de campanha, Lula deixou saber a seu entorno que estava surpreendido com o poder das notícias falsas: ele não imaginava que fossem capazes de causar tanto estrago, a ponto de haver ganho a eleição contra Bolsonaro por um fio de cabelo. Foi um sinal marcante da dificuldade do patriarca em ler o cenário. E, sem ler o cenário, ele perde toda a capacidade de ação sobre a qual construiu uma trajetória de vida singular. 

Já empossado, mostrou que tampouco imaginava a perda de poder do presidente da República e o consequente gigantismo do Congresso. Em janeiro de 2025, deu mais um sinal de falha grave na interpretação dos sinais. A justificativa para a demissão de Paulo Pimenta, titular da Secretaria de Comunicação Social, foi de que o problema central do governo estava justamente em comunicar-se melhor: muita coisa estava sendo feita, mas a população não vinha sendo devidamente informada. 

Uma mentira contada na frente do espelho, talvez porque seja muito doloroso admitir que este é um governo de realizações frágeis. Mesmo que tudo estivesse às mil maravilhas, o melhor cenário seria o da reedição de medidas que funcionaram vinte anos atrás e que, portanto, já não fazem sentido para essa sociedade, tão transformada em relação àquela. 

Mais uma vez, chamo atenção para o caso do ministro de Desenvolvimento Social. Não que Wellington Dias tenha um desempenho particularmente pior que o de seus pares, mas talvez porque ele habita uma área para a qual olhamos com atenção: as políticas sociais e a promoção da segurança alimentar nutricional. Uma área que deveria ter um funcionamento bem diferente do Ministério da Agricultura, sempre nas mãos de ruralistas. Ou do Ministério da Indústria, sempre permeável ao empresariado. 

Quando escrevi um texto semelhante a esse, mas sobre o primeiro ano do governo Lula, falei sobre as parcerias de Wellington Dias com empresas como a Coca-Cola para supostamente criar empregos. Na época, disse como o governo estava distante da sociedade e perto das corporações. Hoje, nem isso: o que há é uma tentativa mais ou menos avulsa, quixotesca, de agradar a uma ou outra corporação – mas elas, como conjunto, já esfregam as mãos à espera de Tarcísio de Freitas. Nessa vontade avulsa, o ministro foi mais longe, recebendo o Prêmio Unidos pelo Brasil diretamente das mãos da fabricante de refrigerantes.

Ministro de Desenvolvimento Social, Wellington Dias, recebe prêmio da Coca-Cola. Imagem-síntese da decisão de agradar corporações em detrimento de políticas sociais e de promoção da segurança alimentar nutricional. Foto: Roberta Aline/MDS

Se há 11 anos os petistas ganhavam das Nações Unidas um prêmio por tirar um país inteiro do Mapa da Fome, o que tem pra hoje é um afago no ego por uma corporação com um histórico grotesco de manipulação de evidências científicas e de danos à saúde humana. Uma cena tão patética quanto sintética. 

A razão de trazer o holofote sobre Dias é, também, a centralidade que suas ações deveriam ter para a sobrevivência política de Lula e para a articulação do governo com a população. Afinal, desenvolvimento social demanda diálogo com a sociedade – e a Coca-Cola e organizações financiadas por ela não representam a sociedade.

Não resta qualquer dúvida de que o enfrentamento da inflação de alimentos, algo que envolve várias áreas de governo, deveria ter sido tratado como uma prioridade. Qualquer um que escutasse as ruas teria notado o pavor e a tremenda insatisfação que esse tema desperta. 

Tampouco há dúvida de que o enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional – este, um tema da alçada diretamente de Wellington Dias – deveria repetir a agenda de vinte anos atrás, mas também precisaria ser muito inovador, porque essa fome tem novas facetas. Entre elas, uma mudança estrutural no mundo do trabalho que jogou aos trabalhadores o custeio dos próprios direitos, para alegria de corporações como Uber, iFood e companhia. O ministro não parece oferecer qualquer perspectiva de inovação, em parte porque escuta pouco a quem deveria escutar. 

A exemplo de Lula 1 e 2, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) tem oferecido um leque de políticas públicas a serem adotadas. Se vinte anos atrás os ultraprocessados nem sequer tinham esse nome, hoje são um problema concreto, que afeta crescentemente as famílias pretas e pobres, e nessa área o Brasil tem em mãos os melhores pesquisadores e as melhores organizações do mundo, dispostos a promover uma agenda completa de desestímulo ao consumo desses produtos. 

A essa altura tampouco resta dúvida de que o agronegócio não apenas não alimenta a nossa população, como é um fator agravante da fome, na medida em que produz comunidades expulsas de suas terras e substituição do plantio de alimentos por produtos para exportação. 

E esse é o espaço de observação mais interessante do comportamento de Lula, a meu ver. Nos dois primeiros mandatos, ele atendeu a todos os principais pleitos do setor, que assistiu a uma explosão no uso de terras para produção de commodities e ao surgimento dos campeões nacionais – a JBS é hoje a maior empresa de alimentos do mundo muito mais pelos favores governamentais que recebeu de Lula do que por uma capacidade mágica dos irmãos Batista. 

Ainda assim, o agro foi articulador do golpe contra Dilma, entusiasta da prisão de Lula e fiador de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Não resta qualquer dúvida de que teria aderido alegremente à ditadura proposta pelo ex-presidente caso o golpe de 8 de janeiro tivesse ido adiante. 

No começo do governo, Lula demonstrou em público, algumas vezes, a ilusão de que seria capaz de dobrar o agro: não com tensionamento, mas com adesão irrestrita aos desejos do setor. Decidiu erigir a COP 30 sobre a mentira de que o Brasil consegue produzir alimentos sem devastar seus biomas. E cá estamos nós, diante de um patriarca que parece não se convencer de que não importa o que faça, jamais terá o apoio desse setor. 

É bem verdade que um presidente que ouse abrir a boca contra os privilégios dos ruralistas pode ter vida curta. Mas, a essa altura, é de se perguntar de que vale uma vida longa em condições tão adversas. 

Lula, por enquanto, caminha para terminar o terceiro mandato com uma biografia menor do que tinha. Ele poderia usar o ano e meio que resta para, ao menos, ajudar a abrir uma picada por onde a esquerda e a centro-esquerda possam caminhar – e, por que não dizer, as forças democráticas que tiverem restado. Tensionar com alguns setores e começar a discutir um projeto de futuro são necessidades. Bem como é preciso que ele admita algo que sempre relutou em admitir: o patriarca é finito, e seu inverno particular chegou.

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