Supremo Tribunal Federal deve decidir se Anvisa tem poder de regulamentar o setor. Lobby de grandes empresas tenta postergar ainda mais a decisão
Uma novela que se arrasta por quase quinze anos pode estar próxima do fim. O Supremo Tribunal Federal (STF) pode julgar neste semestre uma ação relativa à regulamentação da publicidade de alimentos no Brasil. O relator, ministro Cristiano Zanin, agendou para 26 de agosto a realização de uma audiência pública sobre o caso. O desfecho, no entanto, segue imprevisível.
No centro dessa trama está a resolução de diretoria colegiada (RDC) 24, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), resultado de um intenso processo regulatório que colocou em campos opostos o setor produtivo e organizações de defesa da saúde e da infância.
A normativa determina que a publicidade de alimentos com alto teor de açúcar, gorduras e sódio deve identificar essa informação de forma clara em peças publicitárias, além de conter um aviso de que o consumo em excesso aumenta o risco de danos à saúde, como o desenvolvimento de obesidade, diabetes e doenças do coração.
Regulamentar a publicidade desses produtos poderia ter colocado o Brasil entre os países que se tornaram referência na proteção da saúde infantil e na promoção de hábitos saudáveis. Isso aconteceu mais tarde no Chile e no México, e, mais recentemente, no Reino Unido, onde as restrições à publicidade e às práticas comerciais também enfrentam o lobby da indústria de alimentos e produtos ultraprocessados.
Publicada em 2010, após quase cinco anos de discussões e negociações, a resolução foi alvo de pelo menos 11 ações judiciais e jamais pôde ser colocada em prática. Além da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), outras organizações moveram ações contra a RDC 24, como a Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Cacau, Amendoim, Balas e Derivados (Abicab) e entidades ligadas ao mercado publicitário, como a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) e a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e TV (Abert).
Agora, quinze anos depois, a resolução terá sua validade avaliada pelos ministros do Supremo. A expectativa é que a Corte defina se a Anvisa pode ou não estabelecer regras para a publicidade não só de alimentos, mas também de medicamentos.
Uma outra resolução da Anvisa, que criou normas para os remédios, é alvo de questionamentos semelhantes – a RDC 96, de 2008. Em ambos os casos, o principal argumento mobilizado pela indústria é a ausência de competência legal da Anvisa e a defesa de que apenas o Congresso Nacional poderia legislar sobre o tema. Ou seja, a agência teria extrapolado suas atribuições ao criar essas regras.
“Essas duas resoluções estavam sendo questionadas desde a primeira instância por associações diferentes e ambas chegaram ao Supremo razoavelmente no mesmo tempo. Estavam na mesma turma, com sinalização de vitória para a Anvisa”, conta Eloisa Machado, advogada e consultora da ACT Promoção da Saúde.
A organização atua no caso como amicus curiae, instrumento que garante a participação de entidades da sociedade civil em processos judiciais de questões relevantes e de grande impacto. Além da ACT, foram admitidos o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), a Fundação do Câncer, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Instituto Alana, assim como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), representando o setor produtivo.
“Uma série de ações chegaram na primeira instância e foram sendo julgadas, algumas favoráveis, algumas contrárias. A Anvisa e o setor produtivo, quando perdiam, recorriam ao Tribunal Regional Federal. As partes que ganhavam ou perdiam recorriam novamente. No Superior Tribunal de Justiça, por vezes se analisava o recurso, por vezes nem se analisava, por considerar que a matéria era inconstitucional”, explica Eloísa Machado.
Em uma dessas ações, entre a Anvisa e a Abia, a agência perdeu e recorreu, fazendo o caso chegar ao Supremo. Nem a Abia, nem a Anvisa quiseram dar entrevistas ou se manifestar sobre o assunto.
O que pode a Anvisa?
A atribuição da agência está sob análise em dois Agravos de Recurso Extraordinário (ARE) interpostos em fevereiro de 2024: um movido pela Abia para o caso dos alimentos, sob relatoria do ministro Cristiano Zanin, e outro da Abert sobre medicamentos, relatado pelo ministro Flávio Dino.
Os relatores votaram pela competência da agência e pela validade das resoluções. Meses depois, em outubro, os julgamentos foram suspensos após a ministra Cármen Lúcia pedir vistas. O caso de alimentos chegou a ser incluído na pauta de julgamentos no começo de abril, mas foi rapidamente retirado.
Diante da possibilidade de os ministros da primeira turma reconhecerem de forma definitiva a constitucionalidade das normas e a competência da agência em criá-las, a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e TV (Abert) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) em fevereiro de 2025. É uma forma de tirar a discussão de um grupo de ministros e levá-la ao plenário.
“Esse tipo de estratégia é praticamente um lobby sendo feito pela indústria dentro do Poder Judiciário pra barrar uma decisão definitiva e transitada em julgado. E isso tem que ser sopesado também pelo olhar dos ministros quando forem fazer a análise de mérito em específico dessa ADI proposta pela Abert”, avalia Christian Printes, gerente jurídico do Idec.
Entramos em contato com a Abert, mas não tivemos retorno até a publicação deste texto.
No pedido de ADI, a Abert defende que as restrições são inconstitucionais por falta de competência legal da Anvisa e por considerá-las desproporcionais, desrespeitando a “livre iniciativa” e os direitos de “liberdade de expressão comercial”.
Esses mesmos argumentos já haviam aparecido na ação que chegou ao Supremo, após recurso da Anvisa.
Em seu voto, o relator, ministro Zanin, considerou que “a liberdade de iniciativa não impede a imposição, pelo Estado, de condições e limites para a exploração de atividades privadas tendo em vista sua compatibilização com os demais princípios, garantias, direitos fundamentais e proteções constitucionais, individuais ou sociais”.
Alertas sobre consumo em excesso
Os anúncios, independentemente do meio de veiculação, deveriam conter alertas, em texto escrito ou narrado, inclusive nos produtos com apelo de consumo infantil. A resolução dava seis meses para que a indústria e os anunciantes se adaptassem.

Longe de ser um consenso, o texto foi resultado de um longo processo regulatório marcado por pressão dos setores econômicos atingidos pelas novas regras. Em campos opostos estavam organizações da sociedade civil, como Idec e Instituto Alana, além de pesquisadores e profissionais de saúde.
“A RDC fala sobre a forma de apresentar a informação para grupos que são vulneráveis e para a sociedade como um todo”, explica Dirceu Raposo de Mello, que era o presidente da Anvisa na época e assina a resolução. “Outra questão é como prevenir e informar as pessoas do dano daquilo que eventualmente possa estar sendo promovido como adequado e saudável. Como as pessoas ficam sabendo que essa não é a verdade absoluta, e como elas vão se proteger?”, acrescenta.
Assim que chegou à presidência, Dirceu foi informado da intenção da agência em regulamentar a publicidade dos alimentos considerados potencialmente nocivos. Ele lembra dos compromissos anunciados pelo setor, que nunca se concretizavam. “Foi então que pensei, ‘Se vocês não vão fazer, nós vamos fazer e pronto’”, lembra.
Entre o início do processo regulatório e a publicação das novas normas foram quase cinco anos de idas e vindas, negociações intensas e debates acalorados.
O que se pretendia inicialmente era a proibição de anúncios desses alimentos voltados para crianças, assim como o uso de personagens e brindes. No entanto, a pressão da indústria de alimentos resultou em uma versão final bem mais branda no que diz respeito ao público infantil. Em vez da proibição direta, o texto opta pela informação.
“Internamente foi aquilo que a gente achava que podia produzir. E nós sabíamos que, efetivamente, teria uma repercussão grande, como teve”, conta Dirceu Raposo de Mello.
Naquela época, a Anvisa chegou a criar um departamento especial para monitorar práticas publicitárias para alimentos e medicamentos, e futuramente fiscalizar a aplicação das novas regras.
Regular interesses
“Regular, fundamentalmente, é regular interesses. E envolve, muitas vezes, questões econômicas. É assim mesmo. Nossa mãe sempre recebe elogios não muito elogiosos”, conclui o ex-presidente da Anvisa, que fez uma defesa enfática da capacidade técnica e da autonomia da agência.
A Advocacia-Geral da União (AGU) foi um ator decisivo no processo político que, pela via judicial, na prática conseguiu inviabilizar a aplicação das novas regras, conclui Marcello Baird, em pesquisa sobre o episódio. Mesmo tendo auxiliado inicialmente no embasamento da resolução, o órgão acabou revertendo sua posição posteriormente, o que serviu para reforçar o questionamento da indústria sobre a legitimidade da Anvisa em legislar sobre o tema.
“Se não atender os nossos interesses, nós procuraremos então aquele estado que estiverem os nossos interesses, não há a menor dúvida. Se for o caso do Judiciário, perfeitamente; se não for, não. Não é uma ameaça, apenas o caminho natural das coisas dentro da democracia. Se estiver dentro daquilo que nós queremos, estamos todos de acordo, senão não”, afirmou o então presidente da Abia, Edmundo Klotz, durante audiência pública, em 2009.
E foi assim que, democraticamente, um setor, ou melhor três, de grande peso econômico e político conseguiram jogar por terra uma regulamentação pioneira para a promoção e proteção da saúde, em um exemplo de como um sistema processual com instâncias recursais a perder de vista pode sustentar assimetrias entre interesses privados e coletivos.
Até 2022, a perspectiva, confirmada por uma série de decisões judiciais, era de que a Anvisa iria perder a atribuição de disciplinar a propaganda desses alimentos. Houve, no entanto, uma mudança nesse entendimento.
“Diante do atual modelo de agências reguladoras adotado no Brasil é permitido à Anvisa, dentro do âmbito de sua discricionariedade técnica, regulamentar questão não detalhada suficientemente no texto da lei, sem que isso represente qualquer extrapolação de sua competência legal”, defendeu a AGU à época, em uma das ações que tramitam na Justiça Federal.
Em todos esses anos de idas e vindas nos tribunais, entre o rol de argumentos utilizados pelos setores atingidos estão desde promoção de “contrapropaganda”, “parâmetros arbitrários” e a negação de causalidade entre o consumo desses alimentos e o desenvolvimento de doenças.
Nesse período, o paradigma global da nutrição mudou graças à contribuição de pesquisadores, do governo e da sociedade brasileira. A classificação NOVA e sua incorporação no Guia Alimentar para a População Brasileira criaram novos parâmetros considerados referência e seguidos por pesquisadores e governos em várias partes do mundo.
Na época em que a RDC foi discutida, o conceito de ultraprocessados ainda não havia sido definitivamente criado por Carlos Monteiro e pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, o Nupens, da USP. De lá pra cá, o conhecimento sobre os efeitos nocivos desses produtos vem sendo demonstrado por um número crescente de estudos e pesquisas.
“Da forma como a norma está concebida atualmente consideramos compatível com a maior parte do direito à informação. Os alertas podem fazer com que haja liberdade de escolha mais aprofundada pelo consumidor brasileiro. Defendemos que a RDC 24 tem capacidade de ser aplicada. Esse é um ponto comum entre quem está trabalhando na causa”, explicou Christian Printes, do Idec.
Outra mudança importante diz respeito à criação de modelos de alerta usados na parte frontal dos rótulos. No Chile, os octógonos pretos com o aviso sobre o excesso de nutrientes críticos são o critério para definir o que não pode ser exibido na televisão. No Brasil, a Anvisa definiu, em 2020, uma nova rotulagem, com a padronização das tabelas nutricionais e a adoção de lupas na parte frontal das embalagens para avisar sobre o excesso de sal, açúcares e gorduras saturadas.
“Nós estamos em uma coalizão muito ampla. Apesar da enorme assimetria com a indústria, o nosso lado também vem forte para essa disputa do Supremo. Ao nosso lado estão as evidências científicas. E é muito difícil superar os dados que são bastante firmes no que se refere à relação entre o consumo de alimentos não saudáveis e o adoecimento e todas as consequências para a qualidade de vida”, conclui Eloisa Machado.
