Foto: Marcos Oliveira/ Agência Senado

PL prevê incentivos a empresas por fazer o mínimo contra o desperdício de comida

Sociedade civil alerta para a submissão da Política Nacional de Combate à Perda e ao Desperdício de Alimentos a interesses empresariais

Colocar em circulação alimentos próprios para consumo que iriam parar no lixo parece um objetivo louvável, especialmente em um país que contabiliza perdas de 55 milhões das 161 milhões de toneladas de alimentos produzidas por ano, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) e do Pacto Contra a Fome.

Esse é o propósito declarado do Projeto de Lei (PL) 2.874/2019, aprovado pelo Congresso. Mas o texto que institui a Política Nacional de Combate à Perda e ao Desperdício de Alimentos (PNCPDA) embute armadilhas. Na visão de especialistas, a proposta pode transformar o escoamento de ultraprocessados em contrapartida fiscal. Também brinda os participantes com material de autopromoção.

Aprovado pela Câmara em 10 de setembro, em regime de urgência, o texto do senador Ciro Nogueira (PP-PI) agora aguarda sanção presidencial. “A ausência de formalidades regimentais foi resultado de uma articulação da coalizão Pacto contra a Fome”, disse uma fonte ao Joio, sob anonimato, por ocupar um espaço institucional ligado ao governo federal. O Pacto, organização que afirma trabalhar para erradicar a fome e reduzir o desperdício de alimentos, é financiado por algumas das maiores empresas do país, como Ambev, Grupo Carrefour e Instituto Assaí.

Quem é Geyze Diniz

O Instituto Pacto Contra a Fome entrega documento ao Congresso Nacional documento “Da Política ao Prato” em solenidade no Salão Nobre da Câmara dos Deputados. (Crédito: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados)

Confundadora e presidente do Conselho do Pacto contra a Fome, a economista Geyze Diniz é viúva do empresário Abilio Diniz (1936–2024), peça crucial na construção do Grupo Pão de Açúcar e ex-presidente do Conselho de Administração da Península Participações, que chegou a ser o segundo maior acionista do Carrefour Brasil.

À frente do movimento, que se intitula suprapartidário, Geyze conduziu a entrega de uma Agenda Legislativa para o combate à fome e ao desperdício de alimentos ao Congresso. O documento lista sete projetos prioritários. Eles foram escolhidos entre 1.915 propostas em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

A lista foi entregue ao presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que assegurou prioridade à pauta. “Temos condições de dar agilidade e, em pouco tempo, apresentar a contribuição dos deputados e deputadas nessa agenda, que é inadiável para quem deseja um Brasil mais justo – um país que deixe de figurar, de uma vez por todas, nos mapas da fome e da insegurança alimentar”, pronunciou-se no evento de lançamento da agenda.


Uma das propostas do PL é que as empresas recebam incentivos fiscais – ou seja, paguem menos tributo – ao contabilizar as doações de alimentos como despesa dedutível. Estimativas da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) indicam que o novo percentual poderia dobrar o volume de doações do setor, hoje em torno de 120 mil toneladas por ano. O detalhe omitido é que a generosidade vem com garantia de rentabilidade.

Trecho da terceira edição do estudo Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento, produzido pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras) em 2023. Crédito: Captura de Tela/Abras.

Entre incentivos fiscais e de crédito, o substitutivo do relator, deputado Átila Lira (PP-PI), prevê a dedução de até 5% na base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) para estabelecimentos comerciais que atuem com alimentos. Hoje, a CSLL permite dedução de 2% e o IRPJ não autoriza nenhuma.

Como é hoje

  • CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido): tributo pago pelas empresas para financiar a seguridade social.
  • Supermercados podem deduzir até 2% da base de cálculo.
  • IRPJ (Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas): imposto cobrado sobre o lucro das empresas.
  • Hoje não há dedução permitida.

Como ficaria

  • CSLL: dedução aumentaria de 2% para até 5%.
  • IRPJ: passaria de 0% para até 5% de dedução.

O que é dedução

É quando a empresa pode pagar menos imposto, abatendo parte do valor que deveria ao governo.


A proposta de isenção vem para beneficiar o setor de supermercados, que abrange 424.120 lojas e 30 milhões de consumidores. Esse segmento econômico movimentou R$ 1,067 trilhão de resultados em 2024, o que corresponde a 9,12% do PIB nacional.

Com ganhos dessa magnitude, ampliar a dedução de 2% para 5% da base de cálculo da CSLL dos supermercados, medida defendida pela Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores de Produtos Industrializados (Abad) e pela Frente Parlamentar de Comércio e Serviços (FCS), pode representar centenas de milhões – ou até bilhões – em renúncia fiscal. Isso pode significar diminuição de recursos de programas governamentais de combate à fome e insegurança alimentar desenvolvidos pela União, a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Em dezembro de 2024, por exemplo, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2025 sem incluir o reajuste do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). 

Apenas empresas que declaram lucro real podem abater a contribuição, o que significa que o PL reduz a carga das grandes redes de supermercados – como o Grupo Carrefour (SP), o Assaí Atacadista (SP) e o Grupo Mateus (MA), os três maiores do país – enquanto o pequeno comércio, geralmente enquadrado no Simples Nacional ou no lucro presumido, fica de fora.

“Esse é um modelo que reforça uma lógica assistencialista e dependente de sobras de mercado, além de premiar o setor privado por meio de renúncias fiscais”, declarou, em nota, o Núcleo Gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável. “O verdadeiro compromisso de combater a fome deve estar livre de ganhos financeiros.”

Quais são as 10 maiores redes de supermercados do país

O ranking Abras 2025 aponta as líderes em faturamento, que, por sua dimensão,
poderão ser as principais beneficiadas pelas novas deduções fiscais:

  1. Grupo Carrefour (SP): R$ 120,6 bilhões
  2. Assaí Atacadista (SP): R$ 80,6 bilhões
  3. Grupo Mateus (MA): R$ 36,4 bilhões
  4. Supermercados BH (MG): R$ 21,3 bilhões
  5. Grupo Pão de Açúcar (SP): R$ 20 bilhões
  6. Grupo Muffato (PR): R$ 17,4 bilhões
  7. Grupo Pereira (SP): R$ 15,3 bilhões
  8. Mart Minas (MG): R$ 11,4 bilhões
  9. Cencosud Brasil (SP): R$ 11,2 bilhões
  10. Koch Hipermercados (SC): R$ 10,3 bilhões


O atual sistema de doação de alimentos no Brasil se estrutura principalmente a partir do Sesc Mesa Brasil, dos bancos de alimentos públicos e de organizações privadas sem fins lucrativos – entre elas, OSCs, entidades religiosas, creches comunitárias e cozinhas solidárias. Em comum, todas atuam de forma pública ou filantrópica, sem extrair lucro da distribuição

“Os equipamentos públicos como restaurantes populares, bancos de alimentos e organizações sociais têm maior capacidade de definirem os grupos prioritários para receberem este tipo de serviço, reduzindo o risco de uso político dos alimentos”, defende a nota da Aliança.

Em nota enviada após a publicação da reportagem, o Pacto contra a Fome manifestou discordância com parte do projeto aprovado no Congresso. “É fundamental esclarecer que o PL 2874/2019, que trata da Política Nacional de Combate à Perda e ao Desperdício de Alimentos (PNCPDA), nunca esteve na Agenda Legislativa ‘Da Política ao Prato’ como mencionado em reportagem. Concentramos nossos esforços na desapensação, no apoio e aprimoramento do PL 321/2025, que propõe a Política Nacional de Combate ao Desperdício e de Incentivo à Doação (CDIDA) e, infelizmente, o projeto se manteve apensado ao PL 2874/2019. Temos discordâncias importantes com o texto aprovado na Câmara do PL 2874/19, como a questão do incentivo fiscal, e seguiremos atuando para aprimorar estas e outras iniciativas visando o bem público. Por fim, atuamos com transparência e com o compromisso de promover mudanças significativas e duradouras. Nossa atuação, em defesa da segurança alimentar e nutricional, segue o caminho ético de respeito e zelo pelo processo regimental. Exemplo disso foi a apresentação pública em sessão solene da agenda legislativa.”

Chancela oficial

O projeto cria também o Selo Doador de Alimentos, um carimbo de virtude para quem aderir à PNCPDA. A gratificação parece razoável, mas um olhar mais atento revela fragilidades.

Primeiro, o texto não estabelece critérios objetivos de concessão. Também passa ao largo de parâmetros consolidados da área, como o Guia Alimentar para a População Brasileira e o decreto que regulamenta a cesta básica. Com isso, converte em mérito ações que não precisam seguir as diretrizes do Estado.

O arranjo também transfere ao poder público a responsabilidade – e a fatura – pela administração da honraria. O Estado assume os custos de regulamentar, avaliar e divulgar, enquanto empresas ganham um ativo de marketing. O projeto outorga ao colaborador interessado o direito de utilizar a chancela “como lhe aprouver”, inclusive na divulgação da própria marca. 

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Defeito semântico

Embora o PL 2.874/2019 traga no título a promessa de enfrentar tanto a perda quanto o desperdício de alimentos, o tratamento reservado a cada entrave é assimétrico.

No texto, as perdas aparecem definidas no artigo 2º e mencionadas novamente no artigo 6º, quando se fala em incentivo a pesquisas, capacitação de trabalhadores e apoio a agricultores familiares.

Já o desperdício recebe praticamente toda a atenção. É nesse ponto que se concentram os principais instrumentos da matéria: as deduções no IRPJ e na CSLL para supermercados que doarem mercadorias, a criação do Selo Doador de Alimentos para valorizar a imagem das empresas e as regras que praticamente isentam os doadores de responsabilização civil.

Perdas na produção, desperdício no consumo

Enquanto as perdas refletem falhas estruturais na cadeia produtiva, o desperdício acontece no comércio e dentro de casa

Perdas de alimentos

Redução na quantidade ou qualidade de alimentos nas etapas iniciais e intermediárias da cadeia: colheita, manuseio pós-colheita, armazenamento, transporte e processamento.

  • Causas principais: infraestrutura precária, falhas logísticas, técnicas inadequadas, danos climáticos.
  • Exemplos:
  • Grãos que mofam por falta de armazéns adequados.
  • Frutas esmagadas no transporte.
  • Leite descartado por problemas de refrigeração.

Desperdício de alimentos

Descarte de alimentos próprios para consumo que ocorre nas últimas etapas da cadeia — especialmente no comércio, nos restaurantes e nas residências — geralmente ligado a decisões de comerciantes e consumidores.

  • Causas principais: padrões estéticos, validade mal interpretada, excesso de compra ou preparo.
  • Exemplos: passaria de 0% para até 5% de dedução.
  • Supermercados que descartam produtos fora do “padrão de aparência”.
  • Restaurantes e buffets que preparam mais do que conseguem vender.
  • Famílias que jogam fora comida comprada em excesso.


Na análise de Pedro Vasconcelos, secretário-geral da Fian Brasil, a proposta legislativa distorce o diagnóstico do problema. “Se o foco recai apenas sobre o desperdício, a política privilegia medidas paliativas – como incentivar doações de excedentes do varejo – e relega a segundo plano as perdas estruturais da produção e da logística, que demandam investimentos em tecnologia, transporte e armazenagem.”

“O poder público acaba arcando com o ônus financeiro e de pessoal, enquanto o setor privado usufrui de benefícios sem assumir responsabilidades proporcionais”, alerta Vasconcelos. A insistência em mirar apenas o elo final da cadeia acaba encobrindo problemas que se acumulam desde a produção. “Ao invés de atacar as causas estruturais da insegurança alimentar, a política acaba centrada em soluções que soam bem no discurso, mas têm alcance limitado, além de efeitos pouco mensuráveis”, diz.

Falta harmonia normativa

Soma-se a isso o fato de que o Brasil já dispõe de um arcabouço integrado: a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) institui o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), enquanto o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan) organiza metas e ações em nível federal, estadual e municipal.

A lógica é simples: se o artigo 6º da Constituição Federal de 1988 elenca a alimentação como um direito social, cabe ao Estado coordenar políticas de combate à fome.

O PL 2.874/2019 embaralha esse quadro. Em vez de reforçar a rede que já existe, o texto gera sobreposição de regras, dificuldade de monitoramento e introduz exceções que enfraquecem a responsabilização.

Essa dissonância confunde. De um lado, um conjunto de leis e programas que visam ao fortalecimento da agricultura familiar, a regulação de sistemas de produção e distribuição de alimentos e a promoção de ambientes alimentares saudáveis; de outro, uma proposta que prioriza mecanismos de doação de excedentes da indústria e do varejo como solução central para a fome. O resultado pode fragilizar a própria ideia de que a fome deve ser enfrentada como violação de direitos.

Embora a justificativa do PL seja econômica nas definições técnicas, um de seus alicerces é o Atlas Global de Políticas de Doação de Alimentos, elaborado pela Clínica de Direito Alimentar de Harvard em parceria com a Global FoodBanking Network.

O estudo foi financiado pela Fundação Walmart, o que, para Vasconcelos, evidencia os interesses secundários que permeiam a proposta. “Eles citam esse relatório como justificativa técnica. E isso já é uma pista: o financiamento vem justamente de uma das maiores redes de supermercados, diretamente interessada no tema”, observa.

Projeto de lei sobre desperdício de alimentos tem entre suas referências relatório bancado pela Fundação Walmart. Crédito: The Global FoodBanking Network/Reprodução.

Discordâncias

O parecer do deputado Átila Lira (PP-PI) admite que há renúncia de receita, mas defende a aprovação do texto porque a sua execução depende da futura inclusão na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA). Na prática, o problema fica para o próximo ciclo orçamentário. 

No plano político, o parlamentar adota um tom enfático na defesa do texto. Explica que o substitutivo apresentado representa “a resposta técnica mais completa aos desafios identificados”. A revogação da lei atual, argumenta, permitiria um marco normativo “tecnicamente mais limpo” e daria ao Estado uma visão “mais avançada, capaz de fortalecer os esforços para garantir o direito social à alimentação e a dignidade da pessoa humana”.

  • Confira a íntegra do parecer proferido em plenário.

Organizações da sociedade civil contestam esse diagnóstico. Em nota de posicionamento, a Fian Brasil argumenta que a proposta “premia um pequeno grupo de empresas com mais isenções fiscais, sem que isso garanta efetividade no direito à alimentação”.

Cartum que acompanha a nota de posicionamento da Fian Brasil no site institucional. Ilustração: Paulo Ciência/Fian Brasil.

A entidade alerta ainda para os “interesses secundários” que atravessam o projeto, já que, em vez de consolidar políticas estruturais, ele pode legitimar a lógica caritativa “segundo a qual a fome poderia ser mitigada pela destinação de excedentes privados, principalmente ultraprocessados, em vez de ser enfrentada como violação de direitos”.

Mesmo favorável à aprovação parcial, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) fez ressalvas. Em nota técnica, o órgão consultivo que assessora a Presidência da República descreve preocupações de ordem ética, sanitária e nutricional.

Para o colegiado, a proposição incorre em omissão de critérios: “O projeto mencionado não estabelece critérios objetivos de qualidade nutricional para os alimentos que serão doados, tampouco apresenta diretrizes que priorizem alimentos in natura ou minimamente processados, fundamentais para uma alimentação adequada e saudável”.

O Consea questiona ainda o próprio mecanismo de renúncia fiscal. “O modelo proposto […] transfere ao Estado a responsabilidade por ‘premiar’ e estimular empresas para a doação de alimentos que não seriam comercializados, sem garantia de efetividade social e condições de monitoramento e controle social”, registra a nota.

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