Sinais de alerta, impostos, orientações oficiais contra os ultraprocessados: a região está à frente de uma agenda política inédita que tenta frear a epidemia de obesidade. Mas a reação é forte
“Não dá orgulho? Quando comecei a sair para falar foi que me dei conta do quão grande era o que estávamos fazendo”, diz Marcela Reyes, abrindo um sorriso grande ao final do enésimo debate de que participou desde que o Chile se colocou no mapa da maldição da indústria de alimentos ultraprocessados.
E não entrou sozinho: pelo menos Brasil, Peru, Uruguai e México integram ou estão perto de integrar o grupo, por ora seletíssimo. Bons tempos em que a capa da revista Veja estampava o Chile como a ovelha branca da América Latina. Agora, a publicação da Abril seria obrigada a colocar um bom cordeiro sobre a Argentina, e a deixar os chilenos pretinhos como nós.
Pretinhos como o octógono que desde o ano passado decora a embalagem de ultraprocessados vendidos no Chile com altos teores de sal, gordura, açúcar e calorias. Quanto pior a composição do produto, mais selinhos. E menor a chance de venda.
Durante o Congresso Internacional de Nutrição, em Buenos Aires, Marcela, do Instituto de Nutrição e Tecnologia de Alimentos da Universidade do Chile, comparou o caso de seu país a outros modelos existentes, todos voluntários e com um enfoque positivo. Ao final do debate, depois de ouvir saudações dos compatriotas, começaram as contestações: por que o Chile está indo tão rápido? Por que não se adota uma postura mais positiva e conciliadora? Por que tratar a indústria como inimiga?
“Há um conflito intrínseco entre a tentativa de aumentar os lucros e a necessidade de melhorar a saúde pública. Estou de acordo com a ideia de que as empresas podem ser parte da solução: sua maneira de ser parte da solução é cumprindo as leis”, contestou Marcela Reyes.
Essa foi a tônica do congresso. Durante seis dias, em outubro, os grandes pesquisadores da nutrição se revezaram entre beijos e murros às iniciativas adotadas pela América Latina. “Vocês têm uma grande população, são grandes países, e eles querem esses mercados. O Brasil, em particular”, nos resumiu Barry Popkin, professor de Nutrição da Universidade da Carolina do Norte. Ele conhece de longa data a América Latina.
Foi Popkin quem cunhou o conceito de “transição nutricional” para descrever a mudança de padrão alimentar dos países em direção a produtos menos e menos saudáveis. Nossa região está justamente no meio desse caminho. Mas alguns dos países têm as mais altas taxas de obesidade do mundo e os maiores níveis de consumo de refrigerantes.
O pesquisador entende que os governos têm cada vez mais clara a necessidade de adotar medidas regulatórias para coibir o avanço da obesidade. Para ele, a reformulação de produtos proposta como solução pela indústria tem um papel muito limitado.
Popkin trabalha na avaliação do caso chileno. E entende que o país sul-americano pode ser o primeiro do mundo a conseguir frear o problema. “Temos a necessidade de contar para as pessoas que a junk food não é saudável. E o modelo chileno de alertas parece ter mudado uma conduta social no país. Está funcionando muito melhor que qualquer outro modelo.”
Marcela Reyes concorda. “Ainda comemos comida. Muitos dos discursos dos outros painelistas vão no sentido de que não podemos voltar atrás: não vamos voltar a cozinhar, não vamos voltar a comer em família. Mas nós ainda comemos comida.”
É impossível saber o que se deu em todo o congresso, imenso e com vários debates em simultâneo. Mas não foi difícil ver o quanto a América Latina está incomodando. Duplamente. A indústria de ultraprocessados, que não só estava presente, como sentava-se ao camarote, não escondeu o desagrado. E muitos pesquisadores também.
Nossos países fizeram arrepiar os cabelos porque podem ser os primeiros a encontrar um freio para a epidemia de obesidade. Hoje, o carro anda sem rumo, a mil por hora, e ninguém assume o comando.
Há também um fator de incômodo que foi ficando visível à medida em que os debates se desenrolavam no hotel Sheraton, no centro da capital portenha: a hierarquia. Normalmente, as soluções são transpostas ou impostas do Norte para o Sul. Dos ricos para os pobres. Não foram poucas as mesas de debates em que homens brancos de países ricos apresentavam soluções para os negros e os indígenas da África e da América Latina. Isso não é ilegítimo, mas, quando o desequilíbrio de representação fica claro, dá o que pensar.
O que toda essa tendência recente faz é percorrer o caminho oposto, do Sul para o Norte.
“Agora os países latino-americanos têm a chance de estar à frente das soluções. Não são soluções tecnológicas. A tendência é que as soluções para doenças crônicas sejam soluções criativas, que demandam engenhosidade”, diz Simón Barquera, do Instituto Nacional de Saúde Pública do México. Ele foi uma das figuras de destaque na criação de um imposto sobre as bebidas açucaradas, outra iniciativa sob ataques durante o congresso.
Juan Rivera, presidente da Sociedade Latino-americana de Nutrição e também integrante do instituto, saiu em defesa da decisão mexicana. “Todas as evidências científicas nos levavam ao modelo da taxação”, contou durante uma palestra. A proposta já estava pronta havia algum tempo, e a oportunidade política se apresentou quando o governo tinha problemas de caixa. “A taxação está funcionando e é algo que devemos usar contra as tentativas da indústria de bani-la.” O modelo já cruzou o Rio Grande e está sendo adotado em cidades dos Estados Unidos.
Alejandro Calvillo, da ONG El Poder del Consumidor, também fundamental na adoção do imposto, avalia que essa vanguarda latino-americana pode ser uma herança dos movimentos da sociedade fortalecidos na década passada. “Temos uma atuação forte da sociedade civil e da academia, com coesão frente ao poder das corporações.”
É difícil demarcar um começo dessa trajetória regional. Mas poderíamos escolher o final da década passada, quando o professor Carlos Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, cunhou o termo “ultraprocessados”. Ele propôs uma nova divisão, chamada NOVA, que separa os alimentos entre in natura ou minimamente processados, processados e ultraprocessados – além de ingredientes culinários.
Pode soar estranho, mas é fácil entender, se nos permitem uma apresentação meio simplificada. In natura é o que a gente sempre comeu: legumes, frutas, verduras. Processados são o que a gente sempre comeu, mas com alguma transformação para aumentar a durabilidade e a segurança: arroz, feijão, farinhas. E os ultraprocessados são aquilo que sua bisavó não entenderia como alimento.
O paradigma anterior era calcado na pirâmide alimentar, dividida em vários grupos: carnes, carboidratos, queijos, óleos. E por aí vai. Do ponto de vista de um leigo, era complicado entender quanto comer de cada grupo e o que exatamente fazia mal.
Quando se pensa nos ultraprocessados, porém, a coisa muda de figura. O fato é que, do ponto de vista de orientação, as evidências são de que isso funciona. Há cada vez mais documentos e políticas públicas falando em ultraprocessados. O PubMed, uma das principais bases de dados da produção científica, registra 70 artigos com esse termo em 2017, contra 40 no ano passado e apenas seis em 2009. No Congresso de Nutrição, houve 15 simpósios ou trabalhos com esse tema.
E também houve trabalhos contra esse tema. Um debate promovido pela Associação Argentina de Tecnólogos Alimentares atacou diretamente a pesquisa de Monteiro. Os presentes exortaram as agências da ONU a encontrar um caminho para frear a agenda regulatória da América Latina.
“Uma forte tendência a regular a ingestão de nutrientes através da rotulagem frontal está se expandindo pelos países latino-americanos”, alertou Susana Socolovsky, presidente da entidade argentina, falando em uma “demonização injustificada” dos alimentos industrializados. Ela tem rodado a região na tentativa de evitar a adoção de medidas regulatórias. “As autoridades sanitárias dos países latino-americanos estão usando o controverso sistema de classificação de alimentos NOVA e o modelo de perfil de nutrientes da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas).”
O segmento da comunidade científica mais simpático ao setor privado não usa o termo ultraprocessados, salvo quando é para atacá-lo. Segue-se a utilizar a pirâmide alimentar, que também continua como base para a atuação das empresas.
Quando começamos uma pesquisa mais aprofundada sobre a comunidade científica da nutrição, em abril, vimos que havia uma forte oposição de segmentos da academia brasileira ao termo ultraprocessados. Com o tempo, notamos que era uma oposição articulada com grupos de outros países. O discurso é bem afinado.
E se tornou mais intenso em 2014, com a publicação do Guia Alimentar para a População Brasileira. O documento do Ministério da Saúde foi elaborado pelo grupo de Monteiro e adotou a classificação por grau de processamento, com uma recomendação expressa de que se evite o consumo de ultraprocessados. “A indústria foi o único setor de que não pudemos aproveitar as sugestões na consulta pública. Porque sugeriram coisas que eram incompatíveis com os princípios do Guia”, disse o professor da USP.
Carlos Gonzales-Fisher, da Universidade de Buenos Aires, participou da elaboração de um relatório para a FAO sobre guias alimentares. Depois do Brasil, o Uruguai adotou o mesmo princípio na elaboração de diretrizes oficiais. Outros países tentaram seguir essa trilha, mas a pressão do setor privado não permitiu.
O conceito de ultraprocessados foi importante para que, no ano passado, a Organização Pan-americana de Saúde (Opas) lançasse um novo modelo de perfil nutricional, criado especialmente para embasar a adoção de políticas públicas que busquem restringir e desestimular o consumo desses produtos. O documento define os critérios para excesso de açúcares, sal e gorduras. E atua sobre produtos, e não sobre a dieta de um dia todo – afinal, quase ninguém faz uma conta ao fim do dia para saber o quanto comeu.
A orientação da Opas é a base para um decreto que o Uruguai pode lançar nas próximas semanas. O país caminha para adotar um padrão de rotulagem semelhante ao chileno. Mas sofre intensa pressão da indústria, como mostramos em O joio e o trigo, com ameaças de acionar o país na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Um dos debates mais interessantes do congresso em Buenos Aires reuniu os modelos de rotulagem frontal existentes. Todos, voluntários e baseados em mensagens positivas, à exceção do Chile, compulsório e de mensagem negativa.
Os pesquisadores mostraram análises científicas de cada caso. Na Nova Zelândia e nos países que adotaram o Choices, criado pela Unilever, o que a indústria fez foi colocar o selo sobre os produtos com perfil nutricional melhor, o que acabou por direcionar as opções de compra a alguns desses itens.
Cliona Ni Mhurchu, da Universidade de Auckland, disse que houve um impacto pequeno na reformulação de produtos, e limitado a alguns segmentos. “Vamos ver nos próximos anos qual dos modelos tem o maior impacto no comportamento do consumidor. Mas também temos de olhar para o impacto no comportamento da indústria, e é certo que eles estão reformulando.”
O caso mais antigo é o do Reino Unido, que na década passada adotou uma rotulagem frontal de adesão voluntária que fornece informações sobre calorias, sal, açúcar e gordura. Michael Rayner, da Universidade de Oxford, afirmou que hoje está claro que esse não é o melhor sistema. E complementou com a visão de que o modelo chileno é o que tem maior impacto sobre o consumidor, mas que ainda não está claro se é o que tem maior influência sobre a saúde.
“Como na América Latina estamos acostumados a copiar as coisas, olham para nós um pouco feio. Por que sentem o direito a inovar?”, me disse Marcela Reyes. “Eu, nesta experiência, entendi bem o conceito de transnacionais. São maiores que as nações. Quando grandes corporações se colocam a discutir com países latino-americanos se nota a diferença de poder. É muito maior que um país.”
No Peru, foi apresentado ao Congresso um projeto de lei que pode desfigurar a Lei de Alimentação Saudável, sancionada em 2012. O texto prevê a edição de um decreto para criar a rotulagem frontal de alimentos, tema que se estava discutindo no governo, com grande possibilidade de adoção do modelo chileno. O texto-base já estava pronto e prestes a ser publicado. Mas os parlamentares poderiam aprovar uma nova lei, criando um selo positivo, no formato desejado pela indústria.
No começo de novembro, alguns dos principais pesquisadores da área de nutrição enviaram ao governo e ao Legislativo peruanos uma carta exortando a frear a aprovação do projeto, atualmente na Comissão de Defesa do Consumidor. Eles afirmam que o sistema defendido pela indústria comprovadamente incentiva o consumo de alimentos com maiores teores de sal, gordura, açúcar e calorias.
E que as evidências existentes até aqui têm demonstrado um bom funcionamento do modelo chileno. “Como acadêmicos especialistas em obesidade e diabetes, queremos deixar claro que a ciência é conclusiva sobre o papel das comidas e bebidas porcaria, com alto conteúdo de calorias, açúcar, sódio e gorduras saturadas: um consumo crescente desses produtos é causa de obesidade e doenças associadas.”
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) fez questão de deixar claro que ainda não se decidiu por um modelo. Na visão da Gerência Geral de Alimentos, não há evidências científicas de que um sistema funcione melhor que o outro. Mais ao norte, o Canadá não teve dúvidas. A discussão sobre rotulagem frontal já partiu da premissa de que os sinais de advertência como os chilenos são os melhores para proteger a saúde das pessoas. Falta apenas definir um símbolo, e pesquisas nesse sentido já foram concluídas.
A Associação Brasileira da Indústria de Alimentação (Abia) e a Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas não Alcoólicas (Abir) alegam que o sistema proposto pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável com base no modelo chileno provoca medo e terror na população.
Pela oposição que o debate despertou, dá para ver que quem tem medo não são as pessoas.