Acadêmicos e publicações com laços financeiros com a indústria reforçam a artilharia contra Carlos Monteiro, professor da USP que mostrou que um saco de arroz é diferente de um pacote de salgadinho
Carlos Monteiro estava assistindo a um debate na sala Libertador A quando recebeu uma mensagem no celular: “Vem pra cá. Estão te atacando.” Mas a apresentação sobre o papel da biodiversidade na melhoria da saúde e da nutrição, para o qual havia sido convidado, estava muito interessante. E ataques, de qualquer maneira, não são novidade para o professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Especialmente depois que ele formulou uma proposta que enfureceu a indústria de ultraprocessados: nomeá-la. Aceitar um rótulo não é fácil.
Foi isso que se deu em 2009, quando Monteiro e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) decidiram propor uma nova classificação de alimentos. No lugar dos macronutrientes (proteína, lipídios, carboidratos) e dos micro (vitaminas e minerais), entrou em cena o grau de processamento. A classificação NOVA, como é chamada, divide os alimentos em quatro grupos. Os três primeiros têm sido a base da alimentação humana por muitos séculos: alimentos não ou minimamente processados, ingredientes culinários processados e alimentos processados. E o quarto grupo, constituído por formulações industriais de substâncias derivadas de alimentos e aditivos cosméticos, chamadas de alimentos ultraprocessados.
Até ali, a indústria de ultraprocessados caminhava pelas ruas meio anônima. Alguns a chamavam de junk food. Outros, de tranqueira ou porcaria – “menino, não vá comer porcaria antes de jantar”. Mas não havia um nome científico consensual, o que, de certo modo, continua a não haver.
Mas a classificação dos alimentos pelo grau de processamento foi uma das sacadas que começaram a apontar o dedo para a indústria como a principal responsável pela epidemia de obesidade que explodiu nas últimas décadas. Vários grupos de pesquisa do mundo voltaram o olhar aos ultraprocessados e, desde então, não param de elencar evidências científicas sobre a associação entre o consumo e as doenças crônicas não transmissíveis (diabete, hipertensão, câncer). Recentemente, o Instituto Nacional do Câncer afirmou haver evidência sólida de correlação entre a obesidade e 13 tipos de câncer.
“Esses estudos, conduzidos por pesquisadores de vários países, têm comprovado o vertiginoso crescimento mundial do consumo de alimentos ultraprocessados, como refrigerantes, snacks industrializados e refeições congeladas, e o sistemático impacto negativo desses alimentos sobre a qualidade nutricional da alimentação humana e sobre o risco de obesidade, hipertensão, síndrome metabólica, dislipidemias e outras doenças crônicas não transmissíveis”, escreveu Monteiro na última semana, ao defender-se de um dos ataques mais recentes.
As transnacionais nunca pouparam recursos na criação de evidências científicas que apontassem o dedo para qualquer outro lado. O que a pesquisa de Monteiro fez foi pegar o menino que praticava bullying, colocá-lo no centro do pátio e mostrar a ele como é incômodo ficar exposto.
Muita coisa mudou até chegarmos a outubro de 2017, no Congresso Internacional de Nutrição, num hotel no centro de Buenos Aires.
O debate realizado a poucos metros da sala onde estava Monteiro adotou uma pegada forte na tentativa de desmerecê-lo como pesquisador. Quando o professor embarcou para a Argentina, já esperava que seu trabalho fosse submetido a críticas e elogios. Faz parte de estar em evidência. Mas, logo em um dos primeiros debates, surgiram pancadas acima do tom para o cauteloso universo científico.
“Alimentos processados: tecnologia alimentar para uma melhor nutrição” foi o mote escolhido pela Associação Latino-americana de Ciência e Tecnologia de Alimentos para um dos simpósios iniciais do megaevento.
“É errôneo acreditar que o desenvolvimento da obesidade e das doenças crônicas tenha a ver com o nível de processamento”, disse Julie Miller Jones, da Saint Catherine University. “A comida processada já é parte do sistema e está sendo julgada ou é considerada culpada pela obesidade, o que não é verdade.”
Na verdade, a NOVA propõe uma divisão bem clara entre processados e ultraprocessados. Contudo, os detratores normalmente apagam essa linha, o que faz com que pareça que a classificação é contra a industrialização.
“A comunidade científica de todo o mundo questionou a base científica e os benefícios da NOVA, que, além disso, implica numa demonização injustificada dos alimentos processados e o papel crucial historicamente desempenhado pela ciência e tecnologia de alimentos”, continuou Susana Socolovsky, presidente da Associação Argentina de Tecnólogos Alimentares.
Ela mostrou um slide: “O uso da classificação NOVA em políticas públicas é irresponsabilidade.” Foi uma alusão a um artigo publicado pouco tempo antes no American Journal of Clinical Nutrition por um grupo encabeçado por Michael Gibney, da Universidade de Dublin, na Irlanda.
“Alimentos processados na saúde humana: uma avaliação crítica” foi um ataque frontal à classificação NOVA. A alegação central é de que a separação entre in natura, processados e ultraprocessados é simplista e induz a erros. Os autores defendem que essa sistematização é inútil para lidar com as associações entre alimentação e doenças.
E propõem que se mantenha a abordagem por nutrientes. Essa abordagem se tornou dominante na segunda metade do século passado. Hoje, há dezenas, centenas ou milhares de especialistas para cada um desses nutrientes (sódio, zinco, vitamina A etc etc etc). E não parece que a ciência esteja caminhando para um consenso. O próprio Congresso Internacional de Nutrição dá provas disso: um mesmo nutriente aparece como vilão ou herói a depender de quem organiza o simpósio.
Gyorgy Scrinis, professor da Universidade de Melbourne, cunhou para isso a expressão “nutricionismo”. “O reducionismo ao nutriente isolado frequentemente ignora ou simplifica as interações entre nutrientes, com os alimentos e com o corpo”, critica Scrinis no livro Nutritionism, no qual acusa haver uma abordagem determinista que indica esse ou aquele nutriente como responsável por determinada doença. Para ele, esse sistema levou a que a comunidade científica se desviasse da complexidade existente na alimentação, ignorando as mudanças no padrão alimentar ocorridas durante as últimas décadas, com a introdução de produtos com altos teores de sal, açúcar e gordura.
No artigo em que criticam a classificação NOVA, os autores confundem ultraprocessados com empacotados – o arroz é empacotado, mas não é ultraprocessado. E em certos momentos generalizam, dando a entender que o grupo de Monteiro é contra qualquer processamento – a farinha de trigo é processada.
O grupo de Gibney ainda fala que há “problemas éticos” em adotar a NOVA. Seria uma abordagem perigosa porque, ao supostamente desestimular o consumo de processados, não levaria em conta o papel desses produtos na ingestão de nutrientes. “Para nosso conhecimento, nenhum argumento foi oferecido sobre como, ou se, o processamento de alimentos em qualquer maneira constitui um risco para a saúde do consumidor”, escreveu.
Nos últimos meses, assistimos a várias abordagens parecidas.
“Eles querem que a gente tenha uma vaca na sacada do apartamento”, disse uma professora. “Vocês querem voltar a comer feijão com caruncho?”
“Querem nos levar de volta para a Idade Média. Você sabe qual era a expectativa de vida na Idade Média?”, me perguntou um médico.
“Agora existe essa coisa romantizada de comer como na época dos avós. Vocês sabem como eram os alimentos na época dos nossos avós? As pessoas morriam de infecção alimentar”, ameaçou outra pesquisadora.
Vez ou outra há abordagens mais sutis, mas, no geral, as tentativas de desqualificar a classificação pelo grau de processamento preferem abraçar o exagero e desconsiderar a óbvia diferença existente entre um saco de arroz e um pacote de Fandangos.
Logo em seguida à publicação do artigo de Gibney, um site brasileiro produziu um texto que destacava que “Eliminar alimentos processados do cardápio não te deixa mais saudável”. Além de citar trechos do trabalho original, a reportagem abria espaço ao comentário de uma nutricionista. Foi aí que a história começou a se revelar.
Essa nutricionista atua como consultora da Nestlé. O editor do site brasileiro decidiu retirar o conteúdo do ar, admitindo um claro conflito de interesses.
Gibney também tem contrato com a Nestlé. Monteiro alertou que outros dois autores do artigo ocultaram seus conflitos de interesse. Um deles trabalhou entre 2010 e 2014 ligado a um centro de pesquisas da transnacional. E outro foi consultor de uma empresa que tem o McDonalds como cliente.
“Esperamos que este episódio possa gerar uma discussão produtiva sobre a conflituosa e crescente infiltração da indústria de alimentos ultraprocessados em instituições acadêmicas, sociedades profissionais e revistas cientificas”, cobrou o grupo de Monteiro.
Desde abril, pesquisando sobre essa área, vimos uma chuva de críticas contra a NOVA. Praticamente, todas partiram de cientistas com laços financeiros com a indústria de ultraprocessados.
Há alguns engenheiros de alimentos que fazem a ponderação de que, do ponto de vista deles, alimentos processados são processados e ponto. Não faz sentido separar pelo grau de processamento. Mas, ainda assim, alguns admitem que desde a perspectiva da nutrição e da saúde pública a classificação NOVA pode ser importante.
A Associação Argentina de Tecnólogos Alimentares tem Coca e Danone como patrocinadoras. O mesmo vale para suas entidades homólogas nos outros países da América Latina.
O American Journal, onde saiu o artigo do grupo de Gibney, é conhecido no meio acadêmico. É uma das publicações da American Society for Nutrition, que tem atualmente 28 empresas parceiras – Coca, Kellogg, Pepsi, Nestlé, Monsanto e daí por diante. A organização é uma defensora dessas corporações. Já chegou a administrar a emissão de um selo positivo que decorou embalagens de cereais altíssimos em açúcar, entre outros ultraprocessados.
Em 2015, a pesquisadora Michele Simon, especializada na indústria alimentícia, publicou um artigo no qual aborda os luxuosos eventos da American Society. De 34 painéis científicos na edição daquele ano, 14 eram bancados por empresas ou associações empresariais – sem contabilizar instituições de fachada.
“É precisamente porque a indústria de alimentos tem objetivos vastamente diferentes das organizações de saúde que essas relações são problemáticas”, escreveu. “De modo a assegurar sua credibilidade, refletir a ciência objetiva que o público tem em mente e manter a indústria de alimentos sob observação, é primordial que a American Society for Nutrition reconsidere seus laços financeiros.”
Havia ainda um ponto interessante no artigo de Simon. Ela chamava atenção para a defesa enfática da entidade ao processamento de alimentos. E aqui podemos voltar ao texto de Gibney.
“Em relação ao uso da classificação NOVA no desenvolvimento de documentos de diretrizes alimentares, nós mostramos que a definição ampla de ultraprocessados torna isso impossível”, defende o artigo.
Na verdade, tanto é possível que já está em dois documentos do tipo, no Brasil e no Uruguai. Por aqui, o Ministério da Saúde publicou em 2014 o Guia Alimentar para a População Brasileira. O trabalho foi desenvolvido justamente pelo grupo de Monteiro. E saiu com uma recomendação clara: evite o consumo de ultraprocessados. A indústria fez altos esforços para que o documento não fosse publicado, mas não conseguiu.
O trabalho brasileiro foi saudado por figuras de boa reputação do mundo da nutrição. A FAO o considera um dos melhores documentos de orientação alimentar. O conceito de ultraprocessados é cada vez mais usado cientificamente. “Durante a fase de consulta pública do Guia, um setor absolutamente comprometido com a linguagem da indústria dizia que o termo não iria funcionar”, conta Patrícia Jaime, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e à época coordenadora-geral de Alimentação e Nutrição do ministério. “É impressionante ver como hoje está sendo utilizado pelas pessoas para fora do campo técnico da nutrição. A gente vê na imprensa. O conceito está sendo apropriado porque faz sentido para as pessoas.”
Alguns documentos do Ministério da Saúde e do Ministério do Desenvolvimento Social adotam a NOVA. O ministro da Saúde, Ricardo Barros, determinou a proibição da venda de ultraprocessados nas dependências ministeriais — e ninguém por lá entendeu que isso significa não poder mais comer arroz ou produtos com farinha de trigo.
A Organização Panamericana de Saúde (Opas) adotou a NOVA para definir o modelo de perfil nutricional lançado no ano passado, que propõe que, se você consumir apenas alimentos que se encaixem nos padrões aceitáveis de sal, gordura, açúcar e calorias, ao final do dia provavelmente terá mantido uma dieta saudável. O documento é a base para a rotulagem frontal de processados e ultraprocessados no Uruguai, medida que está a uma assinatura de ser adotada.
Carlos Monteiro é respeitado pelos pares. Notamos isso não apenas circulando pelo congresso em Buenos Aires, mas nas entrevistas que fizemos com pesquisadores brasileiros cuja linha de raciocínio é oposta à dele. Todos reconhecem o rigor científico com que ele atua e a relevância de seu trabalho.
Por isso, via de regra, as críticas se concentram sobre o Guia e sobre a classificação. Logo em seguida à publicação do documento brasileiro, a American Society for Nutrition saiu em defesa dos processados, ignorando a linha divisória com os ultraprocessados, numa das primeiras indicações do rumo que o debate tomaria. Foi uma clara e rápida reação aos elogios que o trabalho recebeu na imprensa e na academia dos Estados Unidos.
O Guia brasileiro é pioneiro não apenas por falar sobre o grau de processamento, mas por propor uma linguagem acessível ao público em geral e pensar no alimento para além dos nutrientes, com o enaltecimento de questões culturais e do comer em conjunto.
A defesa enfática da American Society à indústria novamente levantou críticas de Michele Simon: “Em um momento em que os americanos estão crescentemente reconhecendo que os alimentos processados não são exatamente saudáveis, a posição é notavelmente surda.” Para ela, a única explicação para isso é a conexão com os patrocinadores.
No começo da década, Monteiro mostrou que o teto para o mercado de ultraprocessados é atingido quando correspondem a 60% da ingestão diária de energia, nível alcançado por alguns países do Norte. O Brasil, que foi de 20% e 28% na década passada, é portanto um mercado e tanto para a expansão. Ou uma nação que pode colocar um freio enquanto está no meio do caminho.
Este ano, o grupo de Monteiro divulgou na Public Health Nutrition um trabalho mostrando uma correlação direta entre ultraprocessados e obesidade: cada ponto de energia vindo de ultraprocessado eleva em 0,25 ponto a taxa de obesidade. Países com menor consumo apresentam índices mais baixos de obesidade.
Por isso, quando Gibney afirmou não haver evidências dessa correlação, Monteiro rebateu, acusando o colega de ignorar vários trabalhos científicos. “De fato, todos os estudos exceto o citado na ‘crítica’ mostram associações dos alimentos ultraprocessados com efeitos negativos à saúde”, diz o professor. O pesquisador da Irlanda deixou de fora dois estudos decorrentes de uma pesquisa de alta qualidade, feita na Espanha, que acompanhou durante nove anos um grupo populacional, mostrando a correlação do consumo de ultraprocessados com obesidade e hipertensão .
“O sistema de classificação NOVA desafia um sistema de classificação muito mais antigo e dominante, baseado na composição nutricional. É claro que deveria ser criticado. Mas os avanços científicos vêm da troca de argumentos embasados e razoáveis, e de um debate equilibrado”, lamentou o grupo brasileiro, em um comentário que acabou por sair no último dia 11 na Public Health Nutrition, depois que o editor do American Journal recusou abrir espaço às respostas dos pesquisadores brasileiros.
Ele tampouco quis publicar uma carta do professor da USP. E, até agora, não forneceu resposta quanto à omissão da relação entre alguns pesquisadores e empresas.