Apesar de haver uma tonelada de evidências científicas, os Estados vacilam na ação e as empresas avançam em novas estratégias
O mundo vive uma situação contraditória. Nunca houve tantas evidências científicas sobre a necessidade de criar regras para a publicidade infantil. E, no entanto, nunca houve estratégias tão bem-sucedidas e onipresentes de comunicação mercadológica voltada às crianças.
Nos últimos meses conversamos com pesquisadores e lemos uma tonelada de artigos científicos – ficamos surpresos, na verdade, com a quantidade e a antiguidade de estudos existentes. Apresentamos a seguir uma pequena amostra, um roteiro possível entre tantos para entender melhor o assunto.
Decidimos ficar apenas com as evidências mais recentes, as que lidam com um mundo em rápida transformação. Mas com liberdade de iniciar por um livro menos novo. Nascidos para comprar, de Juliet Schor, professora de Sociologia na Universidade de Boston, é deliciosamente desatualizado. Lançado no Brasil em 2009, o trabalho analisa o boom de estratégias de marketing voltadas aos menores.
O advento de tantas outras formas no mundo digital faz Nascidos para comprar perder atualidade em termos de táticas e cifras, mas ganhar em termos de sentido: é o estudo sobre a gênese da exposição incessante a marcas e produtos.
Arcabouço legal
No Brasil, a Constituição admite um papel compartilhado entre família, sociedade e Estado na “absoluta prioridade” da proteção dos direitos da criança, colocando-a a salvo de “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. O Código de Defesa do Consumidor veda qualquer publicidade abusiva.
E está bem assentada a ideia de que as crianças até por volta de 12 anos não têm total compreensão sobre os objetivos da publicidade e do marketing – embora os mais crescidos tenham uma capacidade de entendimento diferente dos menores. Um dos estudos para entender melhor essa correlação é o parecer escrito por Yves de La Talle, do Instituto de Psicologia da USP, para o Conselho Federal de Psicologia.
Apesar disso, as empresas continuam direcionando publicidade às crianças, e ganharam na internet todo um novo terreno para explorar táticas mais eficazes.
A discussão não vem de hoje. É de 2001 o Projeto de Lei 5.921, que veda a publicidade voltada a crianças. O autor, Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR), afirma nunca ter visto lobby tão forte no Congresso. E o texto segue parado.
A situação do Brasil poderia ser diferente com a Resolução 24, editada em 2010 pela Anvisa. O texto legal previa restrições à publicidade de alimentos com excesso de açúcar, sal e gordura saturada. Entre a primeira versão do texto, construída em 2006, e aquela aprovada em definitivo, a pressão do setor privado conseguiu muitos recuos. Que, ainda assim, foram alvo de contestação judicial, com vitória para as empresas.
Em 2011, o Grupo de Trabalho de Comunicação Social do Ministério Público Federal divulgou uma nota técnica na qual considera que a publicidade direcionada a crianças é enganosa e abusiva. Os procuradores partem da premissa de que a falta de compreensão sobre os objetivos da comunicação mercadológica é, por si, motivo para proibir esse tipo de conteúdo.
Em 2014 o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou a Resolução 163, que considera abusiva a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”.
O documento declara ilegal o uso de linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; representação de criança; pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; personagens ou apresentadores infantis; desenho animado ou de animação; bonecos ou similares; promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.
No entendimento das empresas, uma resolução do Conanda não tem valor impositivo. E é essa interpretação que as permite seguir direcionando publicidade às crianças, sob o argumento da liberdade de expressão e da necessidade de não colocar os pequenos numa “bolha”.
Na visão de um dos estudos mais importantes feitos no Brasil, o que se faz hoje é deixar as crianças na bolha do consumismo. “Publicidade Infantil em tempos de convergência” foi conduzido pelo Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia da Universidade Federal do Ceará a pedido do Ministério da Justiça.
Foi realizado um levantamento qualitativo com crianças entre 9 e 11 anos de São Paulo, Rio Branco, Brasília, Porto Alegre e Fortaleza. O relatório reúne uma série de falas que deixam clara a dificuldade de entender a publicidade. E como essa publicidade se transforma em um efeito amolação para que os pais comprem produtos. O trabalho sugere ainda uma série de medidas a serem adotadas por governos e empresas.
Exposição
Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais estão tentando entender o impacto dessa publicidade. Um primeiro levantamento analisou dois dias de programação das quatro emissoras de maior audiência do país. Do total de 2.732 comerciais, 10,2% eram alimentos. Desses, 60,7% eram ultraprocessados e 31,9% eram bebidas alcoólicas.
As análises feitas em outros países são bem parecidas. Mudam apenas os produtos. Na Argentina, em 1.440 horas de gravação foram encontradas 21.085 propagandas. Dessas, 3.576 eram alimentos. Durante os programas infantis, 98,9% dos produtos eram processados ou ultraprocessados. Bebidas adoçadas (35,3%), lácteos (12,2%) e sobremesas (8,2%) comandavam a lista.
No México, os 2.546 anúncios de alimentos e bebidas corresponderam a 20,7% do total. Bebidas (24,6%), chocolates e doces (19,7%), bolos e biscoitos (12%), salgadinhos (9%) e cereais (7,1%) foram os itens mais divulgados. Durante os desenhos eram exibidos os anúncios de produtos com os piores índices de calorias e açúcar. 83,1% dos produtos não cumpriram o mínimo aceitável nos critérios da Organização Mundial de Saúde.
Custo-benefício
Um estudo publicado em agosto de 2017 pela The Economist, a pedido do Instituto Alana, mostra que a proibição da publicidade infantil traz mais ganhos do que perdas. O mercado publicitário teria prejuízo, e as vendas de brinquedos e fast-food seriam as mais afetadas.
Mas a redução dos custos do sistema de saúde com obesidade infantil e os ganhos em termos de vida produtiva compensariam as perdas, nos cálculos da Unidade de Inteligência da The Economist. No cenário mais otimista, o país ganharia R$ 76 bilhões em 15 anos. A ausência de alguns dados faz com que as estimativas não sejam plenamente precisas. Mas o importante é a mensagem de que o custo-benefício compensa.
Para reforçar esse aspecto, um grupo de pesquisadores australianos acaba de publicar um estudo sobre a efetividade de restrições na publicidade de bebidas e comida-tranqueira até 21h30 nos canais abertos. A conclusão é de que a medida custaria o equivalente a R$ 15,9 milhões, e traria benefícios de R$ 2 bilhões. Seriam poupados quase 90 mil anos de vida, com ganhos maiores entre os mais pobres, justamente os mais atingidos pela publicidade.
Correlações
Mas como é possível calcular anos de vida? Em parte porque vêm de longa data os estudos que tentam determinar a influência da televisão sobre o ganho de peso e as doenças crônicas. De 2010, um artigo na Public Health Nutrition condensa os dados para vários países. Nos Estados Unidos, poderia haver 40% menos crianças obesas se não fosse a exposição a anúncios na TV, segundo um dos métodos estudados.
Uma revisão sistemática publicada em 2016 no American Journal of Clinical Nutrition aborda a correlação entre exposição a publicidade e consumo imediato de refrigerantes. Tanto internet como televisão mostraram um efeito significativo sobre as crianças, e menos significativo sobre os adultos, reforçando a necessidade de proteção infantil. Os autores constataram que os anúncios levam a um pequeno aumento do consumo individual. E que é justamente esse pequeno aumento que, no longo prazo, causa sobrepeso e obesidade.
Autorregulação
O setor privado defende a autorregulação como forma mais eficaz de controle. As regras criadas pelas próprias empresas teriam aplicação mais rápida, estariam sob a fiscalização de órgãos especializados e preservariam o dinheiro público.
Mas as evidências científicas vão para o lado oposto. Você pode ler o livro recém-lançado pelo Instituto Alana, Autorregulação da Publicidade Infantil no Brasil e no Mundo.
Há também artigos interessantes. Em 2010, a OMS alertou os países sobre a necessidade de restringir a comunicação mercadológica voltada a crianças. Um artigo revisou o que foi feito desde então. A maior parte dos países deixou a cargo da autorregulação.
Algumas empresas de alimentos prometeram direcionar aos menores apenas o marketing de produtos que atendessem a certos critérios nutricionais, mas, no geral, esses critérios são muito frouxos.
O resultado: até 2016, nenhuma marca havia deixado de se comunicar com crianças de menos de doze anos. E, como sempre, parcerias público-privadas foram buscadas ativamente em áreas correlatas numa tentativa de demonstrar boa vontade e retardar a ação do Estado.
Uma investigação feita pelo Center for Science in The Public Interest mostrou que a Coca-Cola foi capaz de violar o próprio acordo. A fabricante continuou a direcionar anúncios a canais infantis e a se valer de celebridades e personagens (quem aí não conhece o Urso Polar da Coca?). “O que quer que a Coca prometa, sua meta evidente é implantar seus produtos profundamente na cultura infantil”, disse o presidente da organização, Michael Jacobson.
Um artigo mais antigo, de 2010 na Public Health Nutrition, analisou as prateleiras de supermercado após o acordo de autorregulação firmado pelo setor privado nos Estados Unidos em 2006. Os autores compararam a evolução dos produtos oferecidos em venda casada, ou seja, quando há uma promoção com a entrega de um brinde.
A ideia era verificar se, com restrições na TV, as gôndolas haviam se tornado um espaço preferencial de promoção de tranqueiras. E a resposta é… sim. A composição nutricional desses produtos piorou ao longo dos anos e o número de itens ofertados aumentou. A seguir nessa toada, dizem os pesquisadores, o Estado deveria agir.
Um trabalho publicado no ano seguinte chega a conclusões parecidas. Embora o nível nutricional dos produtos anunciados na TV tivesse apresentado alguma melhora, estava longe do razoável: 86% dos produtos eram excessivos em sal, gordura e açúcar.
Para Belinda Reeve e Roger Magnusson, da Escola de Direito da Universidade de Sidney, isso mostra que a fixação de perfis nutricionais pelo setor privado tende a ser frouxa. E cria a ideia de que o que está sendo publicizado é bom, quando não é.
Em um artigo publicado este ano, eles fazem uma extensa revisão. E concluem que a autorregulação carece de transparência: a sociedade e os Estados não conseguem fiscalizar o que está sendo feito pelas empresas. Em todos os casos estudados, sequer foram chamados a participar da definição das metas. A punição, além de improvável, é branda. O que fica claro para os autores, que são da Faculdade de Direito de Sidney, na Austrália, é que embora a regulação tenha problemas, sempre funciona melhor.
Cenário digital
Chegamos ao admirável mundo novo, do qual já tratamos em outras reportagens. O universo digital tem revelado formas de marketing antes impensáveis. Um bom ponto de partida para encontrar uma linha de raciocínio é o artigo “Nova mídia, mas os mesmos velhos truques: marketing de alimentos para crianças na era digital“, de 2015, quando essas estratégias explodiram.
A professora Bridget Kelly, da Universidade de Wollongong, na Austrália, tem tentado encontrar métodos para lidar com as novas formas de marketing. Recentemente, o grupo dela revisou as evidências acumuladas em relação ao público jovem. No geral, ficou claro que o marketing pode levar inclusive pessoas mais velhas a mudanças de comportamento.
E que muitas não se dão conta de que foram envolvidas por algum tipo de propaganda no cenário digital. Duas das sugestões: o Facebook deveria banir anúncios de certos tipos de produtos e deveria haver mecanismos claros de bloqueio de publicidade para crianças.
No Brasil, além do estudo mencionado lá no começo, com grupos focais, há alguns outros que valem o tempo investido. “Geração YouTube: um mapeamento sobre o consumo e a produção infantil de vídeos para crianças de zero a 12 anos (2005-2015)“, de Luciana Corrêa, do Media Lab da ESPM, foi um dos primeiros a sacar a influência que a plataforma de vídeos estava conquistando. Ela vem atualizando os dados, de modo que vale a pena ficar ligado na página do Media Lab.
Já a TIC Kids Online tem edições anuais sob a coordenação do Comitê Gestor da Internet. É o estudo quantitativo mais completo sobre o uso da rede pelas crianças. Em linhas gerais, expõe um crescimento rápido do uso de celulares e a exposição dos menores tanto a publicidade como a discriminação e atos de violência. Em 2016, 43% declararam ter pedido algum produto aos pais após contato com marcas na internet, contra 30% em 2014.
E tudo indica que, dentre as formas de publicidade virtual, os advergames funcionam melhor do que tudo ao misturar joguinhos com marcas. Um artigo recém-publicado pelo grupo de Bridget Kelly analisou o comportamento de crianças expostas a publicidade tanto na TV como no computador. Primeiro, assistia-se a publicidades. Depois, comia-se. Os games conduziram a uma maior ingestão calórica.
No estudo feito pela Federal do Ceará, as crianças relatavam gostar dos advergames porque não eram interrompidas por anúncios, à diferença do que ocorre no YouTube. “Tudo indica que as crianças são levadas a se divertirem com as marcas e personagens sem se dar conta, muitas vezes, de que ali está sendo construído um processo de fidelização de marcas e de promoção das práticas de consumo.”