Associação das empresas cobra publicamente nomeação de diretor alinhado na Anvisa, e presidente demonstra desconhecimento sobre alertas nos rótulos
Michel Temer perdeu mais uma chance de manter o silêncio. Incensado pela indústria de alimentos ultraprocessados, o presidente da República demonstrou total desconhecimento sobre a proposta de adoção de advertências nos rótulos para indicar o excesso de açúcar, sal e gorduras saturadas.
O almoço na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), na segunda-feira (30), serviu a mais um pedido de intervenção. Wilson Mello, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), disse que a colocação de um alerta associaria os produtos que vende a um perigo à saúde, segundo informações do jornal Folha de S. Paulo.
Temer não titubeou: “É importantíssimo. Essa coisa do triângulo, que você [Mello] mencionou, que é sinal de perigo, se não tomar cuidado daqui a pouco bota tarja preta no alimento. Vai prejudicar o setor.”
Em tempo:
- A decisão está nas mãos da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), um órgão regulador que, por mandato, goza de autonomia em relação ao Ministério da Saúde e ao Poder Executivo como um todo.
- Temer deveria revisar algumas evidências científicas antes de falar em público. Ou manter o silêncio. Todos os estudos existentes demonstram o bom funcionamento dos alertas em comparação com o modelo proposto pela indústria, em formato de semáforo.
- Sim, é um perigo: cada vez mais pesquisas científicas têm exposto que os altos índices de sal, açúcar e gorduras de produtos ultraprocessados favorecem o desenvolvimento de obesidade e de doenças crônicas.
- Temer não é obrigado a ser especialista em alimentação. No entanto, é de se esperar um mínimo de fundamentação no que é dito por um presidente da República. Tudo bem que é difícil imaginar que alguém espere seriedade dele, mas até para uma unanimidade nacional há limites.
No mínimo, Temer deveria saber dos dados do Ministério da Saúde: as doenças crônicas não transmissíveis causam três em cada quatro mortes no Brasil. Tabaco, alimentação, álcool e atividade física são os fatores que explicam o problema.
A fala dele também expõe o descasamento entre as prioridades do mundo político-partidário e os problemas da sociedade. Essa deveria ser uma agenda central do Executivo e do Legislativo, mas poucas figuras desse universo são capazes de tratar o assunto com a devida seriedade. Como mostramos recentemente, tampouco se pode esperar conhecimento de causa pela maior parte dos candidatos à Presidência.
De outro lado, novamente chama a atenção que a indústria de alimentos busque a intervenção externa ao processo na Anvisa. Primeiro, tentou-se via Ministério da Saúde. Quando Ricardo Barros era o titular, não funcionou porque ele tinha convicção sobre o melhor funcionamento dos alertas. Depois, Gilberto Occhi, que assumiu o cargo recentemente, chegou a ecoar os argumentos das empresas, mas recuou.
Chegou, então, a vez de o Judiciário ser acionado em socorro das corporações, que conseguiram estender em 15 dias o prazo para a consulta pública sobre rotulagem na Anvisa. Uma operação meramente protelatória, na visão da agência, que se sentiu invadida e desrespeitada, acusando a Abia de se valer de informações “infundadas” e “inverídicas”.
Agora, o impopular presidente vira a bola da vez na tentativa de evitar uma medida importante para o direito da população de saber o que está comendo. Com um pedido claro de intervenção por parte de Wilson Mello: “Tudo passa por uma escolha que Vossa Excelência [Temer] tomará, que é a escolha do novo presidente da Anvisa. Isso acontecerá nos próximos meses. Nosso único pedido é que seja alguém que continue dialogando com a indústria”, afirmou.
Jarbas Barbosa, o diretor-presidente que deixou recentemente o cargo, disse ter se reunido oito vezes com representantes da Abia desde o ano passado para discutir o assunto. Diálogo não faltou. Mas diálogo pressupõe a capacidade de discordar.
E a apresentação de informações que não induzam o interlocutor a engano. Mais uma vez, a Abia se valeu de dados imprecisos ao falar sobre os alertas. Já mostramos como as empresas estão exagerando, sem nenhum fundamento, falando do impacto negativo dessa medida sobre a criação de empregos.
Agora, o presidente da associação disse que o segmento responde por 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. No ano passado, toda a indústria de transformação respondeu por 11,8% do PIB. Nessa conta entram setores de maior valor agregado, como montadoras, e outros segmentos relevantes para a balança comercial, como a siderurgia. A menos que a Abia tenha tomado para si os números da agropecuária, é impossível chegar a 10%.