Pesquisadora das relações entre infância e mídia, Inês Silvia Vitorino Sampaio sugere colocar limites para uso de redes sociais e mais regras sobre publicidade
Amolação, irritação, humilhação: é difícil encontrar alguma expressão positiva associada à publicidade infantil. Crianças entrevistadas pelo Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia da Universidade Federal do Ceará dão expressões precisas ao sentimento de incômodo provocado pelos anúncios exibidos na televisão e na internet.
“Incômodo é tudo o que retira da condição de bem-estar”, diz a professora Inês Silvia Vitorino Sampaio, veterana nos estudos sobre publicidade infantil. “A gente percebe que essas políticas [públicas] não são definidas exclusivamente em favor do melhor interesse da criança. Porque, se fossem, essas políticas estariam muito bem estabelecidas, mas são definidas muito mais pelo peso e pela força das grandes empresas no embate com a sociedade civil.”
Em 2014, a pedido do Ministério da Justiça, o grupo coordenado por ela comandou a realização de grupos focais com crianças de 9 a 11 anos em São Paulo, Rio Branco, Brasília, Porto Alegre, Fortaleza. O levantamento qualitativo foi um passo importante para a definição de um modelo de regulação da publicidade infantil.
Um passo interrompido, segundo Inês, pela chegada de Michel Temer ao Planalto. “É um golpe que está levando a efeito uma política de interesse de empresas. De longe não é o interesse da sociedade brasileira. No momento em que houve o golpe eu já tinha a percepção de que nenhuma política regulatória iria avançar. É um golpe neoliberal.”
Uma das muitas conclusões importantes da pesquisa é a dificuldade das crianças em identificar a publicidade no ambiente virtual. Isso, em 2014. Passados quatro anos, com a explosão do YouTube e das redes sociais como espaços preferenciais das crianças, os desafios se agigantaram. Para a professora, não há dúvida: a internet, como qualquer outro espaço de convívio social, deve ter regras estabelecidas pela sociedade – e não pelas empresas.
A seguir, os principais trechos da entrevista que ela nos concedeu por telefone.
Pergunta — O que é uma política ideal de regulação da publicidade infantil?
Resposta: Eu diria que depende da compreensão que a sociedade concebeu da relação do Estado com as políticas de publicidade. A gente percebe que essas políticas não são definidas exclusivamente em favor do melhor interesse da criança. Porque, se fossem, essas políticas estariam muito bem estabelecidas, mas são definidas muito mais pelo peso e pela força das grandes empresas no embate com a sociedade civil daquele país.
O que a gente percebe claramente é que não há uma postura do Estado mais alinhada à defesa dos direitos da criança. Deixa tudo nas mãos do Congresso. E a gente sabe como os interesses das grandes empresas atuam no Congresso. Temos um projeto em que o relator é ligado aos interesses de um grande fabricante de refrigerante. Se o próprio interessado é quem faz parecer, como vai avançar a política regulatória? Não acontece. A Constituição diz que o interesse da criança é prioridade nacional, mas não é isso que acontece.
Além da questão do incômodo, quais os principais achados da pesquisa com crianças?
Quando falo em incômodo, é uma forma genérica de falar de vários aspectos. Incômodo é tudo o que retira da condição de bem-estar. É tudo que aborrece, incomoda a criança. Que situações a gente tem relatadas na pesquisa que evidenciam isso? As crianças reclamam da obrigação de ver, do excesso de publicidade. E então vêm perguntas do tipo ‘eles pagam para colocar a publicidade?’. Isso revela que a criança vê publicidade que não é para ela e que ela não entende por que tem que ver a publicidade, o que evidencia que a criança não está preparada para lidar com a lógica desse sistema.
A intensificação da exposição cria um desconforto. Na TV, estava bem delimitado o que era propaganda. A criança não está ali para ver propaganda: está para ver o programa. É a revelação de mais um incômodo, de ruptura do momento de lazer. Aí tenho que essa criança é obrigada a ver essa publicidade.
Com a internet isso se intensificou em demasia e fica claro que é mais difícil para a criança identificar o que é publicidade. Tenho uma série de youtubers crianças cujos canais exibem produtos. Nem sempre fica claro que é uma publicidade. A maioria das vezes isso não está colocado. A criança vai brincar com alimentos, dizendo que são saborosos, sem qualquer discussão sobre a natureza nutricional dos alimentos. Tenho uma publicidade que não está declarada, que é um menino da mesma idade da criança que está vendo. É uma situação difícil para a criança entender.
Outra coisa é a percepção de influência. Algumas crianças claramente percebem a influência que a publicidade tem. De descrever o efeito amolação, ou a humilhação dos pais. Tem um desgaste na relação. Mas desde os produtos mais caros até os mais simples, são as crianças que dão o depoimento dizendo que a publicidade tem uma influência. São elas reconhecendo esse processo.
Todas reconhecem? Não. Por isso é importante ter um estudo complementar de caráter estatístico.
A internet intensificou bastante a exposição à publicidade. Como poderia ser a regulação?
Essa é uma temática delicada. Como qualquer espaço societário, não existe espaço societário em que não haja processo de regulação das práticas. Eu não posso chegar em sala de aula e desrespeitar o aluno. Eu não posso chegar na rua e provocar o caos. Então, todos os espaços precisam de algum nível de regulação.
O ideal é que a regulação ocorresse de forma direta entre os cidadãos. Acontece que a internet reúne públicos os mais diferentes, interesses os mais diferentes. Então, quem define as regras? Hoje, quem define as regras são predominantemente as empresas. E a sociedade está envolvida num processo definido por regras construídas pelas empresas.
Então, essa regulação deve se dar a partir de uma escuta da sociedade organizada. Não se fala de uma política de Estado alheia à diversidade da sociedade. Dizem que se houver regulação será censura. Não. Censura é o que temos hoje. Só aparece o que as empresas querem. O que não querem, não aparece, basta ver pelas empresas de jornalismo que a gente tem, que nos furtam informações importantes que dizem respeito ao direito do cidadão por informação de qualidade.
Sociedade não é um indivíduo particular. O mercado não é sociedade. A gente precisa que a política regulatória se faça a partir de um grande debate. Não se deve fazer regulação por cima, determinando o que um grupo do Estado deseja. Trata-se de um diálogo. A Suécia, quando baniu publicidade para criança, o fez através de um plebiscito. Cada país tem sua história, suas práticas, e isso tem que ser levado em conta. O Brasil não é um país onde não tenha uma sociedade civil com representantes de diversos grupos. Então, é construir esse diálogo.
Veja entre os maiores youtubers do Brasil qual deles não está rodeado de comunicação mercadológica. Eu sinto dizer, mas você não vai encontrar. Porque os conteúdos de comunicação são definidos por quem financia. E se quem financia o conteúdo são as empresas, os conteúdos que vão trazer terão predominantemente o objetivo de vender produtos. Em 90% daquilo que a gente vê no circuito desses youtubers infantis que têm uma audiência maior estão produtos. É tudo no circuito do consumo. Não dá para dizer que essa criança individualmente está exercendo o poder de participar. Nesse contexto, em que os conteúdos são todos mercadológicos, não dá. Essa lógica é a que predomina. A lógica do mercado. As pessoas se tornam peça desse sistema.
Há um discurso de culpabilização dos pais. Como funciona?
A gente vive numa sociedade com responsabilidades compartilhadas. Eu diria que para certas questões a responsabilidade é inteiramente dos pais. Criança não assina contrato, criança está num processo de aprendizagem. Ela segue a orientação dos pais até uma certa idade. Depois começa a criar uma visão própria.
Os modelos de conduta vêm muito da relação com os pais. Antigamente, era com os pais e ponto. Hoje, é com os pais e com toda a comunicação que está na vida das crianças. E uma comunicação que às vezes está mais presente que os pais. Porque os pais saem para trabalhar, os pais têm responsabilidades, têm tarefas em casa.
Esses pais são conclamados o tempo inteiro a estar fora de casa para sustentar esses filhos, essas compras. Muitas vezes, em casa a criança tem acesso a um celular, e isso dá acesso a tudo que você pode imaginar. São crianças bombardeadas o tempo inteiro por publicidade.
Não quero dizer que a criança não tenha responsabilidade alguma. Ela tem de acordo com o entendimento da idade. Mas a responsabilidade muito maior é dos pais.
Enquanto não há regulação, o que é possível fazer?
Não posso trazer um manual, mas algumas questões são fundamentais. Primeiro, restringir o tempo das crianças nas mídias móveis. O Brasil sempre foi um dos países com maior exposição das crianças à televisão. As crianças viam até cinco horas de programação, enquanto a recomendação na Europa era de que não se passasse de uma hora. Então, mesmo no tempo da televisão a criança brasileira já estava muito exposta.
Você vai dar o celular para o seu filho muito cedo? Já pensou nas implicações disso? A criança realmente precisa desse celular? A publicidade vem com o discurso de que entregar o celular para a criança é uma forma de projetá-la para um futuro melhor. É?
Que tipo de condição você tem para dar orientação para o seu filho? Olhar com eles, conversar, discutir, orientar. Dizer o que é um valor da família. Dizer que o alimento não é saudável. Que a embalagem tenta estimular o consumo. Então, é importante que os pais contribuam com estratégias de esclarecimento da comunicação mercadológica. É preciso dedicar um tempo a isso.
Segundo, ofereça opções de lazer ao seu filho longe de shopping. Longe de espaços comerciais. Quando a criança está com o pai e com a mãe, quer fazer alguma coisa legal, levam para o templo do consumo. A criança vai querer consumir. Então, procure opções. Que grupos estão fazendo coisas alternativas. Que opções há na sua cidade.
Tem muitas coisas que você pode fazer para que a criança comece a refletir sobre isso. A publicidade anuncia um produto como se ele surgisse do nada. Por mágica. A criança acha que vive num mundo mágico. Precisa explicar para essa criança de onde é esse produto, como foi feito, o trabalho de pais e mães que tiveram de deixar suas casas. Para não ter uma relação de descarte com o produto. Há países inteiros que estão se transformando em lixo eletrônico.
Isso tudo dá uma contra-informação. E eu digo que não é suficiente. Não é. Mas é o que está ao alcance dos pais. O cidadão tem que se aliar numa luta mais ampla pela regulação da publicidade. Participar desse processo.