Banco diz que cabe à Anvisa zelar por questões de saúde. Recursos foram usados para concentrar mercado, financiar ‘campeãs’ de ações trabalhistas e envolvidas em danos ambientais
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) investiu quase R$ 10 bilhões em corporações de alimentos e bebidas ultraprocessados desde 2002. O levantamento realizado pelo Joio inclui apenas fabricantes de produtos finais e que integram o Conselho Diretor da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), que congrega as principais fabricantes. Ficam de fora empresas responsáveis por aditivos e ingredientes em geral, como a Ajinomoto, beneficiária de R$ 236 milhões no período.
Os números sobem exponencialmente quando entram na conta as megacorporações do setor de carnes. A JBS ocupa a 20ª posição no ranking dos maiores beneficiados por empréstimos e investimentos, com R$ 7,6 bi. A Brasil Foods, 41ª, conseguiu R$ 4,6 bi, e a Marfrig angariou R$ 4 bi. Embora o carro-chefe dessas empresas não sejam alimentos ultraprocessados, estão ou estiveram envolvidas em escândalos de corrupção, violações trabalhistas e fraudes reveladas pela Operação Carne Fraca, sem contabilizar os efeitos ambientais da criação de gado e dos frigoríficos.
Os recursos do banco, por sinal, resultaram em concentração de mercado e no financiamento de empreendimentos investigados por danos ambientais e infrações trabalhistas. Obtivemos, usando a Lei de Acesso à Informação, dezenas de contratos firmados entre o BNDES e as empresas. Constatamos que as contrapartidas trabalhistas e ambientais são poucas ou não têm critérios claros, apesar de antigas cobranças de organizações da sociedade. Não há qualquer cálculo de impacto à saúde pública dos produtos fabricados com o apoio da instituição.
Questionado, o banco informou que “entende que é responsabilidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) zelar pela observância das exigências socioambientais em relação aos alimentos processados. O Banco, quando da assinatura de contrato, exigiu de todas as empresas cujos contratos você obteve a assinatura de um termo de compliance, em que estas assumem atuar em conformidade com os órgãos reguladores e/ou fiscalizadores da suas atividades econômicas”.
Alimentos ultraprocessados, como salgadinhos, biscoitos e refrigerantes, estão associados à obesidade, que cresceu rapidamente no país nas últimas décadas – obesidade e sobrepeso são uma questão para mais da metade dos brasileiros.
Um estudo de 2013 calcula em US$ 5,8 bilhões ao ano os gastos associados à obesidade, por hipertensão, doenças cardiovasculares, diabetes e câncer, entre outros problemas. Se nada for feito, os custos podem dobrar até 2050.
O Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, claramente recomenda que se evite o consumo de ultraprocessados. Ou seja, enquanto a diretriz oficial do Ministério da Saúde vai para um lado, a política de financiamento vai para o outro.
Como foi feito o cálculo
Nosso levantamento levou em conta quatro modalidades de financiamento:
- Diretamente pelo BNDES;
- Contratos assinados com outras instituições financeiras, mas com recursos do banco;
- Recursos para estímulo à exportação;
- Participação acionária do BNDES em empresas.
A atuação do banco entrou no radar de organizações sociais e associações empresariais devido à ênfase no financiamento de grandes grupos, em detrimento de pequenas e médias empresas, e aos efeitos colaterais dos projetos apoiados.
Campeões sob suspeita
O setor de carnes foi um dos escolhidos para a política de “campeões nacionais”, como ficou conhecida a iniciativa de formar grandes grupos brasileiros para competir no mercado internacional. A JBS se tornou uma das maiores empresas de alimentos do mundo, contando não apenas com financiamento do BNDES, como com participação acionária direta.
É o mesmo caso da Brasil Foods. Recursos públicos foram usados para alavancar a empresa resultante da fusão entre Sadia e Perdigão, em 2008. No ano seguinte, o banco aportou R$ 400 milhões em participação acionária.
Um relatório da ONG Repórter Brasil mostra que o índice de concentração no setor atingiu 0,52 em 2014, num índice que vai de 0 a 1, bem acima da média geral do setor de alimentação (0,2).
Em 2015, a Associação Brasileira de Frigoríficos alertou que as cerca de 600 pequenas e médias empresas desse segmento estavam sob risco de desaparecer devido à “brutal dominação que se instalou”. O presidente-executivo da organização, Péricles Salazar, acusou haver uma grave assimetria. “O BNDES criou um gigante que está engolindo a tudo e a todos e que parece fora de qualquer controle.”
Doce vida
Gigantes também se fortaleceram no setor de bebidas. Refrigerantes, energéticos e sucos têm alta concentração de açúcar, e são produtos associados a cáries, obesidade e diabetes. Depois dos frigoríficos, esse é o setor que mais se beneficiou de recursos do BNDES. A Ambev amealhou R$ 4,7 bilhões e fica na 39ª posição de maiores clientes do banco. Parte foi usada na fabricação de bebidas alcoólicas. Mas os contratos mostram que também houve repasses grandes às fabricantes dos xaropes de refrigerantes das linhas Pepsi e Guaraná.
As várias engarrafadoras do sistema Coca-Cola somaram outros R$ 2,4 bi.
Essas corporações estão envolvidas num esquema de cobrança de créditos tributários por impostos que nunca foram pagos, somando ao menos R$ 7 bi ao ano. A operação é contestada pela Procuradoria da Fazenda Nacional e pela Receita Federal, que investiga a Coca por notas fiscais com valores artificialmente majorados de forma a receber mais créditos.
Entre as engarrafadoras, as maiores beneficiárias são a Femsa, que tem participação acionária da própria Coca e é um dos maiores grupos econômicos alimentícios do mundo, com R$ 597 milhões, e a Norsa Refrigerantes, com R$ 584 milhões. Um dos ápices do desembolso para a Norsa se deu em 2012, com R$ 187 mi, justamente em meio à fusão com a Guararapes e a Renosa. A Solar, resultado dessa operação, tem o virtual monopólio da distribuição de produtos da Coca no Nordeste.
A empresa é comandada pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Documento que revelamos mostra que em 2008 ele usou o cargo público para mediar uma reunião entre o presidente da empresa na América Latina, Brian Smith, e o então ministro da Fazenda, Guido Mantega. A ideia era evitar que o governo mudasse a tributação das corporações do setor de bebidas não alcoólicas, operação na qual o parlamentar teve sucesso.
A Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras), que representa empresas regionais, é outra que se queixa de concentração de mercado. Segundo a empresa, em 1960 havia 892 fabricantes de refrigerantes. O número foi se encolhendo até chegar a 235 em 2015. No ano 2000, as pequenas produziam 2,72 bilhões de litros, contra 1,04 bilhão 15 anos mais tarde. No mesmo período, que coincide com o ápice dos créditos da Zona Franca de Manaus e os desembolsos do BNDES, as grandes saltaram de 5,78 bilhões para 13,86 bilhões, segundo a entidade.
Condições favoráveis
Documentos que obtivemos e as planilhas disponíveis na página do banco mostram condições favoráveis de pagamento. Em alguns casos, as empresas têm até três anos de carência. E raramente a taxa de juros ultrapassa 5% ao ano (há contratos de 1% ao ano). Para ter uma base de comparação, os juros para o crédito de pessoa física ficam entre 65% e 75% ao ano nos maiores bancos de varejo, segundo dados do Banco Central. As taxas para cheque especial chegam a 530%.
Mesmo entre pessoas jurídicas, os juros no setor privado podem passar de 90% ao ano.
Organizações da sociedade têm cobrança de longa data por transparência. Na década passada reuniram-se numa iniciativa batizada de Plataforma BNDES. Mais recentemente, o Fórum de Diálogos BNDES e Sociedade resultou em avanços no que diz respeito às exigências socioambientais. Mas foi só pela via judicial que o banco começou a liberar o acesso aos contratos de financiamento, como os que conseguimos por Lei de Acesso à Informação.
Um relatório da Conectas Direitos Humanos em agosto de 2014 cobrava a adoção de uma política clara para direitos humanos, a condução de análises de impactos sociais detalhados em todos os projetos financiados e melhorias na Ouvidoria para que essa estrutura pudesse exercer papel ativo na solução de problemas.
Hoje, o banco tem uma política de critérios socioambientais para três setores: pecuária; açúcar e álcool; e geração de energia elétrica.
No caso da pecuária, o acordo foi necessário depois de vários flagrantes de trabalho escravo e crimes ambientais em propriedades ligadas a empresas financiadas pelo BNDES. De novo, apesar de avanços, segue a haver problemas.
Para a Conectas, a reação do banco diante de violações “visíveis e inegáveis” era “bastante conservadora”. No geral, a instituição pública assumia papel passivo, sem uma afirmação forte e prévia de respeito a questões socioambientais. Isso colocou o BNDES no foco do Grupo de Trabalho de Empresas e Direitos Humanos da ONU, que visitou o Brasil em dezembro de 2015.
Foi recomendado que o banco abrisse um canal de diálogo com a sociedade para a criação e a revisão de políticas para a concessão de financiamento. Em relatório publicado em maio de 2018, a Conectas constata que, de novo com alguns avanços, há falhas na implementação da política de responsabilidade socioambiental e falta de transparência em relação aos critérios adotados.
Os contratos que obtivemos vão de 2003 a 2017. Em qualquer caso, em termos ambientais as empresas precisam apresentar algumas certidões que dão conta de que não estão envolvidas em irregularidades.
Entre os empreendimentos patrocinados pelo BNDES há, porém, violações ambientais. Em 2010, o banco emprestou quase R$ 6 milhões à Danone para obras na fábrica em Jacutinga (MG). Em 2015, a empresa firmou acordo com o Ministério Público Estadual para pagar R$ 5 milhões por medidas compensatórias em virtude de problemas ambientais nessa unidade.
Apresentada como “exemplo de sustentabilidade” e “fábrica verde”, a unidade da Coca-Cola Femsa em Itabirito, Minas Gerais, recebeu R$ 180 milhões de recursos públicos federais. Agora, organizações sociais acusam que a fábrica é responsável pelo desaparecimento de nascentes na região. O Ministério Público investiga o caso, e considera “insuficientes” os estudos feitos até agora a pedido da empresa.
Em termos trabalhistas, não há cláusulas que proíbam demissões. O que há é uma observação padrão de que, durante a vigência do contrato, trabalhadores demitidos devem passar por programas de recolocação profissional. Não há especificações sobre como esses programas devem ser executados: podem durar uma hora, um dia, um mês ou um ano. Além disso, empresas que constam da Lista Suja do Trabalho Escravo, atualizada pelo Ministério do Trabalho, não podem contratar com o banco.
Algumas das líderes de financiamento do BNDES estão no topo da lista de processos na Justiça do Trabalho. Considerando apenas dados de janeiro a julho de 2018, a JBS acumulava 1.396 ações, na condição de primeira da área de agropecuária.
Olhando para a indústria nacional como um todo, a Brasil Foods soma 2.129 casos, atrás apenas da Petrobras. A Ambev vem em quinto, com 716, seguida por Femsa e Pepsico.