Documentos mostram como a corporação tentou usar o maior centro de pesquisas do país para influenciar a OMS e evitar a adoção de impostos sobre refrigerantes
A gigante de refrigerantes Coca-Cola quer ser parça das autoridades que tomam decisões nas políticas de saúde pública. Em um estudo publicado na terça-feira (29), quatro pesquisadores independentes reuniram um compêndio de trocas de email da megacorporação com funcionários do Centro para o Controle e a Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), ligada ao Departamento de Saúde dos EUA, que é o equivalente deles ao nosso Ministério da Saúde.
A Coca-Cola não brinca em serviço. As conversas são quentes e mostram que o assédio dela vem por todos os lados, e tem gente que passa o pano. Nas mensagens, a empresa de bebidas açucaradas busca se aproximar de funcionários do alto escalão do CDC, para que estes revejam programas que possam atrapalhar seus negócios. Ou tenta convencer a área técnica do órgão a tomar decisões com base em estudos acadêmicos que ela mesma financia.
Parênteses: um dos modos de ação da empresa, há muito tempo, tem sido fabricar evidências científicas suspeitas, que dizem que refrigerante não faz tão mal assim e levam a conclusões para lá de adoçadas por conflitos de interesses.
É uma discreta ação de se tornar brother ou influente entre a galera que deve dizer o que faz bem ou faz mal para a sua saúde. “Há uma preocupação crescente de que a influência não financeira seja talvez tão importante, embora possa ser mais difícil de detectar”, afirmam no estudo publicado nesta terça os pesquisadores Nason Maani Hessari e Martin McKee, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, Gary Ruskin, da organização US Right to Know, e David Stuckler, do Dondena Research Center, da Universidade Luigi Bocconi.
No artigo “O público encontra o privado: conversas entre a Coca-Cola e o CDC” os quatro acadêmicos dizem que essa atuação, que não envolve dinheiro, pode desarticular ações importantes na área de saúde, principalmente aquelas voltadas à prevenção de doenças crônicas não transmissíveis, tais como diabetes, obesidade, problemas cardiovasculares e problemas dentários. Eles declaram: “As corporações podem procurar reformular os debates sobre políticas, construir bases eleitorais opostas e pressionar os políticos a evitar programas de saúde pública que possam prejudicar seus lucros.”
Mostramos no Joio, anteriormente, que a Coca-Cola já atuou para barrar políticas de saúde pública no mundo inteiro. Documentos vazados revelaram que a companhia fez de tudo e um pouco mais para evitar a taxação de bebidas adoçadas em pelo menos 14 países. Além disso, a megacorporação conta uma pesada campanha de marketing para induzir influenciadores digitais ou cooptar cientistas com o objetivo de promover seus produtos.
O CDC fica a poucas quadras do quartel-general da Coca, em Atlanta. À parte isso, a corporação financiou o centro de pesquisas em ao menos US$ 1 milhão entre 2010 e 2015. A ex-diretora-geral do órgão, Brenda Fitzgerald, atuou em um projeto sobre obesidade infantil bancado pela empresa, e renunciou ao cargo devido a seus laços financeiros.
Pois bem, os pesquisadores obtiveram acesso a 295 páginas com os registros de 86 e-mails trocados entre representantes graúdos da empresa e funcionários do alto escalão do CDC, dos EUA, que não deixam dúvidas quanto a isso. Após a leitura de todas as conversas, eles notaram três tipos de objetivos diferentes da empresa: 1) Ganhar acesso e influência com as autoridades do órgão de saúde norte-americano; 2) Embaralhar os debates científicos sobre nutrição, adoçantes e obesidade; e 3) Buscar canais para um lobby da Coca-Cola na Organização Mundial da Saúde (OMS), ligada às Nações Unidas.
De acordo com as mensagens, a megacorporação conseguiu avançar nas três frentes. Para consolidar sua influência, primeiro criou laços com Janet Collins, servidora do órgão federal, e Barbara Bowman, ex-diretora da divisão de doenças cardíacas e prevenção de derrames do CDC — ela renunciou em 2016 após denúncias na imprensa norte-americana apontarem seu vínculo com a empresa de refrigerantes.
Em um dos e-mails, Alex Malaspina, ex-vice presidente de assuntos externos da Coca-Cola, parabeniza Bowman por ter assumido o cargo de diretora, em 2014. À medida que avança, a conversa mostra um trânsito cada vez mais íntimo entre os dois.
Escreveu Malaspina: “Fiquei muito impressionado com o que você conseguiu e as suas novas responsabilidades. Eu sempre tive fé em suas habilidades e no seu grande conhecimento em nutrição. Gostaria muito de vê-la novamente e também apresentá-la a uma jovem muito inteligente do Quênia [Wamwari Waichungo, vice-presidente de assuntos científicos e regulatórios globais da Coca-Cola] (…) Como está sua agenda? Se você concordar, me dê algumas datas e eu arranjo um bom jantar para nós três.”
Bowman respondeu: “Eu adoraria te ver e conhecer Wamwari Waichungo! Ansiosa para nos reunirmos.”
Com o terreno favorável, o executivo da megaempresa amplia o escopo do evento, dizendo que convidará também outros dois colegas de trabalho.
O resultado do encontro fica claro no último e-mail da ex-diretora do CDC: “Que momento maravilhoso [‘what a lovely time’, em inglês] tivemos na noite de sábado. Muito obrigado, Alex, pela sua hospitalidade.”
A troca de mensagens fala por si só, mas vale um breve comentário. Mostrei a conversa para dois amigos sem dar muitos detalhes do que se tratava. Um deles me disse que parecia uma avaliação após uma estadia em um Airbnb. O outro foi um pouco mais incisivo: “Eu diria que foi um encontro bem-sucedido, mas com uma pessoa de 50 anos. Ninguém fala ‘what a lovely time’.”
À parte as especulações sobre a natureza do encontro, os quatro pesquisadores que obtiveram os e-mails fazem uma observação para lá de pertinente: “Essa interação é um exemplo preocupante do principal conflito de interesses entre essas duas partes, em que o CDC existe para promover a saúde pública, enquanto a Coca-Cola existe para maximizar os lucros.” Em outras palavras, a reunião dos caras do refrigerante com os cabeças da saúde pública jamais deveria acontecer. Os interesses da empresa são diametralmente opostos aos das autarquias governamentais.
Uma vez com os laços institucionais estabelecidos, os documentos mostram que executivos da Coca-Cola tiveram trânsito livre com os integrantes do CDC. O estudo afirma que não foi possível constatar claramente qual tipo de interferências a megaempresa exerceu nas políticas de saúde, mas encontrou algumas pistas. Em uma delas, um alto funcionário do órgão federal foi convidado para visitar a sede da empresa e “fornecer uma visão geral das prioridades do Escritório de Saúde de Minorias e Igualdade na Saúde [do CDC] e compartilhar outras colaborações”.
Na terceira cartada da megacorporação detectada pelos pesquisadores, o par Malaspina-Bowman ataca novamente. Dessa vez, o executivo da megaempresa tenta convencer a ex-diretora do CDC que a taxação de bebidas adoçadas, proposta pela OMS como uma importante medida de combate à epidemia de doenças crônicas nos EUA, precisava de mais evidências para se provar verdadeira. Hoje, reconhece-se que a elevação de impostos sobre os líquidos açucarados em 20% é válida — e, inclusive, mostrou resultados positivos no vizinho México.
Noves fora, em qualquer uma das frentes que a Coca-Cola atuou, Hessari, McKee, Ruskin e Stuckler são categóricos em afirmar que houve um erro grave, sobretudo, por parte dos servidores públicos. “Essas atividades podem contrariar as diretrizes de ética para funcionários do CDC, que pede a eles que considerem possíveis conflitos de interesses antes de se envolverem com parceiros em potencial”, lembram os quatro pesquisadores.
“É inaceitável que as organizações de saúde pública se envolvam em parcerias com empresas que tenham um conflito de interesses tão claro. O paralelo óbvio seria considerar o trabalho do CDC com as empresas de cigarros e os perigos que tal parceria representaria”, concluem.
Cartas marcadas
Dois nomes se destacam nas trocas de e-mails da Coca-Cola. Um deles é o de Alex Malaspina, que, além de ter sido um dos vice-presidentes da empresa, é fundador do International Life Sciences Institute (ILSI). Criada em 1978 pela megacorporação, a entidade é uma das principais responsáveis por criar ruídos no meio científico, tentando ocupar o espaço que deveria ser de universidades para oferecer evidências que sirvam para a elaboração de políticas públicas. A intimidade com a ex-diretora do CDC, nos EUA, portanto, não era à toa.
O outro nome relevante é o de Rhona Applebaum, diretora mundial de Ciência e Saúde da Coca até 2015, quando se aposentou após se ver envolvida em denúncias de financiamento para direcionar estudos científicos. Até o final do mesmo ano, também foi presidente do ILSI. Ela iniciou os contatos da Coca-Cola com o CDC, mas sumiu de cena depois que seus laços com a Rede Global de Balanço Energético foram comprovados — esta organização ficou conhecida por promover a ideia de que a falta de exercícios, e não a má alimentação, era a principal responsável pela epidemia da obesidade, algo que vai contra os melhores estudos científicos.
O ILSI, porém, continua a existir no mundo inteiro, com 17 subdivisões —inclusive, no Brasil. E o problema de sua atuação é um vício de origem. Há uma situação de conflitos de interesses de início. Como pode ser legítima a isenção de um instituto que foi criado por uma empresa para opinar sobre os problemas relacionados à existência dessa mesma empresa? É uma pergunta importante, para a qual os caras, contudo, não parecem ligar muito. Com sua abrangência global, eles continuam a tentar influenciar a tomada de decisões nas políticas de saúde, tendo já sido denunciado em uma série de locais, como na União Europeia.
No estudo sobre as relações perigosas entre Coca-Cola e CDC, os pesquisadores afirmam que ainda existe muito por revelar sobre a proximidade entre as duas entidades. Uma coisa é certa, portanto. Nem todos os males do mundo saíram quando Pandora abriu a caixa. Há muitos que ainda estão escondidos. Outros, porvir.