Ninguém sabe o que fazer com o limbo do YouTube

Como um “buraco negro” jurídico e político, plataforma de vídeos do Google não tem regulação e atrai crianças com falsa promessa de fama e estímulo ao consumismo

Muita gente sabe que existe. Pesquisadores estudam o fenômeno. Algo capaz de sugar corpos e mentes aos montes até esmagá-los. É como um buraco negro. Não pela força gravitacional, mas pelo poder de arrastar crianças e adultos a partir da promessa de fama, exigindo uma produção intensa e uma exposição maior ainda. Falamos do YouTube. Que fascina bilhões de pessoas pelo mundo, é investigado por especialistas diversos, porém segue sendo um mistério, uma espécie de limbo em termos de regulação de publicidade e trabalho infantil, só para ficar em dois exemplos.     

Por aqui, canais brasileiros feitos por crianças atraem bilhões de visualizações nos últimos anos. Um dos entretenimentos infantis mais consumidos atualmente, os vídeos de youtubers mirins são uma forma de influência preocupante sobre o público infantil. No entanto, o tema é pouco debatido, em especial pelo Direito e pela política.

O Brasil, apesar de possuir restrições à propaganda infantil nos meios tradicionais de comunicação, não tem regulação específica sobre o YouTube. O Estado não tem nem mesmo uma agenda apontada para a questão. O que pode e o que não pode (que é quase nada) fica a critério exclusivo do setor privado. A Google, dona da plataforma de vídeos, e os anunciantes que ali veiculam marcas e produtos definem tudo.       

Não que o caso não preocupe ninguém. Ano passado, os cursos de Direito da Fundação Getulio Vargas e Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, ambos de São Paulo, realizaram uma série de eventos dentro do projeto “Crianças e YouTube: aspectos jurídicos e comunicativos do fenômeno dos youtubers mirins”, que reuniu  especialistas das áreas jurídica e de comunicação para discutir a necessidade de regular o tema, os limites da intervenção jurídica na matéria e o papel dos comunicadores. A iniciativa teve o apoio do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto Alana e Procon. A equipe do Joio foi convidada a participar dos encontros.

Os perfis dos convidados eram diversos. Alguns defendiam a atuação estatal de regulação. Outros apostavam na auto-regulação. Debate não faltou, mas as conclusões sobre o que fazer foram poucas. De consenso, o óbvio: desde a proibição de propaganda direcionada a crianças em TVs abertas, os youtubers mirins tornaram-se uma alternativa muito atraente para a indústria anunciar lançamentos, o que confronta diretamente mecanismos de garantias de direitos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a própria regulação da comunicação, e estimula o consumismo em níveis estratosféricos.

Coisa nova  

A dificuldade sobre o que fazer com o YouTube reside, em parte, no fato de que é tudo muito recente. Poderíamos escolher 2015 como marco inicial. Uma fabricante de brinquedos e uma loja se juntaram para promover encontros com youtubers mirins. Um sucesso que deixou claro como essas crianças estavam ganhando influência.

A pesquisadora Luciana Corrêa, do ESPM Media Lab, que participou dos encontros promovidos por FGV e Cásper,  captou exatamente esse momento. Em 2016, dos cem canais de maior audiência, 48 eram direcionados a crianças. Os youtubers mirins haviam avançado 550% em apenas um ano em termos de inscritos e 564% em visualizações. Os canais de unboxing, também com audiência predominantemente infantil, haviam crescido quase 1.000% em termos de audiência.

Em 2017, o alcance dos canais infantis cresceu mais 34,6%, chegando a 52,5 bilhões de visualizações. Os cerca de 500 canais do gênero somaram 135 bilhões de views.

Uma outra pesquisa de referência é a TIC Kids Online. A breve série histórica iniciada em 2012 é reveladora da rapidez com que celulares e redes sociais desbancaram a televisão e a publicidade tradicional. Os dados mais recentes mostram que 91% das crianças usavam o telefone móvel para se conectar à internet em 2016, contra 82% em 2014 e 21% em 2012.

Enquanto no início do levantamento 47% diziam usar a internet diariamente, em 2016 esse número chegava a 84%. 41% relataram ter visto algum tipo de discriminação no ambiente digital – racismo, aparência física e homofobia foram os itens mencionados. Também muito importante, 69% tiveram contato com conteúdo publicitário em páginas de vídeos, contra 48% em 2013.

Pesquisadores da Filadélfia, nos Estados Unidos, fizeram um estudo em 2014 com 350 crianças entre seis meses e quatro anos de vida. Com menos de um ano, 9,8% já tinham tablet – a recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria é de que não se tenha contato com telas em geral antes dos dois anos. O índice subia a 27,2% após os dois anos e a 54,2% após os três.

Uma em cada três crianças usava dispositivos eletrônicos em simultâneo, hábito associado a dificuldade de concentração e de execução de tarefas cotidianas. O YouTube já despontava como espaço favorito na internet, mas ainda perdia para a televisão.

Pegajoso

“As plataformas online são a nova fronteira para os marqueteiros”, analisa Bridget Kelly, professora da Universidade de Wollongong, na Austrália, que está à frente de pesquisas que tentam entender os efeitos da publicidade de comida-tranqueira sobre crianças e adolescentes. “O mundo digital é incrivelmente ‘pegajoso’ e captura a atenção por extensos períodos. As redes sociais oferecem para as marcas um grande potencial de ‘mídia espontânea’, na qual crianças propagandeiam produtos a suas amizades.”

Ela é uma das pessoas que tem quebrado a cabeça na tentativa de descobrir caminhos para fazer pesquisas no mundo digital. O cenário muda a todo instante. Cada pessoa navega de uma maneira. E é tudo muito mais disperso e variado do que no mundo analógico. Contudo ela não tem dúvidas: o que se tem até aqui mostra que o marketing digital é muito mais potente do que tudo o que conhecíamos até há alguns anos.

E o Estado precisa agir. Por isso, o grupo dela tenta definir metodologias que permitam fomentar políticas públicas e chamar a atenção da sociedade. Uma série de artigos recém-publicados reforça a leitura de que deixar nas mãos das empresas não funciona. “Quanto mais as pessoas se envolvem com esse marketing, curtindo, comentando e compartilhando, mais provável é a influência sobre os comportamentos alimentares”, ela resume.

Recentemente, alguns textos de mães e pais alertaram para hábitos alimentares no mínimo estranhos por parte de filhos que assistiam a alguns youtubers. As crianças estavam desenvolvendo comportamentos compulsivos que imitavam vídeos a que haviam assistido na plataforma.

“A criança vai brincar com alimentos, dizendo que são saborosos, sem qualquer discussão sobre a natureza nutricional dos alimentos”, avalia a professora Inês Silvia Vitorino Sampaio, do Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia da Universidade Federal do Ceará. “Tem uma publicidade que não está declarada, que é um menino da mesma idade da criança que está vendo. É uma situação difícil para a criança entender.”

O Google, responsável pelo YouTube, é uma companhia de alcance global, maior que qualquer emissora de televisão. Os canais mais vistos somam milhões de visualizações em todo o mundo.

De outro lado, enquanto a TV no geral era assistida coletivamente, o uso do YouTube é individual, o que coloca uma dificuldade adicional para controle dos pais. Na televisão, a publicidade em geral é exibida nos intervalos, com uma sinalização clara de que se trata de comunicação mercadológica. No YouTube, essa linha está quase apagada e mesmo adultos têm dificuldade em discernir entre entretenimento e comunicação mercadológica.

“Se a gente se deixa levar pela linguagem do YouTube, imagine as crianças. Isso é cruel”, diz Renata Monteiro, do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília, que cobra a definição de regras claras sobre o que é ou não permitido na plataforma. “Antigamente a gente tinha estratégias na TV que hoje parecem esdrúxulas. ‘Compre esse chocolate’. Essas mesmas estratégias estão sendo usadas de maneira muito intensa no YouTube. De criança para criança e de adulto para criança. O YouTube é um território que parece sem dono.”

Tudo pra já

Na televisão havia não mais que uma dezena de emissoras com conteúdo para o público infantil. No YouTube, são alguma coisa na casa dos milhares. Qualquer violação nesse cenário é mais difícil de conter – ainda que a facilidade de produzir e compartilhar conteúdo tenha efeitos positivos e possa ser entendida como um avanço em relação ao cenário analógico.

Na maioria, os canais que dialogam com crianças têm também crianças como protagonistas, o que cria outra diferença em relação à TV. Um artigo publicado no ano passado por pesquisadores brasileiros analisa quatro campeãs de audiência: Bel, Juliana Baltar, Manoela Antelo e Júlia Silva.

Há um aspecto em comum: a tentativa de criar uma comunidade. Todas têm um interlocutor frequente, saudações particulares e preferências alimentares. Elas pedem por atenção do público e usam as próprias casas como cenários, o que aproxima as espectadoras, mostra que as youtubers são pessoas “comuns”.

Se você nasceu na década de 1980, talvez tenha sonhado em ser como Romário. Ou Bebeto. Ou Raí. Ou Neto. Qualquer que fosse seu time, só te restava jogar muita bola e esperar que os hormônios do crescimento te levassem à adolescência, quando, enfim, a improvável combinação de sorte, talento e empresário te levariam ao sucesso.

Se você queria ser a próxima Paquita ou a atriz da novela, só te restava passar os próximos dez anos dançando ou encenando frente ao espelho e a seus pacientes parentes.

Em meio a tudo isso, a maioria de nós caiu na real e foi fazer outra coisa da vida.

No YouTube, é tudo hoje e agora. Se a Júlia Silva pode, por que eu não posso? É difícil pedir que uma criança pese todos os prós e os contras. Que tenha noção de que ter sucesso como youtuber mirim é tão difícil quanto ser o próximo camisa 10 da seleção brasileira.

O YouTube poderia ajudar a desfazer essa miragem. Porém é justamente a ilusão o que atrai mais e mais crianças para a plataforma. Isso significa mais conteúdo, mais anunciantes, mais lucro.

O Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia fez em 2016 um estudo qualitativo inédito sobre a percepção das crianças a respeito da publicidade. No geral, os entrevistados revelaram incômodo com os anúncios que surgem no meio dos vídeos do YouTube, mas ficou clara a dificuldade de identificar publicidade velada.

O YouTube alega que o Marco Civil da Internet protege a liberdade de expressão e que, por isso, não tem como prevenir certas violações. Pensando nisso, os pesquisadores da Federal do Ceará sugerem que a legislação seja acrescida de um artigo que esclareça sobre a proteção das crianças no meio digital. Seria preciso ainda promover uma campanha pública sobre o acesso seguro à internet e a necessidade de acompanhamento dos pais.

No que diz respeito às empresas, a sugestão é de uma medida que o YouTube já conseguiu barrar pela via judicial: a exibição de anúncios sobre acesso seguro. A isso deveria se somar a fixação de critérios de classificação indicativa e o uso de dispositivos de bloqueio de conteúdo impróprio.

Outra dificuldade na hora de pensar sobre o que fazer com o YouTube é a naturalização de certas práticas. Vários canais se orgulham em dizer que não têm “conteúdo impróprio” para crianças. No geral, isso significa que não há palavrões e apelo sexual.

Entretanto essa é uma visão obviamente limitada. Quando olhamos o que não está incluído nela, descobrimos o quanto certos problemas foram transformados em banalidades. Boa parte dos vídeos dos canais de maior audiência são publicidade. Muitos, publicidade velada, o que em tese viola as regras do YouTube.

“Alguns canais têm colocado a informação de que aquilo é um anúncio. Se o canal é para criança, não muda: é impróprio fazer publicidade para criança. Dizer que aquilo é uma ilegalidade não muda o caráter de ilegalidade”, resume Ekaterine Karageorgiadis, coordenadora do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana.

O Alana entende que a Constituição, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente são suficientes para proibir a publicidade direcionada a menores de doze anos. Porém, na prática, as empresas continuam agindo como querem e punições de casos isolados ficam a critério de decisões judiciais que podem levar anos.

As corporações alegam respeitar o código do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), criado e mantido por elas. Recentemente, o Conar mandou o youtuber Felipe Neto retirar do ar um vídeo que não deixava claro se tratar de publicidade. No entanto você pode achar no YouTube vários e vários vídeos em que o irmão dele faz propaganda da loja de coxinhas de propriedade da família. Isso só para ficar no alcance da polêmica dupla. Ainda que quisesse, o Conar dificilmente teria pessoal em quantidade suficiente para dar conta da quantidade de conteúdo polêmico postada na plataforma.

“O Conar regulamenta a propaganda explícita, mas não estamos falando de um órgão específico de propaganda”, diz Debora Regina Magalhães Diniz, do Movimento Infância Livre de Consumismo (Milc). O grupo reúne mães que cobram a regulação da publicidade infantil. “Estamos falando da proteção à infância. É simplesmente fazer funcionar o que já existe.”

Já a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) defende que a identificação de que se trata de publicidade é suficiente. “Nós defendemos que a proibição da publicidade infantil é inconstitucional e viola a liberdade de expressão e informação”, analisa a presidente executiva da ABA, Sandra Martinelli.

A organização orienta os influenciadores digitais a declarar a natureza comercial de posts pagos e a informar que determinado produto foi enviado por uma empresa. “Tudo isso contribui para criar uma publicidade muito mais responsável e regulamentada.”

O próprio código do Conar deixa claro que é proibida a ação de merchandising que “empregue crianças, elementos do universo infantil ou outros artifícios” com a finalidade de chamar a atenção desse segmento. É difícil pensar no conteúdo do YouTube voltado a crianças que não tenha elementos desse tipo.

Há bastante literatura científica que expõe a ineficácia da autorregulação. No geral, os compromissos autofirmados pelo setor privado carecem de transparência e definem punições brandas – quando define. A falta de participação da sociedade na definição das regras também é uma constante e, em vários casos, os governos tampouco foram chamados a se sentar à mesa.

Há dois artigos que resumem bem essa situação no que diz respeito à publicidade de alimentos. E um livro lançado pelo Alana, Autorregulação da Publicidade Infantil no Brasil e no Mundo.

Danone deu orientação nutricional controversa a 300 mil crianças

Foto em destaque: YouTube 

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