Após pressão, conselho de segurança alimentar precisa de aprovações nos plenários do Legislativo para reabrir as portas no Ministério da Cidadania
A recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) avançou uma etapa importante, na última quinta-feira (9), depois de comissão mista do Congresso Nacional, em Brasília, aprovar o relatório sobre a medida provisória 870. Deputados e senadores acataram uma emenda que prevê que o Consea volte a funcionar com a mesma estrutura de antes, mas, dessa vez, ligado ao Ministério da Cidadania.
A MP agora aguarda duas votações de maioria simples, uma no plenário da Câmara e outra, no Senado, respectivamente. A primeira está prevista para acontecer na próxima terça-feira (14).
Outrora ligado à Presidência da República, o Consea havia sido extinto em um dos primeiros atos do governo de Jair Bolsonaro. Em 1º de janeiro, ele editou uma medida provisória, logo após a posse, reorganizando as autarquias do Poder Executivo. Na carona das mudanças, o colegiado deixou de existir com a supressão de trechos da lei 11.346 que regulamentavam o seu funcionamento.
Depois de intensa pressão da sociedade civil, 66 dentre 541 emendas sobre o Consea foram apresentadas à comissão mista responsável por apreciar a MP 870. Com 12% do total de propostas, foi o tema que mais sensibilizou os parlamentares durante as discussões no Congresso Nacional. Após mistério sobre como encaminharia a questão, o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB/PE), relator da medida provisória e líder do governo no Senado, acatou a sugestão do deputado federal João Daniel (PT/SE).
A emenda nº 6, apresentada pelo parlamentar da oposição, prevê a recriação do conselho vinculando-o ao Ministério da Cidadania, que herdou, com a reforma ministerial de Bolsonaro, a atribuição de cuidar das políticas públicas relacionadas à segurança alimentar e nutricional. A proposta mantém a mesma estrutura original: composição de dois terços da sociedade civil e um terço de integrantes do governo federal. Também garante que o colegiado seja presidido por um representante da sociedade civil.
Entre as atribuições previstas na emenda, o Consea continuará a fazer controle social e abrir espaço para a participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas de segurança alimentar e nutricional. Além disso, permanecerá como um dos três pilares do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que busca promover o direito humano pela alimentação adequada e saudável.
O colegiado manterá, se a emenda for seguida à risca, a competência de propor à Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), um fórum intersetorial do governo para formular políticas públicas, as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Prosseguirá, ainda, com a prerrogativa de realizar, por todo o país, as Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional.
Caso o tocante ao Consea seja aprovado na íntegra tanto na Câmara quanto no Senado, o próximo passo para que o conselho volte a funcionar ficará sob responsabilidade do Ministério da Cidadania. Ocorre, no entanto, que a pasta não tem demonstrado muita disposição em falar de segurança alimentar e nutricional.
O ministério não só exonerou os principais quadros técnicos responsáveis pelo tema, como conta com um servidor sem experiência para levar à frente as políticas do setor. José Roberto Carlos Cavalcante, chefe da estrutura encarregada pela segurança alimentar e nutricional, a Secretaria de Inclusão Produtiva e Desenvolvimento, veio do Ministério do Turismo, onde era coordenador-geral de convênios, e não tem formação na área.
Tradições, terra e trabalho
Além do Consea, a comissão mista da MP 870 tomou outra decisão importante no que toca à segurança alimentar e nutricional. Os parlamentares acataram emenda do deputado Túlio Gadêlha (PDT/PE) que devolve a Fundação Nacional do Índio (Funai), bem como a demarcação de terras indígenas, ao Ministério da Justiça. No original, a MP transferiu a Funai ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e a demarcação ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Populações indígenas, assim como as de quilombolas e pescadores tradicionais, são consideradas algumas das mais vulneráveis à fome e à desnutrição. Deixar as tratativas dos povos originários do Brasil nas pastas chefiadas por Damares Alves e Tereza Cristina seria o mesmo que abrir um precedente perigoso, na avaliação de entidades e povos de diferentes matrizes étnicas.
As ministras não são vistas com bons olhos por esses grupos: uma é considerada preconceituosa por deixar valores religiosos orientarem as decisões que deve tomar e outra é uma das principais lideranças do agronegócio no Brasil, que tem interesses conflitantes aos dos povos indígenas.
O retorno do tema ao Ministério da Justiça era uma demanda tão antiga quanto a da recriação do Consea. Primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal, Joênia Wapichana (Rede-RO), defendeu a decisão. Ela afirmou que a pasta é o única que, por contar com a Polícia Federal, tem estrutura para lidar com um tema de natureza complexa, que muitas vezes demanda o monitoramento de forças nacionais de segurança.
Diferentemente, porém, a demarcação de terras quilombolas permaneceu no Incra, que vem sendo esvaziado de atribuições desde o início do governo Bolsonaro, como bem mostrou a Repórter Brasil. Da mesma forma, a reforma agrária, paralisada pelo atual presidente, continua nas mãos da ministra Tereza Cristina — a mesma pessoa que, quando deputada, afirmou que bois poderiam ser usados para evitar incêndios florestais.
Outro assunto que mobilizou número considerável de emendas, 26 proposições, ao todo, a recriação do Ministério do Trabalho não saiu do papel, assim como a reabertura do Ministério do Desenvolvimento Agrário, ao qual o Incra era vinculado. Mas uma outra boa notícia para os grupos da sociedade civil foi a eliminação da competência da Secretaria de Governo da Presidência para supervisionar e monitorar a atuação de organismos internacionais e ONGs no Brasil.