Com ingressos salgados, O Museu Mais Doce do Mundo tentou arrecadar R$ 2,5 milhões dos cofres públicos, mas recebeu parecer contrário da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura
Por Natália Silva, especial para o Joio
A exposição “O Museu Mais Doce do Mundo”, em cartaz desde 5 de abril em São Paulo, está chegando ao fim. Após 18 de agosto, a mostra será deslocada para o Rio de Janeiro, onde os cenários “instagramáveis” com referências a grandes marcas – como Nestlé, Bauducco, Docile, Itubaína e Nina Ricci – seriam recheados com o dinheiro público: os organizadores do evento foram autorizados a arrecadar até R$ 2.544.060,46 por meio da Lei de Incentivo à Cultura.
A Lei Rouanet, como é popularmente conhecida, permite que empresas destinem a projetos culturais valores que seriam usados no pagamento de impostos. A prática de usar essa legislação para promover marcas não é rara. O Museu Mais Doce do Mundo havia atraído o interesse da Multiplan, grande administradora de shopping centers brasileiros, entre eles o Village Mall, na Barra da Tjiuca, onde a exposição deve entrar em cartaz em 9 de setembro; e da Puig Brasil, representante da marca de cosméticos Nica Ricci, que tem um espaço de publicidade na exposição de São Paulo. Segundo a página de acompanhamento da lei na internet, R$ 360 mil foram captados.
A exposição também tem um contrato de patrocínio de R$ 500 mil firmado com a Bauducco, que, em troca, tem o direito de customizar e equipar uma das salas da mostra com suas cores, além de poder distribuir produtos no fim da visita.
A expressão “era doce e se acabou” parece encaixar com perfeição na história da exposição. Após semanas de sucesso, com ingressos a até R$ 60, O Museu Mais Doce do Mundo teve um revés. A Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) recomendou a suspensão do financiamento. Na visão do colegiado, o projeto não tem “valor artístico ou cultural” e, portanto, não se enquadra nos critérios estabelecidos pela Lei de Incentivo à Cultura. Segundo o parecerista, a exposição parece “um playground para brincadeiras” no qual o visitante pode fazer “selfies”.
Visitamos o “museu” em uma tarde de julho, quando as férias escolares aproximavam-se do fim. Assim como os membros da CNIC, ficamos com dúvidas sobre o valor cultural do espaço. A fila era composta em grande parte por mães e pais acompanhados de crianças pequenas, ansiosas para descobrir o que se escondia atrás do dizer “Diga sim à felicidade” estampado em uma porta colorida.
Na antessala da exposição, monitores educados explicavam aos pequenos que eles não poderiam pular na piscina de “marshmallow”. Uma mãe perguntou um pouco indignada: “Se é uma piscina, por que não pode pular?” A caixa preenchida com espumas em formatos cilíndricos é rasa, pensada para fotos “instagramáveis”. Ao pular, as crianças podem se machucar. Os pequenos, já um pouco decepcionados, são incentivados a gritar “marshmallow” antes que outra porta colorida se abra e dê acesso à exposição.
A piscina de mentira tem tempo contado. Mais monitores pedem educadamente, sempre de olho em um pequeno cronômetro à mão, que os pais tirem depressa as fotos que querem. Como recompensa pela eficiência, adultos e crianças recebem cones de marshmallows oferecidos pela Docile, que tem o logo estampado na altura dos olhos dos pequenos.
Após a primeira sala, a exposição se divide em dois andares, com salas e corredores preenchidos por doces de plástico e frases motivacionais estampadas nas paredes. No primeiro piso, visitantes podem tirar fotos com donuts, gummybears, cupcakes, quindins ou dentro de uma caixa com a palavra “sweet” (doce, em português) replicada diversas vezes.
Subindo as escadas, brigadeiros, biscoitos, gomas de mascar, garrafas de refrigerante, biscoitos e sorvetes compõem o cenário. As referências às marcas ficam por conta da identidade visual, da ambientação e das guloseimas ricas em açúcar distribuídas para os visitantes. Para ser justa, os doces, assim como o tempo da piscina, também são limitados: apenas um por pessoa.
Na justificativa do pedido de financiamento feito ao então Ministério da Cultura, rebaixado à categoria de secretaria pelo atual governo, o objetivo descrito pelo projeto é de “espalhar felicidade e cultura pop através de uma exposição interativa com temática do imaginário doce”. Não há nenhuma menção sobre as ativações de marcas que acontecem dentro da exposição. Em uma das salas, por exemplo, uma jovem vestida com os trajes estampados na lata de Leite Moça, da Nestlé, oferece um brigadeiro a cada pessoa que passa por ali. A Docile, além dos marshmallows, distribui balas de goma para os visitantes.
No documento tampouco há uma descrição detalhada sobre o valor cultural da mostra, o que foi ressaltado no parecer do CNIC. Há apenas uma breve menção à intenção de apresentar aos visitantes “a fundo a história de alguns doces brasileiros, suas origens e como eles fazem parta [sic] da vida dos brasileiros”. Na exposição, é possível usar o aplicativo do museu para acessar vídeos explicativos sobre a origem dos doces: basta apontar o celular para pequenos desenhos nas paredes. Na visita que participamos, poucas pessoas fizeram isso. O mais importante era, sem dúvida, tirar fotos para as redes sociais.
Fica difícil entender o que há de “museu” naqueles cenários plásticos. Segundo o Estatuto dos Museus, sancionado em 2009, podem ser assim chamadas apenas “as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento”. Nenhum dos itens da longa lista de exigências é preenchido pela mostra.
O que sobra para as crianças, que não têm ou não deveriam ter acesso às redes sociais, são os doces distribuídos na exposição e pequenos momentos interativos, como a piscina e um jogo de quindins voadores acompanhado por meio de óculos de realidade virtual patrocinado pela Huawei.
A ambientação da exposição, permeada por frases motivacionais, induz os pequenos a relacionarem o consumo de açúcar à felicidade. “Fui atrás da felicidade e voltei com um brigadeiro”, “Fui para um planeta mais doce” e “A vida é como um sorvete, aproveite antes que derreta” são alguns exemplos.
Quem derreteu no meio disso tudo foram os limites da publicidade infantil. A exposição não tem classificação indicativa e crianças de até quatro anos não pagam para entrar. Segundo o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica a crianças de até 12 anos é abusivo.
Em 2017, onze grandes empresas de alimentos firmaram um acordo para reduzir propagandas voltadas para crianças. O compromisso estabelece limites para publicidades de doces, refrigerantes e chocolates a públicos compostos em 35% ou mais de crianças menores de 12 anos. A Nestlé, uma das signatárias do acordo, parece não ter levado as indicações em conta na hora de patrocinar a “sala do brigadeiro” em um espaço povoado por crianças.
O compromisso foi feito como uma tentativa de combate ao consumo excessivo de açúcar na infância, relacionado a problemas de sobrepeso e obesidade. Estudos do Ministério da Saúde indicam que 12,9% das crianças brasileiras de 5 a 9 anos são obesas. Em um documento de 2015, a Organização Mundial da Saúde recomendou que a ingestão de açúcar, independentemente da faixa etária, deve ser de no máximo 10% das calorias diárias, o que no caso de adultos fica em torno de 50 gramas por dia. Quatro unidades de marshmallows da Docile, segundo informações do site da marca, contêm 15 gramas de açúcar. Uma garrafa com 350mL de Itubaína, 20 gramas.
Todas as marcas mencionadas ao longo do texto também possuem espaços no caminho de saída do espaço que, segundo a assessoria de imprensa da exposição, não fazem parte da mostra. Mesmo assim, os visitantes não têm alternativa senão passar por uma lata de dois metros de altura de Leite Moça; outra piscina de mentira, agora patrocinada pela Nina Ricci; uma moldura de fotos de marshmallows da Docile e um cubo de espelhos com o logo da Huawei antes de deixar para trás “O Museu Mais Doce do Mundo”.
Procuramos a assessoria de imprensa do evento para entender o uso do termo “museu” no nome da exposição. Luzia Canepa, diretora da mostra, afirmou que O Museu Mais Doce do Mundo “preserva características culturais e sociais dos doces, que estão na cultura de todos os povos como elementos de celebração, brincadeiras e alegrias” e ressaltou que o local não é de “comilança”, pois são oferecidas apenas três degustações aos visitantes.
Apesar da constatação empírica feita pela reportagem da presença de logos dentro da exposição, Canepa afirmou que os nomes das marcas “não estão estampados em instalações dentro do Museu”. A diretora disse ainda que “a exposição do nome de um patrocinador não é proibida nem antiética”.
Por meio da assessoria, O Museu Mais Doce do Mundo confirmou ter recebido o parecer negativo e afirmou que “o logotipo do governo federal será retirado da exposição por indicação da Secretaria da Cultura do Ministério da Cidadania”.