Enquanto novos venenos são liberados todos os dias no Brasil, a produção de orgânicos cresce rapidamente. Mas o que faz com que esse setor se restrinja a uma parcela pequena da população?
O país que libera novos venenos em ritmo vertiginoso é também o que registra um crescimento constante na produção de alimentos orgânicos. O próprio Ministério da Agricultura, ponta de lança da liberação de quase 300 novos agrotóxicos em 2019, divulgou em abril que o número de produtores do ramo cresceu 200% de 2012 para cá, passando de quase 5,9 mil para mais de 17,7 mil.
A quantidade de unidades de produção aumentou em mais de 300%, de 5,4 mil em 2010 para 22 mil em 2018. De acordo com o Conselho Brasileiro da Produção Orgânica e Sustentável (Organis), essa fatia do mercado brasileiro movimentou R$ 4 bilhões no último ano. O Organis é mantido por empresas privadas envolvidas na comercialização de alimentos sem veneno. Segundo pesquisa realizada pela organização em 2017, somente 15% dos entrevistados dos grandes centros urbanos do Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil consomem orgânicos com regularidade.
O descasamento entre as prioridades da agenda política e as necessidades da população ficou ainda mais claro com uma pesquisa do Datafolha divulgada no final de julho. 78% dos entrevistados têm certeza de que o consumo de alimentos com venenos é inseguro. E boa parte opina que há agrotóxicos demais em nossa comida. Ou seja, comer alimentos com essas substâncias não é uma questão de falta de informação: é de falta de escolha. O que fazer para garantir alimentos orgânicos à população? Esses alimentos são de fato mais caros ou o que os encarece é a maneira como o mercado está estruturado?
A cerca de 16 quilômetros do marco zero de São Paulo, na Praça da Sé, os moradores do Capão e do Campo Limpo, por exemplo, precisam andar muito ou pagar caro pelos alimentos orgânicos nos estabelecimentos de bairros vizinhos, como Morumbi e Vila Sônia. “Além da falta de acessibilidade financeira, esses são espaços em que não nos reconhecemos como consumidores. Porque são bolsões de riqueza margeados por bolsões de vulnerabilidade”, conta Thiago Vinicius, empreendedor social da Agência Solano Trindade.
Enquanto se tenta dar um passo à frente no debate, a realidade caminha muitos passos para trás. Alimentos in natura, com ou sem veneno, são cada vez mais caros, em paralelo a um aumento do desemprego e dos índices de pobreza. Na contramão, fartamente subsidiados, produtos comestíveis ultraprocessados se tornam cada vez mais baratos. A tendência é de que se agrave a brecha que separa pobres de ricos. Aos primeiros, cada vez mais biscoitos, macarrões instantâneos, salgadinhos. Aos segundos, um acesso cada vez mais fácil a frutas, verduras e legumes frescos e sem veneno.
Entre junho de 2018 e abril de 2019, o Sebrae divulgou uma pesquisa sobre a produção e o consumo de alimentos sem veneno. Segundo os agricultores orgânicos consultados, são dois os canais de comercialização mais comuns: vendas diretas (72%) e feiras (55%). Ainda assim, o mesmo levantamento concluiu que 64% dos consumidores compram orgânicos em supermercados, contra apenas 26% em feiras livres.
Reforçando o que se viu no Datafolha, a enorme maioria dos consumidores gostaria de comprar mais orgânicos. O preço alto ainda é visto como obstáculo mais claro (62%).
Porém, um estudo de 2015 do Instituto Kairós aponta que não necessariamente o orgânico é o elemento mais caro da história: o local de compra conta muito. Nos supermercados, os preços encontrados eram de duas a quatro vezes mais altos em comparação às feiras livres. E o valor de uma cesta de produtos sem veneno em feiras pode ser o mesmo de uma com produtos não orgânicos.
Mais recentemente, no começo de 2019, pesquisadoras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) também comprovaram a diferença de preço entre orgânicos em feiras e supermercados. Com base na alimentação de uma família de três moradores de Florianópolis, calculou-se um gasto médio mensal quase 140% menor na compra desses produtos em feiras livres, nos dois primeiros meses do ano. O acesso geográfico às feiras, entretanto, não é uma realidade presente no dia a dia de muitos brasileiros.
Como chegar mais longe
O Mapa de Feiras Orgânicas do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), atualizado em 2017, ajuda a entender como o acesso físico é uma barreira no consumo de orgânicos. Na capital paulista, por exemplo, os pontos de comercialização estão predominantemente em bairros como Pinheiros, Vila Madalena, Barra Funda, Lapa, Higienópolis, Itaim, entre outros mais próximos à região central. À medida que o cursor segue rumo à periferia da cidade, eles se tornam escassos – ou desaparecem de vez.
De acordo com a publicação, o Sudeste é a região com maior número de feiras orgânicas (336), seguida de Sul (211), Nordeste (178), Centro-Oeste (67) e Norte (18). Além das capitais e de outras regiões metropolitanas, como Campinas (17), o número de estabelecimentos não passa de dez nos outros municípios brasileiros mapeados pelo instituto. As capitais que lideram o ranking são Rio de Janeiro (42), Recife (38), Curitiba (25), Belo Horizonte (21), Porto Alegre (21), Florianópolis (16), Salvador (16) e João Pessoa (16).
No Mapa de Feiras Livres do Município de São Paulo, mantido pela prefeitura, também é possível ficar por dentro de feiras orgânicas e convencionais espalhadas pela metrópole. Segundo a cartografia, são 12 feiras de produtos orgânicos na capital paulista, sendo que a maioria acontece em dias de semana, o que dificulta o acesso da classe trabalhadora em geral.
Segundo Rafael Arantes, nutricionista e analista de regulação do Idec, pode-se inferir que os principais centros urbanos do país estão mais abastecidos com alimentos orgânicos, enquanto as zonas periféricas andam mais descobertas no que diz respeito ao acesso aos alimentos sem veneno.
“É importante pensar no tanto de produtos in natura que as classes mais baixas consomem. É preciso conversar sobre abastecimento, acesso e como a indústria de ultraprocessados explora essa questão de ter, por exemplo, refrigerantes mais baratos que uma garrafa de água em certos locais”, lembra André Biazoti, integrante da Articulação Paulista de Agroecologia (Rede APA) e do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU).
De acordo com a pesquisa da Organis, de 2017, para mais da metade dos quase 1.000 entrevistados de Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil, o preço ainda é o principal fator limitador para o consumo de orgânicos, seguido da falta de acesso e de informação. Segundo o estudo, 9% da população de baixa renda e 8% das pessoas com ensino fundamental incompleto são os que menos tendem a comprar esses produtos.
Os maiores interessados estão entre a população com alto nível de escolaridade, somando 32% dos entrevistados com grau superior completo. No mesmo ano, a Universidade Federal Rural de Pernambuco também constatou que o perfil de consumidores de orgânicos no país é composto por pessoas com nível superior e renda variável de quatro a oito salários mínimos por família, ou 2 a 4 por indivíduo. Com base nesses aspectos, o estudo da UFRPE concluiu “que esse nicho de mercado possui uma forte tendência em relação ao seu perfil”.
Quem atravessa o samba
Segundo produtores de uma grande feira paulistana de orgânicos, a forte presença de intermediários também nesses espaços acaba encarecendo os produtos e incentivando indiretamente a consolidação de um nicho de mercado, o que afasta novos consumidores.
A Fazenda Rio Bonito, uma das principais no ramo de orgânicos do Brasil, que abastece redes como o Grupo Pão de Açúcar, Carrefour, Oba, Hortifruti e Natural da Terra, tem 70% dos alimentos comercializados provenientes de 78 produtores parceiros. É próprio de uma estrutura gigantesca de comercialização, caso dos hipermercados, querer negociar com um número reduzido de fornecedores que se encarregam de centralizar a produção e redistribuir.
Ao todo, são 800 pontos de venda distribuídos pelos estados de Sul, Sudeste, Centro-Oeste e parte do Nordeste. Segundo o diretor comercial da marca, Alex Lee, outros intermediários também compram orgânicos da fazenda, mas ele não soube informar o destino. Sobre os preços dos produtos próprios, e de compra e venda de orgânicos dos produtores parceiros, a empresa se recusou a informar números.
Na outra ponta do negócio, o Grupo Pão de Acúcar, pioneiro no varejo de orgânicos no Brasil, tampouco concedeu informações relativas a valores de compra e revenda dos orgânicos. A corporação diz possuir 100 fornecedores, que vão de pequenos produtores rurais até médias e grandes empresas alimentícias referências no ramo, sendo que o abastecimento ocorre tanto pelas centrais de distribuição como diretamente nas lojas.
Segundo a assessoria de comunicação do grupo, “a procura, aliada a um crescimento também na produção, tem permitido baratear preços”. De acordo com a assessoria, no primeiro semestre do ano a rede anunciou três iniciativas relacionadas ao mercado orgânico. Duas delas, em unidades da zona sul de São Paulo, são os orgânicos a granel, com preços até 30% mais baixos que os embalados, e uma feira de orgânicos com pequenos e médios produtores de frutas, legumes, verduras, carnes e laticínios no estacionamento de uma das lojas aos sábados.
Em junho, a rede lançou a linha “Taeq Boa Escolha”, com orgânicos in natura fora do padrão estético, em média 40% mais baratos que os tradicionais de mesma origem. Normalmente, há uma padronização dos produtos in natura, sobretudo em supermercados, fazendo com que alimentos menores, com formatos ou aparências que fogem à exigência do mercado sejam excluídos da comercialização.
Decidimos percorrer algumas lojas do grupo. Na maior parte, alguns dos favoritos no quesito contaminação por agrotóxicos ainda apresentam valores consideravelmente mais altos que os de duas grandes feiras de orgânicos da capital paulista, a do Parque da Água Branca e a do Ibirapuera.
Enquanto um maço de cenoura é 50% mais caro no supermercado, a unidade do repolho aparece pela metade do preço em estandes de produtores orgânicos. O quilo da batata chega a ser quase 40% mais caro na rede, e alguns produtos, como o alface, que poderia ser mais acessível se vendido separadamente, só é encontrado aos pares, fazendo com que o consumidor não tenha a opção de pagar três reais em um pé da hortaliça, mas seja obrigado a despender quase o dobro em 250 gramas do produto embalado.
Desde o início de 2018, a rede vem implementando o Espaço Saudável nas lojas e, ao lado dos orgânicos, aparecem produtos ditos naturais, produtos sem açúcar, sem lactose e sem glúten, e funcionais. Nos dois últimos anos, a venda dessas categorias aumentou 20% nas lojas onde o projeto foi estabelecido e mais de 500 novos produtos foram somados à prateleira “healthy”.
Ainda de acordo com a assessoria do grupo, a concentração desses alimentos no mesmo espaço “facilita a busca por esses itens e a apresentação de novos produtos. O projeto deverá chegar a 30 unidades do Pão de Açúcar até dezembro”. Visitamos os “cantinhos da saúde” e realmente é possível encontrar alguma oferta de produtos sem agrotóxicos, mas todas elas bem próximas a processados, além de claramente destinados a um público com um gasto médio elevado e previamente interessado em uma série de dietas da moda.
Outro aspecto observado é a ausência de produtos dessa categoria em vendas de bairro e mercados menores, o que se deve à falta de demanda somada ao alto custo, segundo comerciantes. Já nas grandes redes, ainda que orgânicos tenham lugar nas gôndolas e prateleiras, são geralmente relegados a setores exclusivos, o que na prática dificulta a pesquisa de preço e a conclusão de que, algumas vezes, vale financeiramente optar pelo alimento sem veneno.
Isso sem falar no fato de que os orgânicos minimamente processados encontrados em supermercados ainda são escassos e não contam com variedade de marcas, além de entre eles nem sempre figurarem os básicos da alimentação diária. Em geral, os orgânicos minimamente processados da dieta básica brasileira disponíveis nessas lojas não vão muito além de café, arroz, farinhas de trigo e de mandioca.
Na cidade, orgânicos e incidência política
Alguns espaços vêm ganhando destaque na cena alimentar em cidades grandes, não só pela disponibilidade da compra de produtos orgânicos em pontos fixos, mas também por se enquadrarem em um modelo diferente de comércio ou de incidência política sobre o tema. Na Rede Armazém do Campo, que comercializa produtos do MST e da reforma agrária por seis cidades brasileiras, a ideia principal é chamar atenção para a importância do movimento social e da produção do campo.
De acordo com o militante e gerente da loja de São Paulo, Pedro Misnerovicz, a maior parte dos produtos provém da agricultura familiar, sobretudo hortaliças, frutas e verduras, que se dividem em orgânicas e em transição agroecológica.
Os orgânicos são produzidos dentro de um sistema de produção que dispensa o uso de agrotóxicos e outros aditivos sintéticos, respeitando a sazonalidade e os ciclos da natureza.
Segundo Ademar Ludwig, coordenador da Rede, os problemas de logística, de incentivos públicos à agricultura orgânica e a presença de intermediários estão entre as dificuldades dos assentados, e por isso o movimento vem trabalhando a fim de orientar e dar suporte aos agricultores na transição para a produção orgânica. Hoje, no Brasil, as empresas que produzem agrotóxicos têm redução de 60% na base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de base estadual, e isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), federal. Do outro lado, a certificação orgânica pode custar de R$ 500 até 8.000 para o produtor rural. Os valores são diferentes de acordo com dimensão da terra, categorias de produtos, locais de venda, entre outros fatores.
Segundo Misnerovicz, devido ao encarecimento do alimento sem veneno, ele não chega a atingir a classe mais baixa, fazendo com que o público do Armazém ainda seja, em sua maioria, formado pela classe média da região. Ao observar alguns alimentos pesquisados anteriormente, entretanto, é possível constatar que o preço da loja da capital se assemelha bastante ao das citadas feiras paulistanas, e não ao da rede de supermercados. Para o gerente do local, a principal maneira para resolver a democratização do alimento orgânico é o Estado incidir através de políticas públicas, além de levar mais informação e qualidade de vida à classe trabalhadora.
Ainda na capital paulista, os institutos Chão e Feira Livre são conhecidos por funcionar sob o esquema do subsídio social, em que o preço de custo do produtor é apresentado ao consumidor e, na hora do pagamento, lhe é sugerida a contribuição de 35% para as despesas do local, cuja prestação de contas é toda aberta aos clientes.
No Instituto Chão, nem sempre as pessoas estão conscientes da importância de pagar o preço justo, segundo um dos 22 associados, Fábio Mendes. Hoje, são cerca de 450 consumidores por dia, a grande maioria das classes A e B. Cerca de 5% são da classe C – geralmente, trabalhadores do entorno e empregadas domésticas que vão às compras para as patroas, e, segundo Mendes, acabam levando coisas para elas também.
Um dos motivos de o espaço ter sido instalado na Vila Madalena foi exatamente a existência de um nicho de mercado, pois só assim, segundo Mendes, é possível remunerar melhor o produtor. Além de comercializar produtos orgânicos, de base agroecológica e artesanais da reforma agrária, Fábio diz que o instituto faz questão de incidir politicamente em prol da democratização do alimento sem veneno.
A proposta principal da iniciativa, segundo o associado, é atuar de forma mais horizontal, moldando um novo sistema de relação econômica e social, a partir dos pilares da sustentabilidade, do meio ambiente e da distribuição justa de terras.
Já o Instituto Feira Livre, por estar mais próximo ao centro da cidade, segundo um dos fundadores, Pedro Campos, acaba recebendo pessoas de variados níveis econômicos, ainda que a maior parte do público também pertença às classes média e alta, conheça os produtos orgânicos e tenha consciência sobre a relevância da contribuição sugerida para a manutenção do lugar.
Inclusive os compradores da xepa, composta por alimentos próximos de estragar e vendidos diariamente a R$ 1 na entrada da loja, possuem conhecimento sobre a importância de dar vazão a esses alimentos e têm facilidade em utilizá-los em preparações culinárias. Atualmente, no Feira Livre, as hortaliças e frutas provêm de agricultores familiares do entorno . Campos também confirmou que, além de atenderem cerca de 150 clientes por dia no local, realizam doações para pessoas em situação de vulnerabilidade social com regularidade.
Do outro lado da ponte
Se o problema da exposição a agrotóxicos se consolidou como uma preocupação importante, pensar em soluções voltadas à maioria da população tem sido a atividade de cada vez mais gente na periferia das grandes cidades.
Em São Paulo, há cerca de três anos surgiu o Armazém Organicamente, idealizado pelo empreendedor social Thiago Vinicius. Segundo ele, antes da inauguração do espaço, na Agência Solano Trindade, os pontos de compra mais próximos ao Campo Limpo e ao Capão Redondo, que juntos somam quase 500 mil habitantes, eram basicamente os supermercados e hortifrutis do vizinho Morumbi.
“Além da falta de acessibilidade financeira, esses são espaços em que não nos reconhecemos como consumidores. São bolsões de riqueza margeados por bolsões de vulnerabilidade.” Para ele, a correria do dia a dia também interfere radicalmente na escolha do alimento e, consequentemente, no processo de afastamento das raízes. “Os primeiros moradores da região vêm do Norte, Nordeste e Sul do país, com uma vivência da roça, mesmo, mas, quando chegam a São Paulo, a alimentação passa a ser substituída por uma coxinha, uma esfiha, o que ainda traz vários males à saúde, como hipertensão, depressão.”
Foi observando esse processo sistêmico da alimentação no país que nasceu o Armazém. Com a iniciativa, é possível encontrar orgânicos de quinta a sábado no ponto fixo, ou recebê-los em casa, através do primeiro serviço de entrega de “orgânicos da quebrada”, como eles mesmos gostam de dizer. “A pessoa tem que andar muito no Capão, no Campo Limpo para comprar uma alface, diferente de Pinheiros. E nesse caminho ela tem várias interferências, como industrializados, produtos de preparo rápido. Essa distância é crucial, pois é nesse momento que a decisão será tomada”, completa o empreendedor social.
Além do mais, o tema da segurança alimentar é histórico na periferia e transcende a preocupação incipiente da comida sem veneno. “Nós somos netos da luta contra a carestia, quando a comida estava muito cara e as pessoas morriam de fome. Nas décadas de 1970 e 1980, época da ditadura militar, os militantes da periferia iam até a Praça da Sé protestar contra isso. Nós somos a continuidade dessa luta. Damos outro significado a ela, com as ferramentas que temos hoje, para refazer a conexão da comunidade com a cultura alimentar”, conta Thiago, que toca a loja em parceria com a mãe e o padrasto.
A oferta de produtos no ponto fixo ainda é modesta, mas há expectativa de crescimento assim que a Cozinha da Tia Nice (a mãe do Thiago) for inaugurada, no final de agosto. Com prato feito do dia, buffet de saladas quentes e frias preparadas com os orgânicos da loja e sucos de frutas nativas, o restaurante comunitário é mais uma estratégia para democratizar o alimento saudável para a população de baixa renda.
A intenção, segundo Vinícius, não é vender atendimento, mas a comida em si, mostrando que o discurso do alimento saudável e sem veneno não tem classe social nem lugar para brotar. “O nosso lugar na sociedade é trazer esse conceito para dentro das nossas cozinhas, dos nossos quintais. E o povo não tem limite pra plantar, o cara pode morar na favela, em qualquer lugar, e ele planta.”
Um pouco mais para baixo, no extremo sul do município, a primeira CSA da periferia conecta produtores e consumidores, ou co-produtores, como se costuma chamar, para a estruturação de uma cadeia produtiva sustentável. CSA é a sigla para Comunidades que Sustentam a Agricultura. Alternativas viáveis, não só do ponto de vista de valorização do produtor rural, mas também porque proporcionam alimento sem veneno ao consumidor, que participa de um sistema de confiança, uma vez que tem a oportunidade de estar envolvido na produção do começo ao fim.
“O mais legal da CSA é que as pessoas sabem que vem direto do produtor, sabem seu nome, conhecem quem produz. Tem uma questão de afetividade. Porque estamos falando de relações também, não é? Ela não é uma cena só comercial, é uma atuação política, inclusive”, diz Jaison Pongiluppi, um dos mentores da CSA Zona Sul, que hoje é abastecida por 45 produtores de orgânicos e alimentos de base agroecológica da Cooperapas.
Nas CSAs, os consumidores pagam um preço fixo mensal e, faça chuva ou faça sol, recebem cestas semanalmente.
As comunidades se articulam na Associação CSA Brasil, organização sem fins lucrativos que, desde 2011, atua na criação de modelos agrícolas coletivos, com o objetivo de orientar os interessados em aderir ao sistema, inclusive a partir de formações, além de supervisionar as comunidades já estruturadas pelo país.
Para montar uma CSA, basta que um grupo de consumidores interessado em estabelecer uma relação de confiança com quem produz o alimento se alie a um agricultor, com o objetivo de solucionar problemas da cadeia do alimento que fogem ao mercado tradicional, trazendo para discussão conceitos ambientais, pequena escala, valorização do produtor, cadeia curta e qualidade dos alimentos.
O sistema das Comunidades que Sustentam Agricultura chegou ao Brasil entre as décadas de 1960 e 1970, e foi inspirado no modelo japonês conhecido como teikei. Claro que essa organização supostamente ideal deve ser traduzida de acordo com a realidade de cada local – nesse caso, a região do Grajaú.
“Há um ano, começamos a tentar com que as pessoas fossem até o ponto de retirada, mas vimos que não ia dar certo. É muito corrido. Nós sabemos que o modelo da CSA, de as pessoas retirarem a cesta e terem um momento super legal de troca, é muito saudável, mas para a nossa realidade nós tivemos que atualizar. Tem que ter essa empatia, essa escuta, e entender que o delivery também é um serviço a favor da democratização.” Em breve, também será inaugurado o primeiro ponto fixo de orgânicos do Grajaú, o Café da Mata.
Com a tentativa de solucionar a lacuna deixada pelo Estado, a população de mais baixa renda se mobiliza como pode para garantir o acesso aos produtos sem veneno na periferia, espaço não só marcado pela luta histórica contra a fome, mas também pela produção agrícola, como é o caso da Ilha do Bororé.
Jaison também é educador e permacultor na Casa Ecoativa, espaço que promove vivências ligadas à sustentabilidade e à cultura no bairro do extremo sul paulista, e questiona o lugar social dessa periferia que é produtora de alimento e cultura, mas nem sempre usufrui dos próprios recursos.
“Por que Parelheiros e Grajaú não consomem orgânicos, sendo que eles são os produtores? Essa conta não fecha, porque ela é fruto de uma estruturação colonizadora social e histórica, que é muito difícil de desenraizar.”
Se o direito à alimentação adequada e saudável para todos está previsto no artigo 6º da Constituição Federal, em que momento o produto orgânico passa a fazer parte de um nicho de mercado e perde força como direito do cidadão? Que políticas públicas, e quais não, atuam em prol dessa garantia? E como a sociedade civil vem agindo para resolver o problema do acesso ao alimento sem veneno para quem mais precisa?
Na próxima reportagem da série sobre desigualdade alimentar, um panorama sobre os orgânicos como direito do cidadão.