Leon Rodrigues/Secom/PMSP

No carnaval de SP, quem não tem abadá não entra

Vendedor que não trabalha para patrocinador do evento não participa da maior festa carnavalesca do Brasil

Praças cercadas, ruas bloqueadas e o comércio com as portas para baixo. Estas são cenas que costumam remeter ao final de um protesto ou a algum estado de exceção nas metrópoles brasileiras. Mas esta descrição não pertence nem a uma nem a outra circunstância.

A situação sobrescrita, na verdade, faz parte do maior carnaval de rua do Brasil, em São Paulo. Uma festa que, apesar de toda a sua essência democrática, vê parte de seu feitio se descaracterizar.

Antes que os apressados se irritem. Eu não vou falar mal do carnaval. Pelo menos, não da maior festa popular, auto-organizada e criativa da terra que pleiteou e venceu o título de país do dito cujo.

Mas em São Paulo, maior metrópole do Brasil, o que começou como uma brincadeira de criança feliz ganhou feições bizarras, em uma metamorfose de invejar a imaginação kafkaniana. Isso porque só quem tem abadá pode participar das vendas nas ruas dos blocos de carnaval da cidade.

Vendedores ambulantes que não estavam cadastrados nem vestiam o amarelo do patrocinador oficial não podiam participar da festa.

Enquanto isso, a Prefeitura de São Paulo se orgulha de uma parceria com o setor privado que lhe rendeu a bagatela de R$ 15 milhões em 2018, R$ 16,1 milhões em 2019 e R$ 21,9 milhões neste ano. Estes são os valores que a marca de cervejas Skol, fabricadas pela Ambev, pagou ao poder público para ter exclusividade.

A parceria dita que o dinheiro à prefeitura de São Paulo assegura o monopólio da venda de bebidas, a preferência pelos produtos da marca e a exclusividade de estampar a identidade visual oficial da celebração. É uma espécie de acordo de ganha-ganha entre o capital e o Estado.

A quantia não só é inferior ao que a corporação pagou ao carnaval de Salvador, R$ 40 milhões, e ao que o poder público municipal do Rio recebeu de uma terceirizada pela festa, R$ 28 milhões. Além disso, a cifra é menor do que o total que a gestão paulistana pretende gastar neste ano (R$ 38 milhões) com a manutenção dos equipamentos públicos de saúde.

Mas este tipo de patrocínio é também uma espécie de coerção sobre quase tudo o que há de cultural, contingente e popular no carnaval. Não à toa, a parceria Skol-prefeitura está em investigação no Ministério Público sob suspeita de irregularidades, segundo informou o site G1.

Quem estava nas ruas viu. Para manter o monopólio de uma das maiores empresas de bebidas do Brasil, a prefeitura mandou fiscais atrás de ambulantes que vendiam outros produtos. Confiscou mercadorias de pessoas que, em um cenário de 12,6 milhões de desempregados e 38,4 milhões de trabalhadores informais, buscavam por sustento.

Você pode não saber, mas guardas civis atrás de vendedores ambulantes em São Paulo são uma história recorrente, que se repete dia a dia nas regiões mais movimentadas da cidade. A gestão municipal divulgou que, nos últimos dias de festa, realizou 5096 apreensões relacionadas ao comércios de vendedores não cadastrados.

Mas tem mais. Neste carnaval, a prefeitura, ainda, obrigou tradicionais blocos de bairro, identificados com a história, os costumes e os moradores de regiões como o Bixiga, o Brás e a Mooca, a mudar de endereço. Isso tudo sem contar que mais de um bloco que cresceu nos últimos carnavais foi cancelado neste ano por não atender a exigências burocráticas.

Ao lado desta imposição de mudanças, o poder público trabalhou para atrair para a cidade artistas que não têm qualquer relação com São Paulo.

Cantores e grupos de música já famosos vêm para engordar (ainda) mais o seu cachê, quando poderiam muito bem vir à Pauliceia em outras ocasiões. Assim, deixariam a festa no município nas mãos de quem realmente o fez: seus habitantes, turistas e convidados.

À medida que o dinheiro aumenta com o crescimento do carnaval paulistano, recrudesce, por outro lado, o direito pelo usufruto dos espaços, dos serviços e da atmosfera que a cidade tem a proporcionar. 

Contra a espontaneidade da festa, áreas inteiras da metrópole foram inteiramente cercadas com tapumes de metal e estampas da marca Skol. Praças como, na zona oeste, o Largo da Batata, que se tornou palco de grandes manifestações culturais e políticas, estavam fechadas, cerceando a locomoção, a circulação e o acolhimento que deveria oferecer às pessoas.

Com pelo menos 678 cortejos realizados (crescimento de 38,5% em relação ao ano anterior), além do desfile das escolas no Sambódromo do Anhembi, o carnaval paulistano, seguramente, tornou-se o maior e mais importante do Brasil. Estima-se que 15 milhões de pessoas tenham participado dos quatro dias da festa.

Mas será que este é mesmo o carnaval que queremos?

Quem faz a pergunta não sou eu. Nabil Bonduki, ex-secretário de Cultura do município (2015-2016), questionou se a versão paulistana da festa, dadas as suas metamorfoses, não deveria parar de crescer. A pergunta consta em sua coluna para o jornal Folha de S. Paulo.

Ele é apenas uma das autoridades que mais trabalhou para viabilizar a celebração nas ruas. E não foi o único a levantar a questão.

Seu antecessor, Juca Ferreira (2013-2014), também ex-ministro da Cultura, fez uma pergunta semelhante, co-assinando um texto com o pesquisador Guilherme Varella. No artigo, os dois indagam o que o poder público municipal tem feito da festa nos últimos anos.

É verdade que, no carnaval, a alegria sobrepõe-se aos outros afetos. Mas também é verdade que a alegria, justamente por tal caráter, é usada para esconder outras coisas. Sinal dos tempos, o maior carnaval do país acontece cooptado pelas corporações com o auxílio do Estado.

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