O Joio e O Trigo

Crônica | Cultura alimentar agoniza, mas não morre. E o carnaval te socorre

Foi durante uma espécie de encontro do samba rural baiano e do calango do Sudeste que a Nestlé tentou vender leite Ninho

Há quem clame por aí que carnaval é o ópio do povo. Há quem reclame dos corpos nus, dos batuques e da moçada na rua. A estes, digo o seguinte: carnaval é também uma maneira de preservar tradições, de rememorar os mais velhos e consagrar a ancestralidade. E, se você crê que a comida fica fora disso, saiba que está enganado. Há muito que comunidades do samba reafirmam símbolos que fazem parte do nosso imaginário popular.

O samba duramente perseguido, como Nelson Sargento cantou, encontrou nas frestas maneiras de fazer sua passagem pelas Sapucaís para burlar preconceitos, censura e todos as mais variáveis formas de uniformização dos sujeitos. 

Esse grande caldeirão de borbulhas das brasilidades enfrenta, eventualmente, alguns obstáculos para se reafirmar com autenticidade. Muitos enredos das escolas de samba já tiveram que se disfarçar para fazer aquilo a que veio. Também já houve épocas que, para os desfiles saírem na Sapucaí, as escolas tiveram que aceitar verba do setor privado.  No carnaval de 2005, a Nestlé patrocinou uma tradicional escola de samba carioca. A Acadêmicos do Grande Rio recebeu o dinheiro para realizar o desfile “ Alimentar o corpo e a alma, faz bem”.

A Grande Rio cantou sobre alimentar corpo e alma em 2005, mesmo com ultraprocessados da Nestlé no meio do samba (Divulgação)

Na época, foram R$ 2,5 milhões, segundo uma reportagem da Folha de S. Paulo, para sustentar um samba que claramente fazia sinalizações aos produtos da marca. Enquanto o tema do Abre Alas era Gaia Mãe Terra,  feito para enaltecer a natureza e os alimentos, o samba cantava “Imenso Brasil da mistura, culinária que fascina, MOÇA o teu doce é saboroso(…) Lá em nosso NINHO tem sabor especial”. 

O curioso é que enquanto a Nestlé gastava milhões para ter palavras esboçadas dentro da canção, a comunidade dançava festas de colheitas, mostrava a comida ritualizada e a força da união que o alimento traz – ainda que a marca tente com enlatados tirar este aspecto tão caro a nós, povo brasileiro. 

Mais uma vez, a fresta venceu e burlou, à sua maneira, poderosos da máquina de dinheiro. Dos camarotes, os executivos da empresa quiçá se deram conta de que aquela não foi a avenida da Nestlé, mas dos seres que ajudaram a construir a nossa cultura alimentar.

Ainda que logos imensos da marca apareçam ao longo do desfile, ainda que tenha uma ala inteira falando sobre trigo e a industrialização do cereal, o que ocorreu nas caixas de bateria do mestre Odilon foi partido-alto, toque identificado por Nei Lopes e Luís Antonio Simas em Dicionário da História Social do Samba como proveniente dos batuques bantos ocidentais e com origens que remontam às atividades da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, na época em que ainda era a capital do país. Foi durante uma espécie de encontro do samba rural baiano e do calango do Sudeste que a Nestlé tentou vender leite Ninho.

Esta mesma escola, 15 anos depois, vem com um novo enredo. No carnaval de 2020, a Grande Rio irá falar sobre Joãozinho da Goméia, um pai de santo, filho de Oxóssi, o Orixá protetor das matas, e que, rezam as lendas, recebia também um Caboclo Pedra Preta, identificado por algumas crenças como a divindade responsável por quebrar encantos e demandas. Dessa vez, é mais notável a exaltação à natureza e às tradições ancestrais. E ficamos aqui torcendo que “seo” Pedra Preta, com todo o respeito, tire toda a uruca que a Nestlé tenha espalhado pelo mundo. 

A historia de tradições ancestrais de Joãozinho da Gomeia será enredo da Grande Rio este ano (Youtube)

E não é só essa agremiação que faz isso, não. Muitas escolas trazem ritos, passagens, figuras, festas populares e a comida tradicional também como temática de carnavais. Em 2015, o Salgueiro, por exemplo, falou sobre a culinária mineira. Inovou ao bater panelas pelo motivo e forma correta: o objeto se tornou instrumento da ala de bateria. E o samba versou a história da seguinte maneira: 

“Tem amor nesse tempero, Salgueiro

Esse trem é bom demais

Vem dos tempos dos meus ancestrais

Foi o índio que ensinou

Com sua sabedoria

O jeito de aproveitar

Tudo que a terra dá, no dia-a-dia

É de dar água na boca, se lambuzar”

Enquanto a furiosa cruzava a avenida e as baianas giravam saias inspiradas em leitão à pururuca, a Sadia tomava os espaços direcionados à publicidade do sambódromo. Tentava, com suas salsichas, desviar as atenções, mas a sapiência da história e a tradição pulsaram mais forte naquela madrugada. Todas as incongruências da avenida vão abaixo quando o rito da passagem é mais potente do que qualquer propaganda. 

Em 2013, a Vila Isabel foi campeã do carnaval carioca com um enredo sobre os conhecimentos do campo e da importância da partilha da comida. A passarela do samba virou caminho da roça, o bolo de fubá ganhou espaço, o feijão virou refrão e a mandioca foi exaltada.

O carro abre-alas “O planeta Terra e o Sol” simbolizava o trabalho duro e ainda trouxe o agricultor protegendo terras. O enredo deixava claro “coloque mais água no feijão que chegou mais um”, enquanto a bateria batia vestida de espantalhos. Lá pro final da apresentação, houve ainda menções às festas pela boa colheita, prosas com os compadres e procissões. Tradições que vêm perdendo espaço à medida que o agronegócio invade com toda força nossos campos e tira a autonomia dos pequenos produtores.

No ano passado, falamos aqui no Joio sobre o Censo Agropecuário, do IBGE, que mostrou que a concentração de terra aumentou nos últimos onze anos. A reforma agrária, que deveria distribuir terras no interior rural e, portanto, riquezas em um dos países mais desiguais do mundo, caminha em marcha à ré, mas a Vila Isabel cantou com fé: “Pinga o suor na enxada. A terra é abençoada”. 

Neste carnaval, a Unilever é umas das quatro marcas que irá dar as caras na transmissão dos desfiles da Rede Globo. Em 2020, algumas escolas investiram em sambas com temáticas que escancaram a crítica social. 

Nestlé e Unilever, duas marcas que se metem na ancestralidade do carnaval, são duas das maiores poluidoras do mundo (Constantinos Stathias / Greenpeace)

Num cenário recheado de “enredos de protesto”, fico aqui me perguntando qual a lógica em atrelar ao Carnaval comerciais de uma marca que investe aos montes para dificultar o acesso das pessoas ao conhecimento científico sobre o impacto negativo do consumo de ultraprocessados, como já mostramos aqui no Joio. Enquanto isso, a Portela cantará na avenida “okê okê arô”. Essas palavras juntas fazem a saudação a Oxossi, já mencionado como o protetor das florestas e dos animais. 

Essa divindade é também responsável pela fartura e por prover as refeições de todos. Agradá-lo é fácil, como diz o ponto acompanhado pelo toque agueré dos atabaques: basta um axoxó, feijão preto, camarão e amendoim. No fundo, eu também ficaria muito feliz com uma refeição dessa, onde o caldo Knorr passa longe. 

A “comida” que a Unilever e outras tantas marcas tentam enfiar em nosso dia-a-dia não engana nem a gente, muito menos os Orixås. Imagine só Oxossi recebendo um feijão preto temperado com o “Meu Feijão”, pozinho ultraprocessado lotado de aditivos que a Unilever produz. E ao qual devemos, sim, dizer: chuta que NÃO é macumba.

Fato curioso também é que nos ensinamentos Iorubá esse mesmo Orixá é filho de Iemanjá, aquela protetora dos oceanos e também entendida como a mãe de todos.  A rainha dos mares certamente se decepcionaria ao saber que a Unilever é uma das dez empresas que mais polui os oceanos, segundo o ranking do movimento global  Break Free From Plastic em 2019

Com comerciais da Unilever espalhados pela avenida, o samba da Portela seguirá pela Marquês de Sapucaí desafiando. E a azul e branco cantará “Com a ira de Monã aprendi a respeitar. A Natureza, o bem viver. Pro imenso azul do céu. Nunca mais escurecer”, e o recado estará dado: Unilever, Nestlé, ou qualquer marca que for, não que mexa com a nossa cultura alimentar, que ela não anda e nem andará só. Que a força de Monã, conhecido na crença tupi-guarani como o deus criador do mundo, do céu, da terra e dos seres vivos esteja com nós. 

Por Amanda Flora

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