Jefferson De Paula Dias Filho

Por cultura alimentar, CSA’s juntam de quilombolas a ‘urbanoides’

Comunidades que Sustentam a Agricultura possibilitam ganho de consciência sobre diversidade de alimentos ofertados no Brasil; são 140 espalhadas pelo país

“Aqui tem cobra, Gisely?”, pergunto, um pouco apreensiva, enquanto andava por entre todos os tons de verde da chácara da agricultora situada em Luziânia, Goiás. “Eu nunca vi cobra por aqui, mas a gente sabe que tem”, ela diz, andando em direção a um pé de mamão. Quanto a mim, costumo pedir licença enquanto caminho na mata. Além das lembranças de campo, as quais agradeço sempre pelo aprendizado, costumo levar várias mordidas de insetos e bichinhos que gostam muito do meu sangue. Essas, confesso que não agradeço tanto.

Fazia uma semana que Gisely não ia para a chácara e esse curto período já tinha sido suficiente para a natureza preencher espaços até então desconhecidos por ela.

“Acho que o Aleixo não viu isso. Nós podemos colher o brócolis para colocar na cesta de sábado”, reflete em voz alta.

Gisely Coité e Aleixo Leitão são companheiros e fazem parte de um movimento crescente no Brasil. As Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA’s) estão espalhadas pelos cinco biomas brasileiros e buscam cumprir as necessidades de cada comunidade. Isso significa que quilombolas, assentados, indígenas ou “urbanoides” podem ser os protagonistas.

Advogada de formação, Gisely optou pela agricultura para cultivar alimentos como o cajuzinho da Bahia que ganhou do pai (Jefferson De Paula Dias Filho)

“O movimento das CSA’s vai além do simples. Ele traz junto, no bojo, a possibilidade de um ganho de consciência expressado por pessoas que nem conheciam a maioria dos alimentos ofertados aqui. Não conheciam porque são “urbanóides”, nunca tiveram a experiência de ver crescer um pé de alface, nem de ver como é plantado. São crianças que nunca pegaram uma fruta do pé”, conta Toninho, um dos cinco primeiros associados da CSA Florestta.

Hoje, a CSA Florestta atende mais de oitenta famílias nas regiões do Gama, Águas Claras, Asa Sul e Asa Norte – um dos únicos CSA’s em Brasília que atende a uma cidade satélite além do plano piloto. No Brasil, existem 140 comunidades registradas, sendo que 22% delas ficam no Distrito Federal. Segundo Wagner dos Santos, co-fundador da CSA Brasil, isso se deve a diversidade de pessoas e necessidades da região.

Danielle Kemp nasceu em Santa Cruz do Rio Pardo, município próximo a Bauru, em São Paulo. Começou a pesquisar sobre alimentação quando engravidou, em 2015. Ela conta que, acompanhada de Juliana Mello, nutricionista que hoje faz parte da CSA Brasil, foi pouco a pouco descobrindo quais eram os melhores caminhos a trilhar quando o tema era alimentação.

 “A gente descobriu os rótulos, as comidas boas e as pedaladas da indústria”, conta.

Junto com o conhecimento, veio também a consciência sobre a sazonalidade dos alimentos, a reciclagem e tantos outros aspectos que fazem parte dessa cadeia circular.

“Comecei procurando simplesmente a cesta de alimento orgânico. Ponto. Aí, comecei a prestar atenção nas ‘ogrices’ que eu fazia e não me tocava. O pessoal trazia a caixinha de ovo que tinha acabado, o saquinho da alface… Eles lavavam e devolviam. Eu jogava tudo isso no lixo. Chegava em casa, rasgava o saquinho e jogava no lixo”, enfatiza Danielle.

“As pessoas aprendem [na CSA] a utilizar tudo nos alimentos: os frutos, as folhas, as raízes. A maioria esmagadora das pessoas aqui não joga mais fora as folhas da cenoura, da beterraba, coisa que, tradicionalmente, na nossa cultura, essas partes são descartáveis. Aqui, a gente faz um reaproveitamento de tudo, inclusive das sementes: a gente pede para as pessoas guardarem e replantarem”, complementa Toninho.

Não tem receita de bolo: um bairro ou comunidade sente a necessidade de consumir alimentos in natura sem defensivos agrícolas ou um agricultor sente a necessidade de escoar ua produção e as pessoas se organizam para cumprir tais objetivos. Com Gisely e Aleixo, não foi diferente. Ela, advogada. Ele, engenheiro. Decidiram mudar de vida: sair da cidade grande para criar os filhos em contato com a natureza.

A mudança exigiu esforço e tempo. Primeiro, arrendaram uma terra ao lado da casa em que moravam, no Gama, Distrito Federal. Com o passar do tempo, o espaço foi ficando pequeno. Então, decidiram comprar uma chácara em Luziânia, no Goiás, pouco menos de uma hora de onde moram.

Parte do caminho é feita em estrada de terra e, como boa parte do Brasil, só se enxerga soja. Segundo Levantamento Sistemático da Produção Agrícola do IBGE, o estado do Goiás é o quarto maior produtor de soja. Só perde para o Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Paraná.

Tudo que o casal planta na chácara pode ser caracterizado como orgânico porque tem a certificação participativa, exigida pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), mas, de acordo com Wagner, o selo de orgânicos conferido ao produtor não é um requisito para que a comunidade se caracterize como uma CSA.

“A comunidade confia que aqueles agricultores não fazem uso de defensivos, não há necessidade de certificação”, afirma em entrevista por telefone.

Dá pra ver de longe a “barreira verde” de árvores na propriedade de Gisely e Aleixo que faz divisa com a plantação de soja. Essa é uma das técnicas utilizada na agricultura para que os insumos agrícolas das propriedades convencionais não afetem a produção sem o uso dos defensivos.

A “barreira verde” erguida por Gisely e Aleixo faz divisa com plantações de soja em Luiziânia, Goiás (Jefferson De Paula Dias Filho)

“Não é só comer um alimento que é produzido de forma orgânica. É todo um contexto: a gente cuida da água, a gente cuida do solo, a gente cuida do ar, a gente planta árvore, a gente torna o solo mais rico”, ressalta Gisely.

Jaqueline de Albuquerque diz que até o início de 2019 “não dava muita bola

pra orgânico”, porque acreditava que era uma maneira de cobrar mais caro pelo

alimento. 

“Comecei  a pesquisar sobre alimentação saudável e consumo consciente. Foi onde entendi a importância do orgânico, da produção familiar e dos microprodutores”, revela. 

Na CSA, tarefas como logística, pagamento e entrega são feitas pelos consumidores, chamados de co-agricultores. 

“Acreditamos que todos somos a mesma coisa, apenas temos papéis diferentes. Não estamos pagando pelo alimento, estamos todos juntos trabalhando para que o alimento chegue até a nossa mesa”, menciona Wagner, co-fundador da CSA Brasil.

“A gente é criado de uma forma pra pensar numa economia linear. Você vai no mercado, pega na prateleira, consome e descarta. E o que veio antes e o que vem depois não importa. Eu comecei a ter essa consciência sobre os alimentos e tudo o que eu consumo: de onde vem, qual é a origem, o que isso causou, quanto de combustível foi poluído pra chegar até o meu prato… Hoje quando uma coisa estraga eu fico muito irritada! Porque foi tanto cuidado, tanto carinho que foi dado para esse alimento, que a gente não pode simplesmente jogar ele fora e desperdiçar.”, conta.

Princípios 

As comunidades que sustentam a agricultura seguem pelo menos dez princípios, fundamentados pela Associação de Agricultura Orgânica do Japão. Um deles é a corresponsabilidade, partilhar da abundância ou escassez dependendo da época e do que for possível colher.

E imprevistos ocorrem. Não faz muito tempo, os pombos comeram o canteiro todo de alface que Aleixo e Gisely haviam plantado. “Quando o Aleixo me contou, comecei a chorar”, lembra ela. Os alimentos são plantados para a quantidade certa de famílias associadas, assim os agricultores evitam o desperdício.

A parte financeira é feita por ciclos de compromissos que, segundo Wagner, são estabelecidos por contratos entre agricultores e consumidores e variam de quatro meses,seis meses ou um ano. A maioria das comunidades trabalha com um compromisso anual. Wagner avalia que isso traz maior estabilidade ao produtor.

“A gente é criado de uma forma pra pensar numa economia linear. Você vai no mercado, pega na prateleira, consome e descarta. E o que veio antes e o que vem depois, não importa. Eu comecei a ter essa consciência sobre os alimentos e tudo o que eu consumo: de onde vem, qual é a origem, o que isso causou, quanto de combustível foi poluído pra chegar até o meu prato. Hoje, quando uma coisa estraga, eu fico muito irritada. Porque foi tanto cuidado, tanto carinho que foi dado para esse alimento, que a gente não pode simplesmente jogar ele fora e desperdiçar, avalia Gisely.  

Mas não são todos que partilham da mesma opinião: 

“E se alguém sair da CSA após os seis meses de contrato? Como fica o agricultor?”, pondera Ênio Marchesan, agrônomo e professor da Universidade Federal de Santa Maria. “Não vejo como uma alternativa rentável para o agricultor. Eu viajo para a Europa, você para a Índia e o agricultor fica como?”, completa. 

Gisely disse não ter tido problemas sérios com pagamento, justamente porque há compreensão de ambos os lados: 

“Se um consumidor viaja ou sai de férias, ele não deixa de pagar a cesta porque sabe que é o nosso sustento e tem também a nossa compreensão quando alguém que sempre colaborou com a comunidade fica desempregado, por exemplo”, ela aponta.

Estávamos quase chegando ao galpão da chácara, quando um bando de formigas vermelhas picou o meu pé esquerdo – ou melhor, quando eu invadi, pisando, a casa das formigas vermelhas. Sabia que não poderia ir embora sem uma lembrança dolorida. Ainda bem que não foi cobra e, pelo menos dessa vez, descobri que babosa é um ótimo remédio para aliviar os efeitos das picadas.

Por Juliana Fronckowiak Geitens

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