Na crise sanitária, quem tem maior poder aquisitivo usa delivery com estímulo governamental enquanto pescadores artesanais desmoronam
Cem jaraquis a dez reais. Esse foi o preço acordado entre as cinco famílias de pescadores de Iranduba e Manacapuru, municípios da Região Metropolitana de Manaus e igrejas do bairro Praça 14 de Janeiro, na capital do Amazonas, durante a madrugada, para que horas depois os peixes fossem distribuídos na comunidade.
Para os pescadores de Iranduba e Manacapuru não foi o melhor dos negócios. No Terminal Pesqueiro de Manaus, conseguem vender o cento do Jaraqui a cinquenta reais. Mas não tinham tempo, gelo, nem dinheiro. Além do mais, chegar em casa pode significar um dia inteiro dentro do barco. Fizeram negócio.
As famílias entregaram duas embarcações lotadas de Jaraqui com 12 mil peixes a dez reais o cento, o que rendeu R$ 1.200 no total. Se a embarcação não fosse própria, os pescadores teriam de pagar metade do montante para o dono da embarcação como aluguel, o que não é raridade entre as famílias que vêm principalmente do interior do estado pra vender na capital.
Mais tarde, por volta das 14h, filas se formaram na frente das igrejas. Um Jaraqui, que tem de 22 a 25 centímetros, pode ser dividido entre duas pessoas em uma refeição.
As ruas e os becos dos bairros estão mais vazios depois que o governo estadual fechou escolas e o comércio não essencial. Praticamente, não há ambulantes nas ruas. Então, o alvo das entregas são as famílias carentes e desempregados pela crise do coronavírus.
Pessoas que, por exemplo, vendiam fruta nas esquinas das ruas, que vendiam picolé ou até mesmo peixe. Foi um bom negócio pra quem recebeu a doação de pescado. Em grandes feiras municipais, como a “Manaus Moderna” e a “Panair”, a dezena do Jaraqui é vendida entre dez e doze reais por atravessadores.
Lógica supermercadista
Naturalmente, a pouca oferta do pescado agravou a situação dos pescadores na pandemia. Se o pescador decide pescar se expõe ao risco de contaminação. E, se não pesca, não tem renda. Além de problemas como a exposição nas grandes feiras e terminais pesqueiros, ainda enfrentam uma nova concorrência: o delivery feito por piscicultores e incentivado pelo governo do Amazonas, comandado por Wilson Lima, do PSC, um dos poucos governadores ainda aliados ao presidente Jair Bolsonaro. Lima, aliás, foi um dos sete entre 27 líderes estaduais que não assinaram uma carta pela democracia e contra o incentivo e a participação de Bolsonaro num ato pró-ditadura, no dia 19 de abril, em Brasília.
O Jaraqui, segundo o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam), e a Colônia dos Pescadores de Manaus, é o peixe mais pescado, comercializado e consumido no estado. Na época de entressafra, que vai de abril a junho, é o que mais aparece nos rios.
“Entressafra é o período mais difícil de fazer a captura dos peixes. Isso, por influência direta da sazonalidade, da subida e descida dos rios. Os peixes estão embaixo das florestas inundadas, embaixo dos bancos de macrófitas, se alimentando para que consigam ter maior reserva de gordura. Julho é o mês em que o rio começa a dar sinais que vai baixar. Esses peixes começam a se reunir em cardume novamente pra subir pros rios, pros afluentes dos rios que eles vieram”, explica Anndson Brelaz, professor de Recursos Pesqueiros do Instituto Federal do Amazonas (Ifam).
É isso mesmo. Nem a pesca no Amazonas escapou da lógica supermercadista, da “uberização ou ifoodização” e da instantaneidade do prato semi-pronto.
Semana “santa” só pra piscicultura
Segundo o Idam, o estado do Amazonas é o maior consumidor de peixe no Brasil e um dos maiores do mundo. O pescado é um alimento básico para habitantes da zona rural e urbana. Algumas comunidades ribeirinhas, em situações bem específicas, o consumo chega a até 180 quilos por pessoa ao ano e, na capital Manaus, a 33 quilos por pessoa anualmente.
Na Semana Santa, a expectativa de consumo sempre aumenta. Ano passado, foram 150 toneladas de peixe comercializadas. Este ano, a Agência de Desenvolvimento Sustentável (ADS), braço da Secretaria de Produção Rural do Amazonas (Sepror) e que serve como um facilitador entre produtores rurais e consumidores, comprou R$ 500 mil em pescado proveniente de piscicultores amazonenses para doar à população carente. Para dar mais um empurrãozinho, também divulgou os contatos dos mesmos piscicultores para que pudessem comercializar por delivery.
A piscicultura é uma espécie de agronegócio das águas. Muitas vezes predatória, ela afeta negativamente o equilíbrio dos rios e das espécies, além de se utilizar de modelos bastante questionáveis de criação de peixes em cativeiro.
É o oposto da pesca artesanal, que é uma “guardiã” da biodiversidade, que respeita os ciclos da vida nos rios, valorizando o tempo de desenvolvimento de cada tipo de peixe e as relações naturais entre as espécies.
De acordo com o último levantamento da Secretaria de Pesca do Amazonas, de 2018, existem 2.100 piscicultores cadastrados, que trabalham com o cativeiro de espécies – cerca de 90% com o Tambaqui, e o restante com Matrinxã e Pirarucu.
Já na pesca artesanal são 70 mil famílias cadastradas que capturam e consomem cerca de 120 espécies de peixes. Bom salientar que os números são conflitantes: o Sindicato de Pescadores do Amazonas estima 200 mil pescadores artesanais no estado.
Isso quer dizer que, considerando que existam 70 mil pescadores, a ação governamental auxiliou menos de 3% dos fornecedores de peixes, além de estimular uma atividade de impacto negativo para a biodiversidade local.
“O governo não pode comprar de qualquer jeito. O governo precisa estabelecer critérios porque se não os órgãos de controle vêm em cima depois. É muito fácil dizer que o governo deveria prover, deveria fazer… O governo lança os programas, aqueles que acessam estão contemplados. Os que não acessam, eu não posso bater na porta deles e dizer ‘ei, por favor, vende pra mim que eu vou comprar’”, disse Flavio Antony Filho, presidente da ADS.
Conversamos com alguns dos piscicultores que venderam esse peixe na ação da Semana Santa, no Amazonas. Muitos deles relataram a compra de pescadores artesanais da região para fazer entregas. É o caso de Alessandro Marcelo Cascais.
“O peixe que a gente criava acabou, então, estamos comprando de pescador artesanal no Terminal Pesqueiro e de outros piscicultores. A gente que tá na linha de frente não pode parar, tem que se arriscar. Quem pode parar, para, quem não pode, tem que trabalhar. Até supermercado: se a gente parar, eles param. A gente faz parte da central que abastece Manaus, a Manaus Moderna. Essa é uma cadeia de negócios”, disse o piscicultor.
Por enquanto, Alessandro entrega pescado na rede Atack de hipermercados, que tem quatro lojas em Manaus e a Rede Vitória, com três unidades. Ele costumava vender também para restaurantes. Entregava mil quilos de peixe por semana no restaurante de um amigo, cota que diminuiu para 90 quilos durante a crise do coronavírus.
Alessandro recebeu proposta de compra do pescado pelo governo na Semana Santa, mas disse não ter aceitado por medo na demora do pagamento. Uma situação que já experimentou no ano anterior.
O distanciamento é claro: quem tem poder aquisitivo consegue até tartaruga via delivery. Mas paga caro por isso. Quem não tem, precisa continuar indo às feiras para adquirir até o peixe mais comum por lá.
“Quem utiliza o delivery é o povo rico. O povo pobre dificilmente consegue comprar e a categoria de pescadores artesanais fica mais uma vez desprotegida com essa competição. E, agora, agravou mais. Manaus disparou no número de casos por coronavírus e número de pessoas em isolamento e contaminação, até os pescadores precisam ficar mais em casa”, disse Pedro Hamilton, pescador, filho de pescadores e presidente da Associação de Pescadores Artesanais e Pescadores Rurais do município de Manacapuru.
Leocy Cutrim, secretário-executivo de Pesca e Aquicultura do Amazonas, disse não existir nenhum decreto estadual que impeça a pesca e o transporte de alimentos no estado. Alega que as feiras da Panair e Manaus Moderna, que abastecem o estado, são responsabilidade municipal, e o Terminal Pesqueiro, do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Quem não faz delivery, vai à feira
Dados atualizados nesta segunda-feira, 27 de abril, pelo Ministério da Saúde revelam 3.928 casos confirmados de Covid-19 no estado do Amazonas. Essa situação coloca o estado na quinta posição, atrás de São Paulo, que concentra a maior parte das notificações, Rio de Janeiro, Ceará e Pernambuco.
Manaus já enfrenta faz semanas um colapso da rede hospitalar e do sistema funerário, com cerca de cem enterros diários do último final de semana para cá. Além da capital, outros 46 municípios já têm casos confirmados. O total é de 320 pessoas mortas no território amazonense.
O estado do Amazonas possui características peculiares. Tem 62 municípios, sendo 43 deles cidades ribeirinhas, sem acesso rodoviário. O transporte é essencialmente fluvial e as viagens, normalmente longas. Itens básicos de consumo, como alimentos não perecíveis para merenda escolar, gás e combustível podem levar dias a até semanas de viagem entre a capital, Manaus, e alguns desses municípios.
“O abastecimento do estado é completamente dependente da pesca artesanal. A cadeia de comercialização do pescado muda entre as cidades do interior, mas, em geral, está relacionada ao tamanho do município. Nas cidades menores, o pescador é o próprio vendedor do pescado ou os pescadores concentram em um determinado feirante que faz a venda pra eles, mas é um processo bem direto – pescador direto ao consumidor, ou pescador, feirante e consumidor. Em Manaus, é um pouco mais complexo: tem as feiras de bairro, os locais de desembarque, supermercados, abastecimento para grandes restaurantes”, explica Carlos Edwar, professor de Manejo Pesqueiro na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Historicamente, as feiras em Manaus se consolidaram próximas às orlas, portos e também às rodovias BR-174 e AM-010, onde são escoadas as mercadorias para o abastecimento local.
Manaus Moderna, a Panair e o Terminal Pesqueiro são os lugares de maior fluxo de pessoas, mas, só na capital do Amazonas, existem 43 feiras legalizadas, instaladas em diversos bairros da cidade e com características econômicas e sociais diferentes. Estima-se que essas feiras geram renda para, aproximadamente, 18 mil pessoas.
“De uma hora até as cinco horas da manhã tem gente comprando e vendendo aqui no Terminal Pesqueiro. Cerca de duas mil pessoas nesse horário, todas as noites, que vêm dos bairros, por todo o tipo de transporte, comprar o peixe e levar pra vender em esquina de rua, em feira, em algumas bancas, pequenos supermercados e aglomeram grande quantidade de gente”, diz Romildo Palmere, presidente do Sindicato de Pescadores do Amazonas.
O desespero para vender o pescado é grande. O número de compradores vem gradativamente diminuindo e não há nem mesmo um informativo de iniciativa do governo para que as pessoas se protejam com máscaras e façam uso de álcool gel para higienização – além dos problemas normais de higiene que os feirantes enfrentam já há muito tempo. Enquanto isso, o custo de vida aumenta.
“Os comércios aumentaram tudo. O óleo que pra nós era R$ 3,20, agora tá R$ 5 [o litro]. A farinha – o caboclo do Amazonas consome muita farinha – era R$ 2 o quilo. Ontem, fui comprar a farinha e tá R$ 5 ou R$ 6. O pessoal vai morrer de fome, porque não tem como comprar e como trabalhar”, enfatiza Raimundo de Souza Sudré, pescador há quase 30 anos, filho de seringueiro e presidente do Sindicato de Pescadores de Manacapuru.
Política Pública?
Conhecido como Seguro Defeso, o Seguro Desemprego do Pescador Artesanal (SDPA) é um benefício pago aos pescadores, que fica proibido de exercer a atividade pesqueira durante o período de defeso de alguma espécie. É uma garantia de proteção de espécies muito capturadas, para que possam se reproduzir sem ameaça ou interferência humana.
Desde abril de 2015, a habilitação e a concessão do Seguro Defeso são de responsabilidade do INSS. A gestão cabe ao Ministério da Economia. O benefício tem o valor de um salário mínimo mensal. A duração do defeso é definida pelo Ibama, de acordo com a época de reprodução de cada espécie, com limite de cinco meses.
No Amazonas, dados da Secretaria de Pesca mostram que pouco mais de 55 mil pescadores artesanais foram contemplados com o benefício em 2018. Em 2019, o seguro começou a contar quatro meses a partir do dia 15 de novembro, feriado nacional da Proclamação da República. A pesca dos peixes Pirapitinga, Mapará, Sardinha, Pacu, Aruanã, Matrinxã, Capari e Surubim foi proibida no estado até 15 de março de 2020, época em que os primeiros casos de Covid-19 começaram a aparecer.
Considerando a estimativa de pescadores pela Secretaria de Pesca, o seguro defeso contempla mais da metade dos trabalhadores. Entretanto, considerando a estimativa de pescadores pelo sindicato, o seguro não abrange um quarto da categoria.
Importante ressaltar: que o Senado aprovou, na semana passada, o Projeto de Lei 873/2020, que inclui a liberação do auxílio emergencial para trabalhadores autônomos e informais que atuam como pescadores artesanais, caminhoneiros, diaristas, garçons, motoristas de aplicativos, entre outros. A medida foi aprovada por unanimidade e, agora, precisa ser sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro para começar a valer.
O problema, segundo Ronildo Palmere, é que, para ter acesso aos benefícios mencionados, o pescador precisa de um cadastro de “pescador profissional” que não é atualizado desde 2014.
“Desde 2014, todos os cadastros novos, que mandamos para a secretaria não foram atualizados. Além disso, muitos pescadores não receberam o seguro defeso por causa de mudanças no sistema do INSS. Pintou, também, agora, o auxílio emergencial de 600 reais, mas poucos pescadores têm direito. Alguns receberam, porque têm bolsa família ou quem tem cadastro nacional dos trabalhadores”, disse o presidente do Sindicato de Pescadores de Manaus.
“Nós somos os maiores guardiões da águas aqui no estado do Amazonas. Nós não poluímos os rios e nós não recebemos contrapartida do governo em nada. Eles deveriam ajudar, pra gente continuar cuidando do patrimônio do estado. É o nosso dever cuidar das águas, das florestas e dos animais”, enfatiza Ronildo.
Em tempos de diminuição do consumo de pescado, com impactos sociais tremendos, a vida nas águas dos rios pode entrar num nível diferente de equilíbrio, difícil de ser previsto, por vários fatores.
“É difícil dizer que o ambiente vai voltar ao que era antes do processo de exploração, porque, além da ação do homem, existem as interações entre as espécies, como a competição e predação. São processos difíceis de prever. A gente costuma dizer que, na natureza, o ambiente que foi alterado volta pra outro tipo de equilíbrio cada vez que ocorre uma ação. Inclusive, a retirada ou diminuição da presença do homem como um predador no sistema”, conclui o professor da Ufam, Carlos Edwar.