Foto: Denise Matsumoto

Descolonizar o imaginário para sobreviver ao coronavírus (e depois)

“Soluções” apresentadas pelas elites políticas expõem urgência de que a sociedade encontre alternativas de fato para descoronizar e descolonizar o planeta

O ministro da Economia oferece socorro aos bancos, que não se cansam de bater recordes de lucro em meio ao desemprego também recorde. O governador de São Paulo, supostamente um ponto fora da curva em meio à fanfarronice do Planalto Central, só sabe dialogar com hipermercados e fabricantes de comida-porcaria como meios de evitar o desabastecimento — quem nasceu para farinata nunca fará saudação à mandioca e ao milho.

Uma grande rede varejista bombardeia a caixa de e-mails com promoções de tudo o que supostamente precisamos para atravessar a quarentena: pneus, equipamentos de ginástica, celulares, geladeiras, computadores. Para não colocarmos nossos corpos em risco na busca por comida, apostamos por fortalecer a “servidão voluntária” dos aplicativos de entrega.

Tomo emprestado o título de um livro publicado pela Editora Elefante para fazer um apelo: temos uma chance de descolonizar o imaginário.



É importante você saber que eu integro o conselho editorial da Elefante, de maneira voluntária, e que participo eventualmente do processo de edição dos livros, alguns dos quais servem de inspiração para esse texto.


Estamos diante de uma oportunidade única (a última?) de repensar nosso modelo civilizatório. O destino talvez tenha lançado sobre nós sua maior ironia quando fez o coronavírus atingir em cheio os dois pilares do capitalismo do século 21: a falta de tempo e o consumismo.

A profusão de lives musicais (devidamente patrocinadas) no Instagram é uma demonstração formidável da capacidade do sistema hegemônico em se adaptar para recuperar terreno sobre esses dois pilares. Rapidamente marcas se apossaram do grande fenômeno de audiência da quarentena.

É emblemático que algumas corporações causadoras de doenças crônicas que agravam em muito a covid-19 se coloquem agora como nossas companheiras na travessia de um momento psicologicamente tão difícil. Ao mesmo tempo, oferecem a diversão necessária para “ocupar” nosso tempo: para que não tenhamos de olhar no espelho e enxergar a terrível mediocridade que controla nossa era.

Escapar do bombardeio

Nos últimos anos, toda empresa que existe sobre a face da Terra passou a uma disputa incessante pela nossa atenção (Naomi Klein flagra o começo dessa trajetória em Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido, lançado na virada do século). Criou-se a ideia cruel de que já não tínhamos tempo a perder.

Se faltava algum passo para revogar em definitivo o direito à preguiça, Facebook, WhatsApp e Instagram fecharam o circo e o cerco. Quando foi a última vez que você ficou sem fazer nada? Não, não estou falando de deslizar o dedo sem rumo pela tela do celular. Estou falando de preguiça absoluta — sem qualquer pretensão de que seja o ócio produtivo de Domenico de Masi.

Se você teve a chance de olhar para dentro de si nas últimas semanas, pode ter se dado conta de que aquela soda italiana depois do almoço não é lá tão importante. Nem a discussão sobre café na prensa francesa ou na prensa italiana. Longe disso.

Dá para sobreviver sem a loja de roupas ou de sapatos. A última novidade tecnológica pode esperar. O corte de cabelo, a unha, a barba têm como ficar para depois. Em outras palavras, temos como romper com um padrão de consumo — de existência — que nos venderam como obrigatório. E, sim, já deu para notar que este texto está direcionado a uma bolha, né? À bolha das pessoas que bem ou mal têm como fazer home office, manter o emprego, alimentar-se.

Rediversificar-se

Esse é o pavor do capitalismo diante da quarentena: e se as pessoas descobrirem que podem ser felizes de outras maneiras? De várias maneiras: os últimos três séculos foram construídos em cima da ideia de que só existe um jeito certo de se viver. As mulheres devem se portar como mulheres, os homossexuais são indesejáveis, os indígenas devem se converter ao “nosso modo de vida”, à nossa verdadeira religião: o dinheiro.

Em Mineração, genealogia do desastre, o argentino Horacio Machado Aráoz analisa como essa lógica foi implementada em nossas terras latino-americanas. Qual foi o papel escolhido para nosso rincão na divisão global do trabalho, e qual foi o processo cultural que fez com que se entranhasse no oprimido a lógica do opressor.

Essa é, para mim, a principal contribuição do livro: entender como o processo de violência se reproduz, se naturaliza. É até difícil escolher um exemplo em meio à pandemia. Motoristas de Uber que querem seguir trabalhando porque enxergam a miragem do dinheiro? Nanoempresários de si mesmo que colocam em risco a saúde de seus semelhantes porque se enxergam como pares de um Luciano Huck?

“Retrospectivamente, o extermínio originário das populações nativas de Nossa América e o recurso antieconômico e abusivo à violência funcionaram como verdadeiros atos de fundação, acontecimentos pedagógico-políticos nos quais essa aventura da matéria vivente cientificamente nomeada como ‘homo sapiens’ começa a adentrar-se numa aprendizagem cada vez mais sistemática de um saber perverso: a arte da crueldade e da cobiça como práticas aparentemente infinitas e como sentido da existência”, escreve Horacio.

Em outras palavras, o tempo de quarentena nos dá a chance de adotar novos parâmetros para definir sucesso e fracasso. Para refundar nossos valores em termos de solidariedade. O outro – nosso semelhante – precisa deixar de ser antejulgado como inimigo em potencial.

Realinhar nossas referências

Hoje, muitos de nós aspiram ser como o dono do Madero: não veem problema na morte de cinco mil ou sete mil pessoas, desde que continuem enchendo as burras de dinheiro. O incômodo de Junior Durski com a quarentena é a perda de alguns trocados? É o medo de que as pessoas descubram que não precisam daquela tranqueira de hambúrguer para sobreviver? Ou é o pavor de deixar de ser um norte — um mito — de uma sociedade que, no lugar do sucesso individual, valorize respeito mútuo e relações justas? Luciano Hang, o “Velho da Havan”, teme que as pessoas saiam do transe e o enxerguem como o sujeito desprezível e vazio que realmente é?

Em A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular, a pesquisadora argentina Verónica Gago aponta as causas do fracasso dos “governos progressistas” em superar o neoliberalismo. Para ela, a grande questão é enxergar o Consenso de Washington como algo imposto exclusivamente por forças imperialistas, que pode ser superado apenas por macropolíticas. Assim, a felicidade política fica submetida ao estatismo.

Ela recorda que boa parte da população latino-americana aprendeu a viver por si: inventou relações econômicas à margem do Estado e do mercado, e que só mais tarde, quando se tornaram lucrativas, é que foram incorporadas ao status quo. Ou seja, alguns dos valores inerentes do neoliberalismo estão entranhados no povo, mesmo o mais pobre. E, portanto, superar esse modelo de vida demanda soluções de baixo pra cima, e não de cima pra baixo. Em outras palavras, é preciso disputar o imaginário e construir outros caminhos.

Banalidades fundamentais

A indústria de ultraprocessados está ocupadíssima nesse momento contabilizando o lucro dos estoques esgotados. É uma boa hora para que muita gente descubra que cozinhar não é um fardo, como ela quis fazer crer, mas um gesto de cuidado com os outros e de autocuidado.

Para que muitos entendam que cortar cebola não demanda habilidades mágicas, que dá para colocar o feijão na pressão enquanto se faz alguma outra coisa da vida, que preparar mandioca é uma banalidade mais que fundamental.

Que o chefe terá de abrir mão de meia hora do seu tempo, e não o contrário, porque, afinal, é a sua saúde que está na reta. Que parte do machismo diário se resolve com uma divisão igualitária de tarefas, e não com comida congelada e micro-ondas.

Até há poucos meses ninguém dependia de iFood, Rappi, Uber Eats. Na verdade, ninguém depende. Ainda bem. Em Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, o pesquisador britânico Tom Slee já demonstrava como a “economia do compartilhamento” residia na transferência absoluta dos custos à sociedade para maximizar lucros ao nível do obsceno; de como essas corporações desafiavam o Estado e as regras de convívio definidas democraticamente — apesar do autoritarismo de nossas democracias.

A recusa do iFood em pagar um salário mínimo aos entregadores infectados — sim, doentes! — é só a milionésima demonstração da crueldade de um modelo de negócios do qual não precisamos. Sigamos a sugestão de Slee e do livro Cooperativismo de plataforma: vamos nos apropriar do que interessa, que é a tecnologia, e nos livrarmos do poder dessas corporações.

Recuperar a autonomia

Recuperar nossa autonomia nas coisas mais simples tornou-se uma necessidade. Uma virtude. A perspectiva de um isolamento prolongado nos coloca diante da possibilidade de aprender e reaprender. Temos a tecnologia como aliada. É possível encontrar fóruns e vídeos sobre conserto de eletrodomésticos, culinária, mecânica de automóveis, elétrica, hidráulica, quase todo serviço manual que se possa imaginar.

Isso será útil também no pós-coronavírus, seja lá quando isso for, porque estaremos com menos dinheiro. E porque precisaremos inventar relações que superem o meramente monetário. Em outras palavras, teremos a chance de buscar dentro de nossas comunidades habilidades e saberes que não estejam atravessados pelo consumo. Essa é uma perspectiva absurdamente otimista? Sim.

Não procurar soluções onde não há

É inútil esperar soluções da classe política tradicional. Por diversos motivos. Entre tantos, porque são pessoas embolhadas que não têm dimensão da realidade e porque estão financiados pelas forças que criaram e continuam criando os maiores problemas de nossa época. Continuar aguardando passivamente por saídas já não é racional: estamos diante de uma situação clara de vida ou morte. O capitão já escolheu nosso destino. Cabe a nós forçar a que aconteça algo diferente.

Esperar que a esquerda institucional apresente alternativas tampouco parece viável. Em parte, porque hoje, no cenário brasileiro, é uma força política minoritária. Mas principalmente porque é uma força política que perdeu a capacidade de imaginar outros futuros possíveis.

Poderíamos escolher muitos exemplos. Um deles: quando esteve no poder, essa esquerda teve ao menos quatro ou cinco anos para enxergar a tragédia humanitária que estava se formando pelas mãos de Uber e companhia, e pouco ou nada fez. Esses grupos seguem presos a uma relação monogâmica com um líder político eleitoralmente inviável, e que nos últimos anos perdeu a capacidade de enxergar alternativas.

A utopia como sanidade

Diante disso, a utopia é um instrumento de resistência e de sanidade mental quando estamos inseridos em uma distopia que não parece encontrar limites — já vamos para pelo menos sete anos de ladeira abaixo, e cada vez mais velozes. Como postula o pensador equatoriano Alberto Acosta, em O Bem Viver e em Alternativas sistêmicas (escrito em parceria com Ulrich Brand), é hora de caminhar rumo a uma sociedade frugal, condição imprescindível para a construção de um convívio realmente democrático, com capacidade para definir coletivamente os limites da relação entre si e com a Natureza.

“O ponto nevrálgico está na aceitação de que a Natureza possui limites que não podem ser ultrapassados pela economia. A mudança climática, resultado do consumo energético, é uma evidência incontestável. O pensamento funcional se limita a fazer dos ‘bens’ e ‘serviços ambientais’ simples elementos de transação comercial por meio da concessão de direitos de propriedade sobre as funções dos ecossistemas. Uma situação que se produz devido à generalização de um comportamento egoísta e de curto prazo.”

Da próxima vez que decidir bater panelas, olhe para o alto. Muito antes do Waze, as estrelas foram nosso guia seguro para chegarmos até aqui. É hora de recuperar esse horizonte.

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