Fabricantes de refrigerantes voltam a contar com crédito sobre impostos que nunca foram pagos. Organização protesta contra incentivo a produto que causa danos à saúde
Coca-Cola e Ambev voltam a contar na próxima segunda-feira (1º) com uma ajuda milionária do governo federal. As duas gigantes passarão a poder cobrar a devolução de créditos de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos concentrados de refrigerantes produzidos na Zona Franca de Manaus. Ao longo dos próximos seis meses, a operação pode significar um prejuízo de até R$ 500 milhões à União.
A manobra faz parte de um esquema investigado há quase 30 anos pela Receita Federal, que sempre se depara com obstáculos políticos para conseguir frear a perda. Para que se tenha uma ideia, o setor de refrigerantes chega a dar prejuízo na arrecadação de IPI para o governo federal, tamanhos os subsídios de que se vale o setor.
A retomada da cobrança dos créditos é possível graças a um decreto assinado em fevereiro por Jair Bolsonaro. Em meio à pandemia do novo coronavírus, o presidente da República tem privilegiado o socorro a grandes empresas em detrimento da saúde da população. A nova medida reforça como o ultraliberalismo do ministro da Fazenda, Paulo Guedes, desprotege os trabalhadores e é falho em ajudar pequenas empresas, mas não hesita em repassar recursos públicos a corporações.
Também contrasta com o discurso oficial de Guedes, que declarou desde o começo do mandato de Bolsonaro a intenção de acabar com o esquema da Zona Franca. Na visão do ministro, não faz sentido dar incentivos para a fabricação de um “xaropinho”. Ele chegou a aventar inclusive a criação de um imposto para tributar o consumo de produtos nocivos à saúde.
Os créditos de IPI fazem parte de um pacote de subsídios disponíveis às fabricantes de concentrados de bebidas não alcoólicas presentes na Zona Franca de Manaus. De acordo com feitos pelo Joio, pelo menos R$ 7 bilhões são dados direta e indiretamente todos os anos a essas empresas. O valor contabiliza a renúncia de tributos municipais, estaduais e federais, e a cobrança de créditos tributários.
Pela Constituição, a fabricante de um produto final faz jus a um crédito sobre a tributação incidente na etapa anterior. É uma maneira de evitar que o preço ao consumidor acumule impostos em cascata. Assim, por exemplo, uma confecção de roupas pode cobrar um crédito equivalente à diferença do IPI sobre a camiseta e do IPI sobre a linha de costura.
No caso das fabricantes de refrigerantes, o IPI na Zona Franca de Manaus é zerado. Ainda assim, as engarrafadoras de Coca-Cola e Ambev cobram os créditos sobre os concentrados, mais conhecidos como “xaropes”, como se pagassem a alíquota cheia. Essa operação chegou a ser bloqueada durante alguns meses pelo governo Michel Temer, que precisava encontrar novas fontes de arrecadação em meio à greve dos caminhoneiros. Desde então, passa por idas e vindas.
Resumindo: as engarrafadoras de Coca-Cola e Ambev que compram o xarope de fabricantes instaladas no Amazonas causam uma distorção tributária operando por dentro do próprio sistema das corporações, já que que envasadoras e fábricas de “xaropes” são partes de grandes conglomerados, de acordo com a legislação brasileira e avaliações da equipe da Receita.
Com o decreto de Bolsonaro, a alíquota dos concentrados volta a 8%, contra 4% dos refrigerantes, o que dará direito a um crédito de quatro pontos. Em 2017, o prejuízo para o governo federal ficava em R$ 2 bilhões, mas diante de uma diferença maior, de 16%.
A nova alíquota será válida, em princípio, até novembro. A Receita não publicou uma estimativa de quanto o governo federal irá perder. Em nossos cálculos, com base nos números oficiais para os anos anteriores, durante os seis meses de vigência da medida estima-se entre R$ 250 milhões e R$ 500 milhões, a depender do volume de comercialização.
Quem ganha e quem perde
O decreto de Bolsonaro representa uma vitória parcial para a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas não Alcoólicas (Abir), que, num cenário ideal, gostaria de voltar a uma diferença de 16 pontos entre a alíquota do concentrado e a do refrigerante, o que resultaria em créditos aproximados de R$ 2 bilhões ao ano.
Em nota emitida em fevereiro, a associação entende que a caneta do presidente “demonstra uma decisão que, ao menos, possibilita um diálogo entre as partes para se chegar à uma decisão definitiva sobre a operação do pólo de concentrados na ZFM. Afinal, o decreto não garante uma alíquota sustentável de longo prazo que, minimamente, viabilize uma segurança jurídica para que as empresas possam programar investimentos na Região Norte. Os investimentos industriais guardam relação direta com o grau de confiança que os investidores têm nas regras do jogo”.
De parte da sociedade civil, a medida causou protestos. Em ofício enviado ao Palácio do Planalto, a organização não governamental ACT Promoção da Saúde cobra a revogação do decreto, levando em conta a situação devastadora atravessada pela economia brasileira diante da pandemia de Covid-19.
“Ao conceder benefícios fiscais para indústrias de bebidas adoçadas, o Brasil vai na contramão das melhores práticas internacionais”, argumenta. “A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendam tributos mais altos para bebidas adoçadas como medida capaz de aumentar seu preço, reduzir seu consumo, e consequentemente, melhorar a alimentação da população, prevenindo doenças crônicas não transmissíveis. Além de deixar de arrecadar milhões de reais, que seriam valiosos para o investimento em saúde, nosso país está incentivando o consumo de produtos que adoecem adultos e crianças, e aumentam os custos do Sistema Único de Saúde (SUS).”
Esse caso, mais um durante a pandemia, abre outro episódio da história da falsa polarização entre saúde e economia que os ultraliberais do governo Bolsonaro fazem questão de reforçar. Falsa, porque uma, a economia, não existe sem a outra, a saúde. Mais: saúde pública ruim produz óbvios impactos negativos nos cofres públicos.
Imagina-se que Paulo Guedes e sua equipe econômica saibam fazer contas. E, se sabem de matemática, a decisão de aumento nos créditos se mostra, mesmo, uma opção política por ajudar grandes empresas e abandonar as pequenas durante a crise, como o próprio ministro da Economia já afirmou no polêmico vídeo da reunião de Bolsonaro com o alto escalão do governo, liberado na semana passada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello.
Enquanto isso, em diversas partes do mundo, impostos sobre bebidas adoçadas foram adotados para coibir o consumo de refrigerantes e são acumuladas mais e mais evidências dos danos à saúde provocados pelos produtos das megaempresas de bebidas açucaradas.