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Brasil não tem dados sobre trabalhadores infectados por Covid-19 por setor econômico

Pequena medida burocrática recomendada pela OMS forçaria empresas a notificar o governo, mas gestão Bolsonaro mais uma vez ajuda a esconder problemas graves

Novo epicentro mundial da pandemia de Covid-19, o Brasil é também um dos países com menor rigor na contabilização e apuração de casos e mortes. Além da já comentada subnotificação, as instituições brasileiras não estão categorizando o avanço do novo coronavírus por setores econômicos. A separação dos casos por atividade seria fundamental para conter focos de infecção e formular políticas públicas de compensação das vítimas e dos familiares.

Mas o governo de Jair Bolsonaro, concentrado no discurso da “retomada econômica”, não adota uma medida burocrática simples. Bastaria uma mudança no sistema eletrônico para considerar a Covid-19 como doença ocupacional e, assim, obrigar empresas a notificar o poder público a cada trabalhador diagnosticado.

Enquanto não age de um lado, o presidente da República inclui cada vez mais setores na categoria “essencial”, o que aumenta o risco de exposição à doença. Jair Bolsonaro coloca na lista salões de beleza, barbearias e academias de musculação. Desde as primeiras medidas tomadas pelo governo com a chegada da pandemia ao país, setores industriais, alimentícios, bem como ambientes considerados essenciais para a vida urbana, como supermercados e farmácias, seguem funcionando.

Nem mesmo informações sobre infectados nos setores essenciais estão sendo mapeadas pelo governo. No entanto, denúncias trabalhistas e investigações apontam que eles já representam um número significativo de mortes e de casos confirmados da doença, além de contribuírem para a disseminação do vírus. 

De acordo com Maria Maeno, médica e pesquisadora em saúde do trabalho, sem essas informações não é possível localizar e mapear o caminho do vírus e ter conhecimento de onde está o foco para contê-lo. “Nós sabemos de antemão que os locais de trabalho são locais de concentração de pessoas, e onde há concentração de pessoas há transmissão. Portanto, deveria ser uma informação coletada”, afirma. 

Segundo a pesquisadora, reunir os dados de trabalhadores infectados por setor seria possível com as tecnologias que temos hoje, mas os sistemas informatizados só são adaptados se o governo federal decidir fazer isso. “Nas cidades grandes é mais difícil localizar os focos, porque temos uma transmissão comunitária, mas em municípios em que ainda tem poucos casos, conseguiríamos fazer isso partindo das pessoas que estão trabalhando e evitar que a doença mate as pessoas.” 

Até o dia 18 de maio, o Ministério Público do Trabalho (MPT) registou quase 16 mil denúncias de irregularidades trabalhistas relativas à Covid-19, recebidas desde o início da pandemia, em todos os estados do Brasil. O grande número de infecções registradas em frigoríficos expõe como seria importante que o governo federal centralizasse informações.

São Paulo, estado com mais casos e mortes pela doença no país, mas que já tem até data marcada para a reabertura de setores econômicos como shopping centers, é também o local com mais denúncias de violações trabalhistas relacionadas à Covid-19, segundo o órgão. 

Até agora, o MPT em São Paulo registrou um total de 1.687 denúncias. Das que foram investigadas, cujo número é desconhecido, o setor de alimentos registra 79 denúncias somando supermercados, restaurantes, bares e bufês. As denúncias vêm ocorrendo em diferentes setores, como telemarketing. 

A reportagem foi informada que as sedes estaduais do MPT que estão recebendo maior número de denúncias trabalhistas referentes à Covid, além de São Paulo, são as do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais.

Desses, apenas Minas Gerais categorizou as denúncias por setor. De um total de 1.033 denúncias trabalhistas ao MPT-MG, foram instaurados 314 inquéritos para investigação. Desses, nove são supermercados investigados, quatro frigoríficos e uma outra empresa do ramo alimentício, um total de 4,5% das investigações em andamento. 

Doença Ocupacional

Em abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a Covid-19 deve ser tratada como doença ocupacional – enfermidades que causam alterações na saúde do trabalhador, provocadas por fatores relacionados com o ambiente de trabalho. Desde a decisão, auditores fiscais do trabalho vêm interditando empresas ao encontrar falhas na segurança do trabalho. Para ter uma ideia, apenas dois frigoríficos em Santa Catarina têm relação direta com até metade dos casos de coronavírus em algumas das cidades mais afetados pela doença no estado.

A Secretaria Especial da Previdência e Trabalho e a Secretaria do Trabalho – o órgão responsável pelas relações trabalhistas brasileiras que substituiu o extinto Ministério do Trabalho – alegam que não há como saber quantas pessoas foram infectadas no serviço, pois o Sistema de Informação sobre Morte (SIM) do Ministério da Saúde, responsável por regular os dados de óbitos, ainda não foi atualizado para utilizar o código de acordo com a CID, sigla que significa Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde. Um passo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). 

Em nota, a Secretaria da Previdência argumentou que ainda não existe a categoria do “diagnóstico da Doença Respiratória Aguda devido ao Covid-19” em português. Então, o código não está habilitado para inserção no sistema. Em outras palavras, uma barreira tecnológica impede uma categorização que poderia salvar vidas no país. 

Eder Gatti, médico infectologista membro do Centro de Vigilância Epidemiológica Professor Alexandre Vranjac e doutor em Saúde Pública, avalia que o Brasil deveria trabalhar com informações detalhadas de pessoas que são afastadas do trabalho, pois esse tipo de dado complementaria o trabalho das vigilâncias epidemiológicas sobre a circulação da Covid-19. 

“Se a gente identificasse que em um determinado local temos o aumento de quadros de doenças respiratórias ou o aumento de internações por qualquer motivo, esse dado já ajudaria a identificar eventuais surtos e até mesmo tomar medidas, ações em saúde pública para reduzir danos de eventuais eventos sanitários envolvendo locais de trabalho”, afirma.

Governo não pede, empresas não notificam

Assim como não há dados oficiais sobre trabalhadores infectados por setor econômico, não existem regras que obrigam empresas a fornecerem e contabilizar essas informações. E parece ser essa brecha, atrelada ao discurso de retomada, de que as empresas se beneficiam. 

As grandes redes de supermercados, por exemplo, encontraram na crise sanitária a situação perfeita para lucrar. Já mostramos no Joio que as vendas explodiram, em especial na última quinzena de março, quando tiveram início as medidas de restrição da circulação e as pessoas correram para fazer estoques. Na outra mão, as corporações se recusam a fornecer informações sobre infectados. 

Segundo a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), todos os dias, 28 milhões de pessoas passam por supermercados no país. Embora o Ministério da Saúde tenha emitido recomendações para as pessoas que trabalham em supermercados, como lavar as mãos, usar máscaras, manter distância e até fazer uma divisória nos caixas, essa série de cuidados não neutraliza a possibilidade de adoecimento. 

Para Érica Coutinho, mestre em Direito e Políticas Públicas e advogada trabalhista, quando se fala em aumento do lucro em um momento de pandemia, isso significa que o empregador tem que assumir, mais do que nunca, os riscos do empregado. 

“A gente precisa parar com esse preciosismo de dizer que a gente não tem como saber onde a pessoa pegou o coronavírus, porque a questão não é onde a pessoa pegou o coronavírus. A questão é que a pessoa se encontra numa situação em que ela não pode se isolar, que é a indicação da OMS, porque ela está trabalhando. É justamente o trabalho que representa um risco em potencial do adoecimento da pessoa”, destaca.

Coutinho acredita que os setores econômicos deveriam ser pressionados a divulgar os casos de seus profissionais adoecidos. Até agora, apenas hospitais são obrigados a expor esses números. A advogada afirma que isso prejudica a organização de dados de setores que passam por uma invisibilização “muito própria dentro do mercado de trabalho”.

“Na pandemia, esses setores são enquadrados como essenciais, mas temos dificuldades enormes de mapear quem são essas pessoas e, se pensarmos em empresas grandes, que têm muita gente trabalhando, não sabemos para onde os dados de adoecimentos estão indo”, diz.

Decisões sem embasamento científico

Apesar de importantes, as investigações abertas no MPT também não conseguem retratar o real problema de não informar o próprio setor econômico dos trabalhadores sobre focos da Covid-19. 

Quando qualquer denúncia chega ao MPT, os procuradores do trabalho analisam o conteúdo do relato e, depois disso, pode haver três desfechos diferentes. No primeiro deles, a denúncia pode começar a ser investigada, e abre-se, portanto, um inquérito civil. No segundo, a denúncia pode ser descartada por falta de informações. No terceiro, o caso é juntado a outros de mesma origem. Por exemplo, se há mais de uma denúncia de trabalhadores da mesma empresa, são anexadas no mesmo inquérito. 

Dependendo do andamento da investigação, as empresas podem apenas pressionar seus funcionários a trabalharem, mesmo com colegas doentes. “As grandes empresas têm como segurar os empregos, só que elas usam uma ameaça da demissão para pressionar os empregados para que todos voltem a trabalhar. Nós não estamos nesse momento [de volta ao trabalho], pelo menos em boa parte das grandes cidades, porque estamos numa linha ascendente e ainda não chegamos no topo”, destaca Maria Maeno, médica e pesquisadora em Saúde e Trabalho.

Embora esteja na linha de frente das pesquisas em um dos órgãos mais importantes de Segurança e Medicina do Trabalho, Maeno diz que não existe espaço para que os cientistas e especialistas em epidemias sejam ouvidos. Há, no entanto, pressão de empresas e comércios sobre governadores e prefeitos para reabertura dos setores econômicos. “Não me parece que os estados estão contando com o conhecimento científico dessas pessoas. É muito grave quando as decisões são tomadas com base em pressões políticas e econômicas, e não no conhecimento científico.”

Por João Peres

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