Leia um trecho de ‘Donos do Mercado’, livro-reportagem sobre as maiores redes de supermercado do Brasil produzido por O Joio e O Trigo
Em 22 de maio de 2020, acordamos com a notícia de que o Brasil ultrapassara a marca de vinte mil mortes por Covid-19. Apenas mais um entre tantos limites civilizatórios que havíamos nos acostumado a cruzar nos últimos anos. Sabíamos que aquele patamar ainda estava muito distante da contabilidade final. Sabíamos que moradores das periferias morriam muito mais. E também a isso havíamos nos acostumado.
Naquela mesma manhã, recebemos um vídeo no celular. Logo cedo, dezenas de pessoas formavam uma enorme fila em frente a uma unidade do Atacadão na periferia de São Paulo — na zona norte, um cinturão por onde o novo coronavírus encontrara as condições perfeitas para se alastrar. Na semana anterior, os diretores do Carrefour haviam apresentado aos investidores os resultados financeiros do primeiro trimestre. A venda pela internet, impulsionada pelas classes média e alta, havia batido recorde em meio à quarentena. E os pobres? Estavam em filas como aquela do vídeo, garantindo ao atacarejo uma fatia maior e maior das vendas da corporação. Sabíamos que os resultados do segundo trimestre seriam ainda melhores. Sabíamos que a venda pela internet só faria crescer dali por diante, agravando a desigualdade entre ricos e pobres. E também a isso havíamos nos acostumado.
Os executivos da rede garantiram que funcionários e clientes estavam seguros. O que ouvíamos dos trabalhadores era uma versão bastante diferente. Eles estavam sendo afastados às dezenas com sintomas da doença, e retornando à labuta antes da recomendação oficial de catorze dias. As fotos do interior de uma loja mostravam que, nas filas dos caixas, as pessoas estavam muito próximas. Era só mais uma entre tantas cenas horripilantes que haviam perdido a capacidade de horripilar. Sabíamos que aquele vídeo gravado na zona norte de São Paulo estava muito distante de ser o pior, o último, o único. Sabíamos que Carrefour e Pão de Açúcar se recusariam a fornecer informações sobre os trabalhadores infectados. E também a isso havíamos nos acostumado.
Aquela unidade, o Atacadão de Parada de Taipas, no bairro do Jaraguá, não era só mais uma. Era o palco perfeito, a síntese por excelência de um teatro que maltrata os atores e a plateia. E, paradoxalmente, atrai cada vez mais público.
Meses antes da chegada da Covid-19 ao Brasil, em duas visitas ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, acompanhamos pelo menos duas dezenas de audiências que tinham as grandes redes varejistas como reclamadas em processos trabalhistas. Ouvimos histórias de funcionários de todos os cantos da capital, mas um cantinho específico apareceu repetidamente nos relatos: Taipas.
Parada de Taipas, como é mais conhecida, é um subdistrito de Pirituba-Jaraguá. Ganhou esse nome porque abriga uma estação de trem — ou uma “parada” — da linha que conecta São Paulo a Jundiaí. Mais do que um trilho de trem, Taipas hospeda unidades do Atacadão e do Assaí, as bandeiras de atacarejo dos grupos Carrefour e Pão de Açúcar. É o ambiente perfeito para um modelo de negócios que avança sobre as camadas mais pobres da população. Um modelo que garante aos clientes os menores preços do mercado, mas que desvaloriza os alimentos frescos, que demandam cuidados específicos, e dá protagonismo aos ultraprocessados, que duram meses ou anos intocados nas prateleiras. Um modelo que troca a segurança alimentar e nutricional dos clientes pelo custo baixo, que troca qualidade por quantidade, que troca os direitos trabalhistas dos funcionários por índices crescentes de produtividade.
O aparentemente famoso “Atacadão de Taipas” surgiu tantas vezes em nossas conversas de corredor no TRT que não pudemos ignorar o chamado. A viagem do centro de São Paulo à unidade consumiu pouco mais de uma hora da nossa tarde chuvosa de segunda-feira. A região fica isolada do resto da cidade por uma porção de mata nativa cada vez mais escassa e acanhada, mas as ruas movimentadas da parte mais urbana não se diferenciam em nada de outros pontos da periferia de São Paulo. Sem o auxílio incansável do GPS, não teríamos história alguma para contar.
Só tiramos os olhos da tela do celular quando avistamos o galpão laranja sob uma enorme bandeira do Brasil. Chegamos buscando uma explicação para o volume imenso de ações trabalhistas originadas naquela loja específica, mas encontramos um projeto em andamento do que deve ser o futuro do varejo alimentar no Brasil.
Tudo por ali é pensado para ter o menor custo possível. Nos super e hipermercados tradicionais, existe uma separação clara e necessária entre a área de vendas e a área de estoque ou armazenagem. Numa loja de atacarejo, essa distinção não existe. O galpão no qual os clientes circulam também abriga boa parte do estoque da loja. Os carrinhos dividem os corredores de cimento queimado com empilhadeiras e pallets. Aliás, o que não falta em uma loja de atacarejo são pallets. Eles estão no chão, empilhados no topo das prateleiras, no estacionamento, servem de gôndola para caixas de leite e engradados de cerveja; não surpreenderia se a própria estrutura do galpão fosse feita de pallets.
Já na entrada da loja, pelo menos três pessoas tentam convencer os clientes a criarem um cartão de crédito do Atacadão. Diferente das lojas tradicionais, o atacarejo não tem tanto medo de mostrar a que veio. No fundo, vender objetos não é o main business [principal negócio] das redes. Fazer dinheiro é, de fato, o main business. Oferecer crédito para quem já estourou o cheque especial é muito mais negócio do que vender refrigerante e produtos de limpeza. A rentabilidade oriunda de operações financeiras é mais simples do que a obtida nas gôndolas — e os computadores não reclamam de trabalhar sete dias por semana, em turnos de 24 horas.
Em 2019, o banco Carrefour apresentava uma receita de 2,9 bilhões de reais, um crescimento de quase 20% em meio a uma economia estagnada. O cartão do Atacadão vinha com tudo, representando 28% do faturamento total do braço financeiro da corporação. O concorrente Assaí havia emitido 430 mil novos cartões em 2019, passando de um milhão em circulação.
Tem mais um degrau aqui. Em um supermercado tradicional, a “pressão” sobre o cliente para fazer um cartão de crédito poderia ser um motivo de dissidência, uma razão para que o comprador buscasse uma outra loja. No atacarejo, não é. Quando o cliente entra, assina um contrato imaginário no qual abre mão de todo tipo de conforto. Se você não quer pessoas te incomodando, procure um Pão de Açúcar, combinado?
O Atacadão de Taipas realmente não poderia se parecer menos com um Pão de Açúcar. Não há música, não há ar-condicionado, não há espaço entre as gôndolas e o teto. Cada corredor tem um cheiro diferente, quase sempre desagradável, e os clientes parecem ter se acostumado a conviver com embalagens violadas, frascos quebrados e produtos espalhados pelo chão. Enquanto andávamos pela loja, uma garrafa de energético se esvaziava, jogada sobre outros produtos, em um pallet no corredor de bebidas; cinco quilos de alho escorriam por um pote enorme virado perto da seção de pães; um senhor se equilibrava sobre a fina camada de pó branco acumulada em frente à prateleira das farinhas de trigo. Quando não esperávamos mais nada, a cereja do bolo: um filhote de barata passeava calmamente em uma embalagem de fórmula infantil, namorando o metal em busca de uma fresta.
Essa é a cara do modelo de loja que ganhou o coração dos executivos das grandes redes de supermercados: feia, suja, desorganizada e assustadoramente lucrativa. Dos 62 bilhões de reais que o Carrefour faturou em 2019 no Brasil, 42 bilhões vieram das lojas de atacarejo. No começo de 2020, o grupo anunciou a compra de trinta lojas da rede holandesa Makro a serem transformadas na bandeira Atacadão. Quem se importa com o forte cheiro de alho perto do corredor dos pães?