Ao lado de especialistas, o Joio analisou acertos, erros e a viabilidade das propostas dos candidatos à prefeitura da cidade apresentadas ao Tribunal Superior Eleitoral
Duas medidas simples fazem a diferença para tornar mais seguro e regular o acesso à alimentação em uma cidade. Aumentar as compras públicas e fortalecer os circuitos curtos de comercialização — que definem as cadeias onde a produção e venda de comida ocorrem em locais próximos. Nem uma coisa nem outra, no entanto, são prioridade entre a maioria dos principais candidatos à prefeitura de São Paulo nestas eleições.
O par de ações remete a iniciativas já existentes, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), cuja execução, em grande parte, cabe às esferas municipais. Além disso, o tema deveria ser prioridade em um contexto em que a fome volta a ser um problema central — sobretudo considerando a mais populosa metrópole do país.
Ampliar as compras públicas e apoiar os circuitos curtos dependem de medidas simples, como aumentar a aquisição de itens para a alimentação escolar. E os efeitos positivos podem ocorrer no curto prazo, garantindo, por exemplo, que crianças e adolescentes em idade escolar acessem o direito de ter comida no prato todos os dias.
O resultado dessas ações, aliadas a outras de aspecto semelhante, torna o sistema alimentar mais resiliente e resistente a crises, como nos desdobramentos da atual pandemia do coronavírus, segundo três especialistas consultados por esta reportagem.
“Quando se fala de uma metrópole como São Paulo, a gente pensa que os alimentos estão lá longe e não são produzidos por aqui”, diz a cientista social Jaqueline Ferreira, gerente de projetos e produto do Instituto Escolhas.
“Mas a cidade tem um cinturão verde com um histórico de agricultores muito bem preservado.” Esses mesmos produtores rurais, assentados nos limites da capital paulista, segundo ela, poderiam abastecer uma fatia maior da população local.
Entretanto, em que pese a facilidade com que gestores públicos podem adotar medidas para melhorar a alimentação em uma cidade, o assunto é historicamente deixado de lado quando é chegada a hora de disputar cargos públicos. E, neste 2020 de deus nos acuda, o quadro não é muito diferente.
As propostas no prato
Às vésperas das eleições, o Joio dedicou um olhar mais apurado para o que dizem sobre o tema as propostas dos candidatos à prefeitura de São Paulo apresentadas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Da esquerda à direita, procuramos erros, acertos e a viabilidade do que propõem — para a alimentação — os seis postulantes mais bem posicionados nas últimas pesquisas de intenções de voto.
Se não chega a ser estarrecedor, o resultado é decepcionante. Apesar da urgência do tema e da relativa facilidade em adotar algumas medidas, as propostas robustas e as plataformas mais abrangentes estão reservadas a candidatos mais à esquerda, enquanto que os pretendentes mais ao centro ou à direita tratam a questão de forma marginal.
“Quem tem a maior preocupação com o tema são as campanhas de Guilherme Boulos (Psol) e Jilmar Tatto (PT). Nas demais, essa é uma questão periférica”, disse-nos Sílvio Porto, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), depois de analisar uma sistematização das propostas de cada candidato elaborada pelo Joio — veja aqui.
Como mostramos em outra reportagem, o atual prefeito e candidato Bruno Covas (PSDB), por exemplo, sequer menciona as palavras “alimentação”, “comida” ou “fome” em seu plano de governo. Chama a atenção inclusive que, mesmo buscando se reeleger, o tucano mal cita ações já realizadas pela prefeitura de São Paulo, como o programa Ligue os Pontos, de assistência rural a produtores da zona sul da cidade.
Ferreira, por sua vez, afirma que, embora nem todos os candidatos apresentem propostas, há mais consciência a respeito da importância do tema em comparação com pleitos anteriores. “Acredito que estamos caminhando para discutir [a alimentação] com um pouco mais de qualidade, já que em outras eleições isso mal aparecia.”
Do centro à direita
Uma vez favorito, Celso Russomano (Republicanos) figura agora em terceiro lugar nas pesquisas Datafolha e Ibope de intenção de voto na capital paulista. Em seu plano de governo, o candidato fala em melhorar, fiscalizar e aumentar a transparência dos serviços de alimentação escolar do município, sem elencar políticas específicas.
“É muito genérico”, diz Porto, argumentando que a proposta de simplesmente “melhorar” o serviço abre margem para distintas abordagens. “Poderia ser feita em articulação com a agricultura familiar ou em uma lógica bem tradicional, por grandes empresas, via terceirização. Conhecendo o candidato, tendo a pensar que iria pelo segundo caminho.”
O candidato do Patriota, deputado estadual Arthur do Val (Mamãe Falei), propõe o chamado Escola 360, em que as instituições de ensino do município ficariam abertas e servindo refeições durante os fins de semana. O programa dele também fala em “buscar parcerias na iniciativa privada para oferecer uma alimentação saudável nas escolas municipais”.
Como mostramos no Joio, a alimentação da rede pública de ensino municipal já é terceirizada. Na maior parte das escolas, empresas e entidades mantenedoras são responsáveis por adquirir e preparar os alimentos da merenda. Nas demais, a prefeitura faz as compras e terceiriza o preparo.
“Apesar de muito conveniente, a terceirização é uma caixa-preta. Você não sabe o quanto se está gastando [em cada item da merenda] e não tem controle sobre a qualidade”, argumenta Walter Belik, professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Parece que ele não sabe do que está falando.”
Na plataforma do atual prefeito e líder nas pesquisas, Covas, a única proposta com relação à alimentação diz respeito à ampliação da renda básica municipal, algo que também é caro a outros candidatos.
“Parece que temos um consenso geral em torno da renda mínima”, afirma Belik. “Isso é importante, porque é uma proposta estruturante, com potencial de melhorar significativamente a capacidade da população de adquirir alimentos, mas ela não extingue a necessidade de políticas específicas.”
Os programas de Boulos, Tatto e Márcio França (PSB) também propõem a ampliação da renda básica municipal, aprovada pela Câmara em outubro.
Atualmente o programa destina R$ 100 por pessoa, por três meses, com limite de três beneficiários por família. O beneficiário tem que estar cadastrado no Bolsa Família e ser maior de idade.
Procurada pela reportagem, a campanha de França nos disse: “A Renda Básica será desenvolvida a seis mãos, junto com a população e a nova Câmara eleita. Será um programa permanente, e não eleitoreiro, como esse aprovado a toque de caixa pelo Bruno [Covas]”.
A campanha de Jilmar Tatto explicou que pretende esticar o benefício municipal até o fim da pandemia, pagando R$ 100 por pessoa de qualquer idade. Outras propostas, segundo a equipe, são a complementação financeira do Bolsa Família e a instituição de uma renda básica municipal permanente a ser instituída depois da pandemia.
À esquerda
Candidatos por partidos identificados à esquerda do espectro político, Boulos e Tatto são aqueles que apresentam medidas mais robustas para ampliar compras públicas e com potencial de ajudar agricultores locais e incentivar os circuitos curtos.
Em quatro páginas voltadas à alimentação, o candidato petista sugere proibir a pulverização aérea de agrotóxicos, criar sacolões, mercados e novas feiras de gêneros orgânicos. Também fala em atingir a marca de 100% de alimentos orgânicos nas escolas municipais em quatro anos e em implementar um programa de aquisição de alimentos que tenha em uma ponta o agricultor urbano e, em outra, a população de rua.
Um pouco mais tímido, o programa de Boulos fala em fomentar hortas urbanas, fundar sacolões populares, conceder crédito a pequenos agricultores, priorizar alimentos da agricultura familiar nas compras públicas e garantir acesso à água potável de qualidade.
“Vejo com simpatia as propostas, mas os processos são mais complexos do que ele imagina”, comenta Belik sobre o programa do candidato do PSOL.
“A gestão Marta tentou implementar as hortas urbanas e não conseguiu fazer mais do que dois terrenos. A não ser que Boulos passe uma lei na Câmara aprovando redução de IPTU para terrenos com hortas, por exemplo, vai ser uma coisa difícil de fazer. Também não fica claro de onde viria a água para irrigar a produção.”
O candidato do PSOL também promete reestruturar a antiga Secretaria Municipal de Abastecimento (Semab), extinta na gestão de José Serra (2005-2008).
França, por sua parte, sugere a criação de uma “moeda verde” municipal. A ideia é remunerar os municípios que reciclem seu lixo — em ecopontos, por exemplo — e instituir tendas públicas de venda de produtos oriundos das hortas urbanas, comercializados por essa moeda local.
O candidato argumenta, no programa de governo, que o sistema geraria um ciclo virtuoso de aumento na coleta e reciclagem do lixo, incentivo à produção agrícola urbana e aumento da receita nos pequenos comércios do município.
“Apesar de ter um programa pobre, a ideia de uma moeda social de Márcio França é bastante interessante, e não está presente nos programas do Boulos e do Tatto”, comenta Porto.
Desbancar os aplicativos
Novidade absoluta nessa eleição, França e Tatto sugerem em seus programas criar ou “apoiar a criação” de um aplicativo alternativo de entrega de comida, em parceria com sindicatos de donos de restaurantes e organizações de trabalhadores de entrega de plataformas como iFood, Rappi e Uber Eats.
O petista fala diretamente em “elaborar um aplicativo municipal de entregas, a ser gerido pelos entregadores, por meio de cooperativas”. Nessa ideia, a prefeitura seria responsável por publicizar e gerir os pagamentos do app, e os trabalhadores vinculados teriam direito a seguro em caso de acidente.
“Os percentuais a serem cobrados para manutenção da plataforma, taxa de entrega, ganhos e direitos dos entregadores e dos estabelecimentos serão definidos pela cooperativa, em interlocução com a prefeitura, de forma democrática e participativa”, diz o plano de governo de Tatto em sua página 86.
Mais genérico, o programa de França fala na “criação de um aplicativo público de entregas de comida, com o objetivo de ajudar restaurantes e entregadores”.
Procurada pelo Joio, a campanha do peessebista explicou: “A prefeitura não criará o aplicativo, mas apoiará a sua criação estimulando que os principais elos da cadeia o desenvolvam e implementem”.
“Além disso, vamos usar toda a força de comunicação da prefeitura para divulgá-lo e estimular seu uso, principalmente para os pequenos comércios e empreendedores, que hoje ainda não têm acesso a esse canal de venda, até mesmo pelos altos custos cobrados pelas [plataformas] disponíveis”, complementou.
Especialista em trabalho nas plataformas digitais, Rafael Grohmann é professor da Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Ele vê com simpatia as propostas, mas argumenta que o debate de uma plataforma alternativa está sendo pautado com muita rapidez, “num tom quase impositivo”.
“Depois de dar entrevista para uma reportagem da BBC sobre o tema, eu recebia uma ligação a cada cinco minutos, de alguém querendo fazer um app alternativo”, conta o professor. “Depois, com as eleições, surgiu uma série de candidatos a prefeito e vereador dizendo ‘vamos criar um app’, como se essa fosse uma solução simples.”
Grohmann argumenta que um aplicativo cooperativo não teria capacidade para sustentar prejuízos ao longo de vários anos em um mercado altamente competitivo, como fazem iFood, Rappi e UberEats, e recorda o poder de lobby político (e midiático) que essas grandes empresas detém.
Na sua opinião, o passo anterior à criação de uma nova plataforma seria a organização de trabalhadores dispostos a integrá-la: “Primeiro vem o trabalho de base. Se o aplicativo for feito de cima para baixo, o risco de naufragar é alto”.
O que faltou dizer
Não é necessário inventar a roda. Segundo os especialistas consultados por esta reportagem, há outras medidas que os candidatos poderiam trazer. “Não se fala sobre o papel das grandes redes de supermercados na formação dos hábitos alimentares, por exemplo”, afirma Porto, ex-presidente da Conab.
Ele sugere impor limites à expansão dos grandes supermercados e fomentar iniciativas geridas por moradores dos territórios, “como pequenos comércios administrados por associações de bairro, o que gera emprego, renda e descentraliza a distribuição”.
Ferreira, do Instituto Escolhas, fala que falta atenção para os benefícios que agricultores da capital podem provocar, além do puro e simples fornecimento de alimentos. “Há uma série de serviços que a agricultura pode prover, que são serviços para preservação do meio ambiente”, ela diz.
Entre alguns exemplos estão o crédito ou desoneração de impostos à produção rural como uma medida para evitar ilhas de calor ou sequestrar carbono oriundo da poluição urbana. Além disso, pode haver mais incentivos para a compostagem de resíduos orgânicos, como o atual programa que destina os restos de podas de árvore para a produção de adubos.
Procuradas para comentar a reportagem, as campanhas de Arthur do Val (Patriota), Bruno Covas (PSDB), Celso Russomano (Republicanos) e Guilherme Boulos (Psol) não deram resposta.
Texto atualizado às 15h, de quinta-feira, 12 de novembro de 2020 para complementação de informações sobre o programa de renda básica municipal aprovado na cidade de São Paulo.