De sacolões a hortas: o que prefeitos e vereadores deveriam fazer em um contexto de fome

Brasil enfrenta a pior situação alimentar dos últimos 15 anos; sociedade civil apresenta propostas e políticos mantêm promessas em cinco capitais do país

Não tem escapatória. Desta vez, candidatos e eleitores – que irão às urnas para votar seus representantes municipais em 15 de novembro – não terão como jogar para debaixo do tapete os problemas alimentares no Brasil. O atual cenário tornou o assunto uma questão urgente: nos últimos anos, os principais indicadores sobre o acesso à comida pioraram no país, levando a um quadro de problemas que demanda soluções.

No combate à fome, por exemplo, o Brasil recuou 15 anos nos últimos 5, atingindo uma marca de fazer inveja ao Plano de Metas do ex-presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) — que prometeu 50 anos de desenvolvimento em apenas 5 de mandato. Essa constatação está nos mais recentes achados da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), um indicativo da prevalência da fome entre a população do país.

Mas, apesar de ser um problema de ordem nacional, que deveria, em tese, ser combatido como prioridade nos andares de cima do governo federal da Terra de Vera-Cruz, quando a comida é o que está na mesa, ações realizadas nas esferas municipais podem fazer bastante diferença.

Um caso é o da merenda escolar. É ela que, muitas vezes, garante a única refeição completa de crianças e adolescentes, e o sustento de pequenos agricultores país afora. Para viabilizá-la, os municípios costumam receber recursos federais do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) para a compra de alimentos. A Lei 11.947/2009 determina que pelo menos 30% dessa verba deve ser destinada à aquisição de produtos da agricultura familiar.

Aumentar a porcentagem de compra desses alimentos gera renda para milhões de produtores rurais, que estão perdendo área (têm 10% a menos) e mão de obra (2,2 milhões de postos de trabalho fechados), de acordo com a comparação entre as duas últimas edições do Censo Agropecuário, 2017 e 2006.

“O Pnae, apesar de ser nacional, é estruturado em cima de uma gestão local. A única coisa que o governo federal faz é passar o recurso e a diretriz. Há municípios em que a política chega até o nível da escola, para a escola fazer a compra. É no nível local que a política pública acontece e faz a diferença”, observa a nutricionista Patrícia Gentil, integrante do grupo de trabalho de eleições da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.

A Aliança é um compêndio de 59 organizações da sociedade civil e de pesquisadores. Em agosto, a entidade publicou uma carta-compromisso destinada a candidatos e eleitores com ideias de políticas municipais sobre alimentação. São propostas para incentivar a venda de comida saudável, desincentivar a de não saudável, apoiar pequenos agricultores e garantir o acesso à água.

“Queremos mobilizar o eleitor em torno de quatro eixos, incentivando as pessoas a cobrarem os candidatos sobre a pauta da alimentação”, detalha Gentil.

Outra entidade com propostas para candidatos e eleitores ficarem de olho é a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que publicou um documento com políticas públicas voltadas à agricultura e à alimentação sustentáveis.

“Mapeamos mais de 700 iniciativas que acontecem ou já aconteceram em municípios brasileiros”, afirma a engenheira agrônoma Flávia Londres, secretária-executiva da ANA, sobre o documento.

Proibir os transgênicos na merenda escolar e a pulverização aérea de agrotóxicos, restringir o monocultivo intensivo, conceder apoio logístico a feiras orgânicas e agroecológicas. Essas são algumas das propostas lembradas por Londres. “São medidas relativamente simples, que podem ser implementadas por Câmaras e Prefeituras”, ela complementa.

Da esquerda à direita, um sobrevoo mostra o que alguns dos principais candidatos planejam em relação à alimentação em seus programas de governo. O Joio e O Trigo fez um levantamento nos programas de governo dos candidatos à prefeitura com mais intenções de voto, pesquisando recorrência da palavra alimentação dentre as propostas apresentadas à Justiça Eleitoral.

Nas disputas das capitais mais populosas de cada macrorregião brasileira, Manaus (Norte), Salvador (Nordeste), Goiânia (Centro-Oeste), São Paulo (Sudeste) e Curitiba (Sul), proposições relacionadas à comida prevalecem entre azarões. 

Prioridade entre os “azarões”

O prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), que busca a reeleição e ocupa o segundo lugar nas pesquisas, não menciona uma só vez as palavras “alimentação”, “fome” ou “agricultura” em seu plano de governo. Candidato de Bolsonaro, seu principal concorrente Celso Russomano (Republicanos) dispensa ao tema o equivalente a um tuíte e meio: 427 caracteres.

Ainda na capital paulista, Guilherme Boulos (PSOL), em terceiro nas pesquisas, elenca propostas como criar sacolões populares e tornar a merenda municipal orgânica, entre outras.

Mas poucas palavras sobre o assunto também se repetem em Manaus, com o favorito Amazonino Mendes (Podemos), e em Goiânia, com Vanderlan Cardoso (PSD) e Maguito Vilela (MDB), virtualmente empatados nas pesquisas. Na cidade de Salvador, o continuísta Bruno Reis (DEM) fala apenas em reduzir o consumo de “refrigerantes e guloseimas”. 

A exceção é a capital paranaense, onde os três principais candidatos, Rafael Greca (DEM), Fernando Francischini (PSL) e Goura (PDT), dão ênfase à garantia da segurança alimentar e nutricional. Eles falam em apoiar pequenos agricultores e prometem incentivar a produção de alimentos em hortas urbanas.

Mais de um terço dos brasileiros

Pelo menos 10,3 milhões de brasileiros se encontravam em 2018 à mercê de uma situação grave, de acordo com a Ebia. Não tinham disponibilidade ou acesso em casa à alimentação de forma regular, adequada e saudável. Em outras palavras, isso significa que, naquele ano, essa fatia da população, que envolve adultos e crianças, mal tinha no dia a dia o arroz e o feijão para comer. 

A dificuldade de obter alimentos com regularidade é chamada de insegurança alimentar e é dividida em três níveis, conforme a Ebia:

  1. Leve, quando há incerteza ou queda na qualidade da comida adquirida por fatores como a queda de renda de um família;
  2. Moderada, quando existem rupturas dos hábitos alimentares de uma família, com a redução da quantidade de alimentos consumidos pelos adultos;
  3. Grave, quando a quebra dos padrões alimentares começa a afetar as crianças, e a fome se torna rotina nos lares brasileiros.

Considerando os três níveis, 36,7% da população em 2018 enfrentava algum tipo de insegurança alimentar. O patamar é o pior atingido pelo país na última década e meia. Em 2004, a Ebia indicava que 34,9% dos brasileiros se encontravam em alguma dessas três situações.

O indicador mais recente se refere a um quadro de dois anos atrás, é verdade, mas que, de lá para cá, não melhorou. Nesse curto período, o país perdeu políticas públicas importantes para garantir o acesso a alimentos pela população mais pobre, sobretudo após a posse do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Como já mostramos em O Joio e O Trigo, a situação, hoje, é pior do que foi outrora.

Em 2014, o país comemorava um fato até então inédito: saía do Mapa da Fome, uma relação mantida pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) com as nações em que 5% ou mais da população têm uma ingestão calórica menor do que os índices considerados saudáveis. Ao que tudo indica, o Brasil segue firme e forte para retornar a essa vergonhosa cartografia.

Além disso, como nos versos que Carlos Drummond de Andrade não escreveu: tinha uma pandemia no meio do caminho. A crise desencadeada pela Covid-19 aumentou o desemprego e dificultou o ganha-pão de milhões de brasileiros. O IBGE conta 13,3 milhões de desempregados no país ao final de setembro deste ano e, ainda, 15,4 milhões de pessoas que deixaram de procurar trabalho por causa dos efeitos causados pelo coronavírus.

Da fome à obesidade

Ao mesmo tempo em que a fome é problema real e atual, a obesidade também é. A última pesquisa disponível da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel-2018) mostra que quase um quinto da população brasileira está obesa. Considerados os adultos com sobrepeso, chega-se a 55,7%.

A condição é fator de risco para diversas doenças crônicas não transmissíveis, como alguns tipos de câncer, diabetes e hipertensão. Na área da saúde, considera-se que o quadro é um problema multifatorial, mas cada vez mais evidências científicas mostram que a má alimentação, com elevado consumo de alimentos ultraprocessados, tem culpa no cartório.

Fome e obesidade parecem dois problemas distintos, mas em certos casos podem aparecer juntos. Trata-se da fome oculta, que ocorre quando o excesso de peso está lado a lado com a deficiência de nutrientes importantes. Não há números precisos para a medição no Brasil, mas a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que este problema afete pelo menos um quarto da população de todo o mundo.

Por Redação

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