Do marketing ao xingamento, gordofobia ganha viés político no Brasil do “Nhonho” e da “Peppa”

Mais da metade da população adulta está acima do peso no país, mas problemática – de saúde pública – atrai holofotes de forma superficial

A gordofobia está na ordem do dia no debate político do Brasil. Em um país onde mais da metade dos adultos está acima do peso – e quase um quarto desse contingente é obeso, de acordo com a Organização Mundial da Saúde – , o diâmetro abdominal virou ferramenta de marketing e combustível para intrigas palacianas.

A aparência física de Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, motivou o apelido pejorativo de “Nhonho” por parte da conta do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no Twitter. E a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) – na disputa pela prefeitura de São Paulo – fez desse limão uma limonada: após ser chamada de “Peppa” por detratores nas redes sociais, assumiu o apelido na campanha, enquanto se ocupou de emagrecer frente às câmaras.

“Nhonho” faz alusão ao personagem do seriado mexicano “Chaves”. Na ficção, é um menino de oito anos, interpretado pelo ator, comediante e dublador mexicano Édgar Vivar – que desempenha também o papel do pai de Nhonho, Sr. Barriga, proprietário da vila em que a série se desenrola. Pai e filho são personagens acima do peso. Ao longo dos episódios, não é raro ver Nhonho comendo, pensando em comida ou exibindo suas guloseimas para os amigos.

O que poucos sabem é que por muito tempo o ator, hoje com 71 anos, sofreu consequências derivadas do excesso de peso – teve “duas tromboembolias pulmonares” e ficou “por quatro meses em tratamento intensivo”, segundo contou durante um evento sobre obesidade no México em 2012.

Dieta contra o bullying

Os xingamentos gordofóbicos que recebe nas redes, como “Peppa Pig”, “porca” e “orca”, motivaram a deputada Joice Hasselmann a fazer da personagem Miss Piggy, dos Muppets, material para sua campanha. Após ser questionada pelo uso não autorizado da personagem, a candidata disse que esperava que as pessoas entendessem, já que se tratava de uma “propaganda antibullying”.

Ao mesmo tempo, passou a ter na sua ingestão de alimentos outra ferramenta de alcance junto ao público. Os efeitos do que chamou de “dieta” e “reeducação alimentar” foram notados pelos seguidores da deputada, que perdeu 20 quilos em pouco mais de cinco meses. A fórmula? Uma alimentação à base de caldos e gelatina diet por 40 dias, sem auxílio de um profissional de nutrição.

Hasselmann contou que, como sempre gostou de estudar alimentação e fazer atividade física, frequentemente acompanhada por profissionais de saúde, conseguiu identificar o próprio problema, montar um cardápio e emagrecer. Agora se sente na posição de “ajudar outras pessoas” a enfrentarem a mesma situação, como afirmou em um vídeo postado no Facebook, dedicado à explicação do seu método. “Se vocês quiserem, eu posso começar a dividir com vocês as refeições que eu faço: café da manhã, almoço, jantar. Eu fotografo e monto no final do dia”, complementou.

“A atitude de Joice não reforça o machismo e a gordofobia? Dieta restritiva combate o ódio ou só coloca a própria pessoa em situação de submissão aos padrões estéticos?”, questiona Cássia Bonar, nutricionista especialista em educação em saúde.

Para a profissional, “usar da imagem pública motivada por uma vingança a ‘todo o mal que lhe fizeram’ é uma atitude perigosa e totalmente desaconselhada, tendo em vista que dietas desbalanceadas podem trazer prejuízos incalculáveis para a saúde, num momento em que deveríamos estar evitando fatores de risco para o Covid-19”.

A iniciativa da deputada, acrescenta Bonar, também termina “contribuindo para estereótipos sobre o corpo gordo e os sacrifícios que devem ser feitos para atender ao desejo dos padrões corporais”.

A responsabilidade de Hasselmann em divulgar dietas nas redes sociais e influenciar milhares de pessoas sem orientação nutricional é o centro da denúncia que a especialista fez ao Conselho Federal de Nutrição e ao Conselho Regional de Nutrição da 3ª Região (CRN-3), do Estado de São Paulo. Segundo ela, as entidades alegaram só poder interferir em casos que envolvessem profissionais da nutrição, não pessoas públicas como a candidata. 

Vera Salvo, nutricionista do CRN-3, respondeu ao Joio que a decisão se deve porque “nós não falamos do viés político, focamos na parte nutricional”. E que, “no que tange aos problemas associados ao peso, infelizmente, tornou-se natural que, pela vontade de emagrecer, muitas pessoas adotem medidas extremas pensando apenas na perda, e não na manutenção, ignorando riscos para a saúde”.

Há seis semanas, Hasselmann criou no Instagram o “Bem Estar com Joice”, onde compartilha receitas e dicas. O canal é uma espécie de extensão da sua conta oficial na plataforma, com pouco mais de 920 mil seguidores: “Eu vou dividindo com vocês e, se toparem, entrem comigo aqui, para a gente terminar o ano mais fitness”. A deputada não respondeu às tentativas de contato de O Joio e O Trigo.

Vale quanto pesa

O convite da deputada reflete uma percepção comum e naturalizada: a de que obesidade e sobrepeso são responsabilidades individuais, por mais que sejam problemas multifatoriais e complexos. Em outras palavras, quem é gordo é culpabilizado por não mudar, já que emagrecer seria uma questão de vontade, submetida a decisões estritamente voluntárias. 

Durante o 28º webinar sobre “Obesidade e estigma”, promovido pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (que aconteceu no dia 8 de setembro e está disponível no YouTube), a diretora de Ciência e Educação da Federação Mundial da Obesidade, Olivia Barata Cavalcanti, disse que a discriminação acontece de forma direta e indireta.

“Muitos centros de saúde não são devidamente equipados para tratar pacientes com obesidade.” Segundo ela, há casos em que até “80% das instalações carecem de aventais de tamanhos apropriados, manguitos para pressão arterial, mesas de exame, mesa de raio-x para acomodar pacientes com obesidade grave”. Com a epidemia do novo coronavírus, conta Cavalcanti, “esse problema ficou ainda mais gritante”: “Em alguns países foram montados hospitais de emergência, mas que não podiam aceitar pacientes com índice de massa corporal (IMC) acima de 30 ou 35, e nós sabemos que pacientes com obesidade tendem a ter complicações maiores de Covid. Foi um duplo problema”.

O sistema de saúde brasileiro é “gordofóbico”, afirma Camilla Estima, nutricionista especializada em transtornos alimentares e membro do Conselho Regional de Nutricionistas da 4ª Região. “O paciente não consegue fazer exame porque não tem maca de ressonância magnética, aparelho de pressão que caiba na circunferência do seu braço. Fora todos os comentários e piadas que escutam por quem deveria auxiliá-los.”

A nutricionista pondera ainda que a discriminação é reforçada pela mídia. “Quando uma pessoa de influência aparece mais magra ou mais gorda, todo o mundo se interessa para saber o que aconteceu. ‘Que horror, a fulana engordou’. ‘Nossa, como ela emagreceu! Que linda, ela está ótima’”, exemplifica. “Essas frases são extremamente gordofóbicas porque associam a magreza à beleza, e a gordura ao fracasso. O valor das pessoas não se mede pelo corpo delas.”

O preconceito contra a obesidade compromete a saúde, dificulta o acesso de pessoas acima do peso ao mercado de trabalho e a tratamentos adequados, afeta suas relações sociais e sua saúde mental. No entanto, a legislação brasileira não prevê uma punição específica para quem pratica gordofobia.

Ultraprocessados e crescimento da obesidade

Uma pessoa é considerada obesa quando seu IMC é superior a 30 kg/m2 (para calcular o IMC basta dividir o peso, em quilogramas, pela altura ao quadrado, em metros). 

Mas o índice de massa corporal, por si só, não diz tudo: um fisiculturista, por exemplo, pode ser considerado obeso, por ter grande quantidade de músculos, uma interpretação equivocada.

Por isso, é importante que o IMC seja compreendido como uma medida aproximativa, e não definitiva, de análise. Trata-se de um instrumento geral, um comparativo que, quando empregado por todos os países, pode inclusive determinar o êxito de melhorias nas políticas globais. 

Só no Brasil, em 2018, os custos totais de hipertensão, diabetes e obesidade no Sistema Único de Saúde (SUS) alcançaram R$ 3,45 bilhões. De acordo com o Instituto Global da McKinsey – um dos responsáveis por estudar a evolução da economia global e analisar fatos para a tomada de decisões sobre gestão crítica e questões políticas -, o mundo gasta hoje cerca de US$ 2 trilhões anuais com a obesidade, valor que representa cerca de 3% do PIB global. 

Complexa e multifatorial, a doença pode ter causas psicológicas, biológicas, genéticas e epigenéticas, ambientais e culturais. O aumento do índice de obesos no país depende inclusive de políticas públicas que afrouxem ou limitem o acesso aos alimentos ultraprocessados.

Os hábitos de consumo alimentar da família brasileira mudaram. Os brasileiros estão comprando menos arroz, feijão e mandioca, e mais produtos prontos para consumo. Como publicamos em março, entre a edição de 2002-2003 e a de 2017-2018 da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, a quantidade média anual per capita de feijão foi de 12,394 kg para 5,908 kg – caiu para menos da metade. No caso do arroz, o recuo é de 37%: de 31,578 kg para 19,763 kg. Já os ultraprocessados, na edição de 2002-2003, representavam 12,6% das calorias consumidas pelos brasileiros. Chegaram a 16% em 2008/2009, e em 2017-2018 subiram para 18,4%.

Em abril deste ano, O Joio e O Trigo explicou sobre a relação existente entre os índices de sobrepeso e obesidade, o aumento no consumo de ultraprocessados e o crescimento das transnacionais – fenômenos profundos que aconteceram em paralelo.

Ao longo do século 20, os índices de obesidade e sobrepeso subiram vertiginosamente no Brasil. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, em 1975 o sobrepeso atingia 27,5% da população adulta. Já em 2016, 56,5% da população brasileira maior de 18 anos enfrentava esse problema. Nesse mesmo intervalo de quatro décadas, a porcentagem de obesos saltou de 5,2% dos adultos para 22,1%. Atualmente quase um quarto da população adulta é obesa e mais da metade dos adultos está acima do peso.

“Hoje a gente sabe que as causas do aumento da obesidade estão principalmente relacionadas a mudanças no sistema alimentar. Há um enfraquecimento do consumo das refeições tradicionais, baseadas em alimentos in natura e minimamente processados  – como o nosso tradicional arroz com feijão -, e um aumento do consumo de produtos prontos para consumo, os ultraprocessados”, relata Fernanda Rauber, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo.

“Além de terem aditivos que viciam o paladar, os ultraprocessados são antinutricionais. Não são alimentos, são produtos químicos. E para o organismo conseguir metabolizar isso, ele tem que gastar nutrientes das suas reservas, o que acaba desnutrindo a pessoa cada vez mais. Ou seja, uma pessoa pode ser obesa e desnutrida”, explica Carolina Klein, nutricionista pós-graduada em nutrição oncológica, com formação em modulação intestinal.

Várias características dos alimentos ultraprocessados podem explicar o seu papel na obesidade: a elevada quantidade de açúcar, sal e gorduras, e a presença de aditivos – como os corantes e os aromatizantes -, que tornam esses produtos hiperpalatáveis e viciantes.

O panorama é preocupante. Um estudo publicado na revista científica “Preventing Chronic Disease”, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Atlanta (EUA), mostra que aproximadamente 168 mil mortes por ano no Brasil são atribuíveis ao excesso de peso e à obesidade, cifra quase equivalente ao número de óbitos por Covid-19 (162 mil) no país até a data de publicação desta reportagem.

Fotos: Giu Levy/Nupens-USP

A comédia e o retrato dos “inferiores”

A relação comparativa entre o presidente da Câmara de Deputados e o personagem Nhonho – publicada de forma depreciativa pela conta de Twitter do ministro Ricardo Salles – traz à tona aspectos que integram o cerne da comédia. Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) já salientava que, desde Aristófanes (447 a.C. – 385 a.C.), a comédia antiga se baseava na zombaria às imperfeições atribuídas a um homem ideal. Ria-se de defeitos físicos, da feiúra, da ausência ou falha de caráter.

Diferentemente da tragédia, as pessoas representadas na comédia não realizavam acontecimentos heróicos. Desde sua origem, a comédia retrata situações corriqueiras, comuns, a realidade do cidadão simples, dos escravizados. A comédia, sátira e paródia, se origina da imitação dos que pela sociedade eram considerados inferiores, ridículos.

Essa percepção se mostra tão enraizada quanto atual: em uma sociedade em que os padrões estéticos valorizam a magreza como ideal a conquistar – e manter -, ser gordo significa ser passível de zombaria. Algo naturalizado pela mídia e agora também por representantes políticos.

“O humor é um dos principais propagadores do estereótipo do corpo gordo, da marginalização do corpo gordo. Nenhuma pessoa tem direito de rir do corpo da outra. A gente não pode mais normalizar, não pode mais aceitar esse tipo de coisa, porque isso prejudica as pessoas gordas, prejudica a saúde mental das pessoas gordas. Sobretudo das mulheres”, aponta Luana Carvalho, no vídeo “O humor precisa ser gordofóbico?”, do canal Alexandrismos.

Por Juliana Fronckowiak Geitens

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