Consumo problemático supera média de vizinhos latino-americanos e caribenhos, vendas explodem no país e governo se omite
As rodinhas de amigos bebendo e conversando nas calçadas de bares, as turmas amontoadas em mesinhas de botecos lotadas de garrafas de cerveja ou “bolachas” de chopp desapareceram do dia-a-dia do Brasil nos primeiros meses da pandemia de Covid por conta do isolamento social e fechamento desses estabelecimentos. Mas a consequente diminuição do consumo de álcool na rua não fez com que os brasileiros bebessem menos. Eles passaram a beber em casa. E muito.
De acordo com o médico psiquiatra Guilherme Messas, 70% do consumo de álcool no Brasil é feito na rua. Mas, “com a pandemia, houve um desvio do padrão. As pessoas que bebiam fora de casa passaram a beber dentro de casa. Criou-se uma nova prática”, explica o professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP).
E, segundo ele, esse novo padrão de consumo foi acompanhado de uma “gigantesca campanha não regulada pelo governo para vender cerveja. E de uma consequente desproteção à população, já que aumentaram as vendas e o consumo em casa”.
“Estamos acima de outros países em todos os indicadores de consumo de álcool. Aqui houve um consumo bem maior durante a pandemia, especialmente no padrão que a gente chama de beber pesado episódico”
A forma como os brasileiros estão bebendo em tempos de pandemia aparece na pesquisa “Álcool e Covid 19”, realizada pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), entre 22 de maio e 30 de junho, com mais de 12 mil pessoas de 33 países da América Latina e Caribe e apresentada no mês de novembro.
Os índices brasileiros preocupam. “Estamos acima de outros países em todos os indicadores de consumo de álcool. Aqui houve um consumo bem maior durante a pandemia, especialmente no padrão que a gente chama de ‘binge drinking’ [beber pesado episódico – BPE], que são cinco doses ou mais em uma só ocasião (isso equivale a quase 2 litros de cerveja ou uma garrafa de vinho – 750 ml). Isso é o que mais impressiona”, afirma a médica e professora Zila Sanchez, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), que participou da realização do estudo.
A amostra brasileira também apresentou questões importantes em relação à saúde mental. “Encontramos o dobro da prevalência de ansiedade severa nos brasileiros quando comparados com o resto da mostra de outros países”, aponta Sanchez.
“São dois fatores alarmantes. Excesso de álcool e saúde mental debilitada precisam de muito cuidado”, afirma a professora da Unifesp. Ela relata, ainda, que, de acordo com a pesquisa, “apesar dos altos níveis de ‘beber pesado episódico’, e dos riscos de saúde associados, a maioria das pessoas nunca procura ajuda”.
A apresentação do relatório no Brasil foi feita no início de outubro e contou com a presença de um representante do Ministério da Cidadania do governo federal, a quem foram apresentadas recomendações. “Propusemos ao governo a necessidade urgente de políticas de saúde mental e de enfrentamento do consumo de álcool de forma integrada”, afirma a médica.
Idade mínima e proibição da publicidade
Os dados da pesquisa confirmam uma preocupação levantada no início da pandemia, que era a intensificação do abuso de álcool durante o isolamento. Em abril, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou que os governos limitassem a venda de bebidas na quarentena e solicitou que as regulações já existentes, como idade mínima e proibição da publicidade, fossem reforçadas. Calcula-se que 3 milhões de mortes por ano no mundo sejam relacionadas diretamente ao uso de álcool, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Em maio, um alerta sobre possíveis mudanças na forma de consumir havia sido feito em artigo publicado na revista científica Drug and Alcohol Review, por pesquisadores da Rússia, África do Sul, Alemanha, Canadá, EUA e Brasil, com a professora da Unifesp.
“Sabíamos que haveria mudanças nos padrões de consumo de álcool a partir de dados de outros eventos traumáticos em saúde pública”, explica Sanchez. Mas o governo brasileiro não tomou nenhuma medida.
Existem diversas estratégias para a redução do consumo de álcool. Quase todas elas passam por intervenções governamentais, ou seja, por políticas públicas, comenta a médica. “Reduzir a disponibilidade é uma delas, seja por controle de horário de venda, local de venda ou preço do produto.” No Brasil, ela detalha, há pouco controle da oferta e ele acaba não sendo feito de forma adequada.
“Os aplicativos aumentaram a venda de álcool. Já vendiam, mas aumentaram a publicidade. Ao entrar no supermercado, você vê todas as promoções de vodca, uísque. Facilitou-se o acesso, porque qualquer pessoa pode comprar pagando menos, sem ter que se preocupar em sair de casa para isso. Aumenta-se o acesso pela facilidade física e facilidade de preço. Quanto mais barato, mais disponível, mais pessoas consomem.”
Altas doses de lives e marketing
Guitarra, banquinho, cerveja e música sertaneja. “Tem um pedaço do meu peito bem colado ao teu. Alguma chave, algum segredo, que me prende ao seu. Um jeito perigoso de me conquistar. Teu jeito tão gostoso de me abraçar.”
A música “Noite e Dia” e outros hits da dupla de sertanejo universitário Jorge e Mateus embalaram durante 4 horas uma live promovida pela Ambev, em abril deste ano, e conectou mais de 3 milhões de pessoas. Com a hashtag “Fique em casa e cante comigo” o show virtual intitulado “Na Garagem” bateu recorde mundial da live musical mais vista no YouTube.
“As grandes empresas fizeram trabalhos de chamada responsabilidade social, com aspas, e por outro intensificaram o e-commerce”
Durante os meses de isolamento social, houve uma explosão do comércio virtual da indústria de álcool, incluindo vendas e marketing. E a realização de lives musicais tem sido uma das estratégias para a ampliação do comércio. Os números não desmentem. De acordo com a divulgação de resultados da Ambev, em seu site, só nos meses de abril, maio e junho, foram realizadas 398 lives, com 676 milhões de visualizações e mais de 2,5 milhões de menções relacionadas a 15 marcas do portfólio da empresa.
As lives são realizadas com músicos famosos, como Zeca Pagodinho e Zezé di Camargo e Luciano. “E nelas fazem intensas propagandas dos produtos. Eles grudam o consumidor vendo esses cantores e mostram como acessar o Zé Delivery e essas promoções de bebida. Vão engajando os clientes de várias maneiras, com várias promoções”, descreve a psicóloga clínica Ilana Pinsky, pesquisadora visitante da Escola de Saúde Pública da City University of New York (Cuny).
“A indústria logo ficou esperta e aumentou e melhorou muito sua entrada em mídias sociais. Fizeram um trabalho intenso“, relata a psicóloga, também pesquisadora do Centro de Estudos do Álcool da Rutgers University. Por um lado, ela explica, “as grandes empresas fizeram trabalhos de chamada responsabilidade social, com aspas, e por outro intensificaram o e-commerce, o Zé Delivery”.
Bebidas geladas a preço de mercado na sua casa agora. Essa é a frase que convida o consumidor a comprar quando se entra no site do Zé Delivery. Zé, personagem do logo do site de compras, é “gente como a gente”, descabelado, barba por fazer. De acordo com dados divulgados pela Ambev, nos meses de abril, maio e junho, o sistema de vendas de cerveja online Zé Delivery realizou 5,5 milhões de entregas em casa, 3,5 vezes mais do que no ano inteiro de 2019.
A indústria também reforçou sua estratégia de “smart affordabilty”, que são produtos voltados à população de baixa renda. “São cervejas muito baratas feitas com a mão de obra local e isenção de impostos”, explica Ilana Pinsky. Um dos exemplos é a cerveja Magnífica, do Maranhão, um dos Estados com menor IDH do Brasil. De acordo com a Ambev, o volume de venda desse tipo de bebida aumentou em 70% nos últimos meses.
Paralelamente às investidas para ampliação nas vendas de bebidas, as grandes empresas também estão apostando em trabalhos do que chamam de responsabilidade social. “Responsabilidade social entre aspas, porque na verdade querem aumentar as suas vendas, mas colocam como se estivessem fazendo uma bondade”, afirma Pinsky.
O aumento das vendas de álcool ocorre no contexto da Covid-19, em que o abuso de álcool está na lista de fatores que podem agravar o quadro da doença.
Muita oferta, pouco controle
Enquanto a indústria de álcool investiu pesadamente em propaganda, lives, e-commerce para impulsionar suas vendas, o poder público se isentou de ações para controlar o consumo da bebida neste período. “O mais grave é que as pessoas estavam expostas a um estresse gigantesco, trancadas em casa, muitas buscando formas de automedicação, enquanto a indústria atacava com suas promoções e publicidades a mil, com todos os níveis de propaganda”, descreve Zila Sanchez. “E o poder público em nenhum momento se preocupou com isso”, afirma a médica da Unifesp. Além de não ter controle das vendas, pondera, há uma facilitação, pelo fato de alguns produtos terem preços muito baixos.
No Brasil, a lei que estabelece regras para a propaganda de álcool é de 1996, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Permite a propaganda de bebidas alcoólicas em rádio e TV entre 21h e 6h, e obriga que o rótulo tenha a advertência sobre o consumo excessivo de álcool. Porém a lei considera bebidas alcoólicas aquelas com teor superior a 13% de álcool. E boa parte das cervejas oferecidas no mercado brasileiro não chega a 5%. Assim, ficam excluídas das restrições.
De acordo com Ilana Pinsky, o Brasil está tão atrasado no debate normativo que não dá nem para considerar essa uma regulação. “Dá até vontade de dar risada. Não tem regulação nenhuma. No Brasil, as cervejas nem são consideradas bebidas alcoólicas. Isso é resultado do lobby das cervejas, para que vejamos quão patética é nossa situação.”
Questão de saúde pública
Em alguns países, a venda de bebidas foi proibida nos primeiros meses de pandemia, pois os governos entenderam que seriam um fator de risco extra durante o confinamento. Um dos exemplos foi a África do Sul.
“Na Austrália, Nova Zelândia, Panamá, Índia, houve restrições de horário de venda, venda por aplicativo, limite de venda por pessoa no aplicativo”, relata Zila Sanchez. “Há várias formas de lidar, e nosso país seguiu fazendo o que sempre fez. Aqui o álcool não é visto como problema de saúde pública, só de lazer. Os países que tomaram medidas para reduzir o acesso, controlar essas estratégias de venda e promoções tiveram redução nos danos associados ao uso de álcool: mortalidade, acidentes, diversos fatores associados ao uso de álcool se reduzem nessas populações.”
No Brasil, o mínimo que deveria ter sido feito, na avaliação de Guilherme Messas, seria conseguir simetria entre informação dos que vendem cerveja e informação ao consumidor. “Mas não houve. Não teve nem uma mínima campanha alertando para os riscos no período maior da pandemia. Em nenhuma esfera. Houve até leniência”, analisa o psiquiatra. “O que houve foi nada mais do que pequenas mudanças nas características mercadológicas da política brasileira em relação ao álcool, de e para a indústria do álcool.”