“Piada pronta”: Nestlé corta ticket alimentação dos funcionários pela metade durante a pandemia

Tesourada afetou 23 mil funcionários no país todo; por enquanto, fábrica da Garoto resiste

O problema começou no Estado de São Paulo, nas unidades de Cordeirópolis e São Bernardo do Campo, dois centros de distribuição responsáveis por escoar 90% da produção da Nestlé no território nacional. 

Em janeiro de 2019, a empresa demitiu 130 funcionários do setor de armazém em São Bernardo e outros 100 em Cordeirópolis, terceirizando os postos de trabalho. Em julho daquele mesmo ano, anunciou que demitiria 90% de todo o quadro de funcionários em ambas as unidades, mantendo apenas alguns cargos-chave e terceirizando os restantes. 

Os trabalhadores responderam. Paralisaram as fábricas e pediram a intervenção do Ministério Público do Trabalho, que ajudou a mediar negociações com o sindicato. 

A empresa aceitou recuar da demissão em massa e “desterceirizar” o setor de armazéns que havia sido precarizado em janeiro, mas pediu em troca um sacrifício: os funcionários teriam que concordar com uma redução de R$ 650 para R$ 340, no ticket alimentação, e de R$ 6 mil para R$ 3,5 mil na participação em lucros e dividendos (PLR) recebida a cada data-base.

Foi nesse cenário, ainda sob a sombra da demissão em massa, que os empregados aprovaram a “flexibilização”, conforme conta ao Joio Artur Junior, vice-presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins (CNTIA Afins).

Ele classifica a postura da empresa como “intransigente”: “Ela se aproveita da fragilidade dos trabalhadores para promover a redução e a retirada de benefícios”. 

Depois da batalha em Cordeirópolis e São Bernardo do Campo, a Nestlé partiu para a conquista das demais fábricas e centros de distribuição no país. 

Em novembro de 2019, conseguiu aprovar um acordo coletivo que garantia os mesmos cortes em todo o Estado de São Paulo, onde fica concentrada 50% da força de trabalho da empresa: 12 mil funcionários.

Foto: Adobe Stock

SP, MG, RS, GO, BA

A Nestlé é a maior corporação alimentícia do planeta. Em 2019, o lucro líquido global da empresa foi de R$ 52 bilhões. Dos seus 291 mil funcionários, 23 mil estão alocados no Brasil, em 25 municípios de 8 Estados.

Feitos os cortes em São Paulo, a companhia avançou para Minas Gerais. “Foi um negócio em cascata, ela veio igual um rolo compressor, numa atitude arbitrária, autoritaríssima”, descreve o sindicalista José Afrânio, presidente da Federação dos Trabalhadores das Indústrias da Alimentação de Minas Gerais (FTIA-MG).

Ele lembra que, além do corte no vale-alimentação, a empresa também implementou um sistema de PLR por metas. Antes, o trabalhador recebia em cada data-base uma remuneração fixa de R$ 6 mil e um mês de salário. 

Com a mudança, a PLR passou a depender de um percentual que varia de acordo com a capacidade do funcionário de atingir objetivos definidos pela empresa. O percentual é calculado sobre o salário, e o valor máximo final é de R$ 3,5 mil – 41% do benefício fixo original.

De Minas os ventos da mudança sopraram na direção de Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Goiás, sempre levando a redução da PLR e o corte do ticket-alimentação.

Quando o vendaval avançou sobre o Nordeste, onde a empresa tem duas unidades, os funcionários da Bahia já vinham passando por uma sucessão de cortes.

Em 2017 foi instituída a coparticipação de 20% no pagamento do plano médico após cada atendimento – antes a empresa pagava tudo. Dois anos depois, a redução do adicional noturno em 20% e uma tentativa de rebaixar o piso salarial para R$ 1.250, o que representaria perda de 12% em relação ao valor vigente.

“E agora culminou na cesta-alimentação”, explica Eduardo Sodré, diretor da Confederação dos Trabalhadores da Indústria da Alimentação (Contac) na Bahia. “Eu acho que isso é onde está doendo mais.” 

Sodré avalia que a empresa está implementando “uma política nacional de precarização dos benefícios conquistados” e denuncia assédio moral praticado pelos gerentes, que segundo o sindicato vinham reunindo funcionários de três em três, nas salas da administração, para ameaçar a terceirização total caso a categoria não aceitasse as propostas da companhia. 

O acordo coletivo com cortes na PLR e no ticket alimentação foi assinado na Bahia no dia 8 de novembro de 2020, depois de alguns meses de negociações. 

Gauleses

Tal qual a Vila Gaulesa de Asterix e Obelix, a base de Linda Morais é a última a resistir aos avanços dos romanos – quer dizer, dos executivos da Nestlé. 

Morais representa os trabalhadores da fábrica de chocolates Garoto, em Vila Velha (ES), dona de marcas como Batom e Talento, absorvida pela Nestlé em 2002.

Ela explica que as negociações com a companhia são duras, mas que por ali a redução no vale-alimentação ainda não foi aprovada: “A Garoto tem quase dois mil funcionários, e 98% deles disseram não à proposta da empresa [em assembleia realizada em dezembro]”. 

Na última rodada de negociações, ocorrida pela internet no dia 7 deste mês, o sindicato apresentou a negativa da base e a empresa indicou que poderia ceder em relação à diminuição na PLR, mas que seria impossível retirar de pauta o corte no ticket. Essa nova proposta foi votada e rejeitada pelos trabalhadores, em assembleia, nos dias 19, 20 e 21.

“Vou perder 25% do meu salário [se o corte for implementado]. Sou pai de três filhos. Vou ter que evitar comprar algumas coisas para dentro de casa”, diz Samuel Estevão dos Reis, há 20 anos na fábrica da Garoto. 

“A valorização num fator básico como a alimentação seria o mínimo que a empresa poderia fazer”, argumenta ele.

Por Marcos Hermanson

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