“Legume ou fruta? Só depois de pagar água e luz”

Sem auxílio emergencial, mães solo sofrem para botar comida na mesa; algumas sobrevivem de bicos, doações ou tentam plantar no quintal de casa

Dois mil e vinte foi o ano em que o desemprego atingiu 14,1% da população economicamente ativa. Em que a inflação acumulada foi de 4,52%, maior índice desde 2016. Em que o preço dos alimentos disparou em 14%. 

O quilo da carne subiu em média 17%, o arroz ficou 76% mais caro, e o óleo de soja – somos o maior produtor do grão no planeta – mais que dobrou: 103% de aumento acumulado. 

Mas 2020 também foi o ano em que o auxílio emergencial injetou R$ 292 bilhões na economia, ajudando a amortecer a pancada econômica e social da pandemia do novo coronavírus. 

Das 66 milhões de brasileiras e brasileiros que se beneficiaram do programa, 10 milhões são mães solo. Elas tiveram direito a R$ 1.200 mensais, o equivalente ao que receberiam se tivessem companheiros ou companheiras elegíveis ao benefício.

Desempregadas – essa já era a categoria mais vulnerável do ponto de vista da segurança alimentar antes da pandemia – ou com a renda diminuída, o dinheiro creditado para essas mulheres ajudou a bancar água, luz, aluguel e comida. 

Agora que o benefício acabou, muitas foram obrigadas a cortar custos. Diminuíram a quantidade e a qualidade da comida que botam na mesa. Tiraram frutas, legumes e verduras da dieta. Passaram a comprar proteína mais barata. 

Algumas, que tinham experimentado uma melhora notável na alimentação enquanto receberam a ajuda federal, se viram na mesma situação de antes: comendo arroz, feijão e farinha. 

A Folha de S. Paulo noticiou nesta quinta (18) que membros do governo e lideranças partidárias do Congresso chegaram a um acordo para a volta do auxílio emergencial. 

O novo auxílio ainda não teve o valor divulgado oficialmente, mas interlocutores do Ministério da Economia têm falado em pagar R$ 200, por três meses, com critérios de renda mais restritivos.

O retorno do benefício está condicionado à aprovação de um pacote de ajuste fiscal, que deve ser votado na quinta-feira da semana que vem (25). 

O básico e o mais barato

Karen Farasco vende salgadinhos, biscoitos e refrigerantes no Terminal Vila Arens, em Jundiaí (SP). No início da pandemia, a autônoma viu sua renda despencar de R$ 300 para R$ 100 diários. Culpa das medidas de isolamento, que diminuíram o movimento da estação, e do desemprego, que tirou dinheiro do bolso dos passantes.

Karen cria seu filho Lorenzo, de cinco anos, com a ajuda da avó. Logo que atendeu o telefone para conversar com o Joio, teve que interromper: “A guarda! Zefa! Zefa! Zefa! Fica ligeiro, irmão, é o rabecão. Calma aí! Tô olhando, pera aí! Entrou, entrou…”. 

No dia anterior, uma quinta-feira, ela tinha perdido R$ 700 em mercadorias para a Guarda Municipal. A corporação faz marcação pesada sobre os ambulantes desde que o prefeito Luiz Fernando (PSDB) assumiu o cargo.

Karen diz que a renda com o trabalho no terminal parou de cair nos últimos meses – naquele dia ela tinha feito R$ 220 –, mas que o fim do auxílio e a perspectiva de uma cirurgia de R$ 30 mil no coração do filho a obrigaram a cortar custos com alimentação: “Vou falar para você, antes da pandemia eu comia bem. Salada, macarrão… nunca faltava mistura. Agora eu como o básico e o mais barato: frango, linguiça e salsicha, quase todos os dias”. 

O sol forte matou a horta no quintal de casa

Josi Anastácio tem 33 anos. É mãe de Ana Clara (9) e Gabriel (12). Mora em Conselheiro Lafaiete (RJ). “Fiquei desempregada porque o comércio fechou. Escola sem aula, as crianças dentro de casa. Fiquei dependendo do auxílio”, conta ela. 

Quando o benefício terminou, Josi se virou. Fez bicos como faxineira e conseguiu um emprego em um restaurante, que durou pouco. Quando nos falamos, ela aguardava o pagamento pelos 18 dias trabalhados – não tão veloz quanto a demissão. 

“Antes da pandemia, graças a Deus eu não tinha do que reclamar, porque não faltava nada dentro de casa”, conta a trabalhadora. “Depois da pandemia, a gente começou a dar uma controlada: verdura, uma vez ou outra. Carne, nem se fala. Legume ou fruta, só depois de pagar água e luz.”

Ela conta que começou uma pequena horta no quintal de casa, com couve e cebolinha, mas a ideia não vingou: “Acaba que custa pegar, porque é sol o dia inteiro”.

Josi acredita que muitos têm recorrido às plantações domésticas para driblar o preço dos alimentos: “Aqui na minha cidade você vai na quitanda e quatro folhas de couve ou um pé de alface estão R$ 2. Antes eram 95 centavos. Você vai de manhã, está um preço. Você volta à tarde, o preço já mudou”.

Outra horta, morta pela chuva dessa vez

Mãe do Mateus (9) e da Iolanda (2), Jocelene Forlin fez a mesma coisa quando ficou sem o auxílio. Plantou repolho, rúcula e aipim no quintal de casa, em Matinhos (PR). Por motivo inverso, o destino foi o mesmo da horta de Josi: “Acabou vindo muita chuva e está se perdendo tudo”. 

Ela conta que, quando o benefício parou de cair, em dezembro, a situação em casa se deteriorou: “Esse mês até o momento não foi conseguido comprar banana, laranja, frutas, verduras. O dinheiro está curto. Arroz está caro, azeite também. Tem carne em casa, mas não como tinha há quase um ano, quando começou a pandemia. Bem escasso para passar o mês”.

“Comer o feijão e guardar o caldo”

Francisca Cleide é moradora de Lagoa d’Anta, uma cidadezinha de 6.227 habitantes, a 93 quilômetros de Natal. Mora com o filho João Victor, de sete anos, e com o companheiro, que é pescador. Ela se separou do pai de seu filho “com três meses de bucho” e não recebe pensão.

A situação de Francisca melhorou bastante com o auxílio, mesmo se comparado com antes da pandemia: “Antes era um comer normal, de uma pessoa que não tem muita condição – arroz, feijão, uma mistura. Quando não tinha mistura, comia um ovo, um pão com mortadela”. 

“Depois do auxílio nós começamos a comer diferente: abria a geladeira, tinha uma mistura, cada dia uma diferente. Um frango, uma carne [vermelha], uma calabresa, uma carne de charque, verdura, suco, tomate, cebola”, diz ela.

O acompanhamento das refeições também subiu de nível: “Tinha dia que era uma maionese, com uma batatinha, uma cenourinha. Tinha dia que era alface, com tomate e cebola. Outro dia era um repolho. Cada dia da semana fazia uma verdurinha diferente”.

Em janeiro, Francisca foi jogada na mesma situação de antes: “Agora a gente economiza o pouco que a gente tem, para dar para o outro dia. Não vou dizer que a gente passa fome, mas mudou totalmente. Hoje a gente fica juntando dinheiro para pagar água, luz, inteirar o aluguel, comprar um arroz e um feijão. Tá muito difícil. É comer o feijão e guardar o caldo”.

“A crítica que eu tenho ao auxílio é que acabou”

“Quando eu escuto as notícias de que o auxílio pode voltar, é algo que me alegra muito o coração. Independente do valor, vai ser muito bem-vindo. A ajuda do governo era a única coisa que eu tinha”, diz Vânia Barbosa, mãe do Anthony, de 1 ano e 8 meses, psicóloga e moradora de Brasília (DF).

Antes da pandemia ela tirava cerca de R$ 3.500 mensais fazendo atendimentos psicológicos e bicos como manicure e cabeleireira. Os trabalhos acabaram de uma hora para a outra, assim que o vírus começou a se espalhar pelo país.

“Logo que iniciou a pandemia os pacientes ficaram reclusos e a profissão [de psicóloga] ficou enclausurada junto”, narra ela calmamente, ao telefone.

Sem renda, a psicóloga pediu o auxílio e passou a receber como mãe solo: “Não tive problema nenhum, apesar de que eu pensei que não conseguiria pegar. Recebi todas as parcelas, desde o início, sempre em dia”. 

Os R$ 1.200 passaram a ser o sustento da casa. Pior do que antes, mas melhor do que nada. Depois que o programa acabou, em dezembro, Vânia passou a depender de doações da irmã e do Programa Prato Cheio, do governo do Distrito Federal, que transfere R$ 200 mensais a famílias que ficaram órfãs do auxílio emergencial. 

“Carne a gente cortou, está muito esporádico. Às vezes eu compro um peito de frango para o bebê, mas carne [vermelha] é muito difícil”, conta ela. “Substituí arroz por batata, troquei o óleo pela banha. Leite não compro mais. A alimentação ficou muito restrita.” 

Antes da pandemia, Vânia afirma que se preocupava com a variedade de frutas no prato do filho. Comprava laranja, banana, pêra, ameixa – “que ele gosta muito” –, maçã e uva. Hoje o quadro é diferente: “Se você vier na minha casa, você vai encontrar manga, laranja e banana. São as três coisas que estou podendo oferecer para ele”.

O time das verduras e legumes também ficou desfalcado: “Antes comprava quiabo, feijão verde, feijão de corda, tomate, cebola, cheiro-verde. Hoje não compro mais”.

A psicóloga se diz grata por ter recebido o auxílio emergencial. “Eu não tenho nenhuma crítica ao auxílio emergencial. A única crítica que eu tenho é que acabou, não tem mais. Mas me ajudou muito. Foi o que me susteve durante esse tempo.”

Por Marcos Hermanson

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