Adeus ao arroz e feijão? Preço de alimentos continuará alto em 2021

Fatores que contribuíram para a carestia, como o câmbio e a crise econômica, mantêm-se nos próximos meses, provocando efeitos na cultura alimentar

O preço de alimentos que pesou no bolso — e tirou a comida do prato — de muitos brasileiros durante o ano passado deve continuar salgado em 2021. A inflação de alimentação e bebidas acumulou alta de 14,36% em 2020, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) anunciado no início de janeiro pelo IBGE. O instituto também divulgou na última terça-feira (26) uma previsão geral da inflação para o primeiro mês deste ano: 0,78%, que é considerado o maior resultado do período desde 2016 e serve para indicar que a situação não melhorará tão cedo.

Ao longo do ano passado, itens tradicionalmente consumidos no país tiveram uma alta significativa nos custos, como são emblemáticos os casos do óleo de soja (+ 103,79%) e o do arroz (+ 76,01%). A tendência é a de que eles e outros continuem caros, de acordo com analistas consultados por O Joio e O Trigo. Além disso, essa elevação pode produzir efeitos na qualidade das refeições consumidas e na cultura alimentar.

Oficialmente, o IPCA, um indicador que mede o aumento do custo de vida no país e é usado como base para o reajuste de salários, subiu em 4,52%. Isso significa que, em média, todos os principais grupos de despesas da população brasileira, como comida, educação e saúde, entre outros, tiveram um aumento de preços nessa faixa. Esse índice está dentro da meta do governo federal, que estimava um crescimento da inflação em torno de 4%, e leva a crer que a economia do país está aparentemente sob controle, a despeito da crise desencadeada pela pandemia do coronavírus.

Mas esse cenário de estabilidade pode não passar de uma miragem no árido terreno que se tornou o Brasil após a chegada da Covid-19. Esmiuçados, os números aferidos no IPCA mostram que o aumento do custo de vida, puxado numa ponta pela elevação no preço de alimentos e bebidas, só não foi maior porque, em outra ponta, os valores de outros itens caíram ou permaneceram estáveis, enquanto ocorria o fechamento de serviços não-essenciais para deter a transmissão da doença pelo país.

“O IPCA [acumulado em 2020] é totalmente irreal”, afirma o cientista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) , Rafael Moreira Claro, que estuda o impacto da variação de preços sobre o maior ou menor consumo de certos alimentos. “A inflação de 2020 deveria estar em 9%, por aí, não fosse a deflação em grupos como vestuário e o represamento de outros grupos, como o de transporte. É notável o aumento de preço de alimentos nos supermercados de forma perceptível e a olho nu”, ele acrescenta. 

Os preços do grupo de itens de vestuário recrudesceram em 1,13% em 2020, segundo o IBGE. Ao lado dele, os custos de transportes, saúde e cuidados pessoais, educação e outras despesas pessoais permaneceram praticamente estáveis, aumentando em pouco mais de 1%. Como o IPCA é calculado pela média do conjunto dos principais gastos da população, a pequena diferença em alguns grupos ajudou a puxar o indicativo oficial de inflação para baixo.

Outras medições, no entanto, reforçam que o preço de alimentos teve uma alta como nunca vista recentemente. Um levantamento realizado pela Associação Paulista de Supermercados (Apas) com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), e divulgado em 22 de janeiro, mostra que a inflação atingiu 15% nas unidades varejistas do Estado de São Paulo, o mais populoso do Brasil. Anteriormente, a maior alta no setor, medida pela Apas e pela Fipe, havia sido de 11,33% em 2015.

Dada a situação, a expectativa para Claro é de que o custo da comida permaneça alto ao longo de 2021. “Esse cenário não vai arrefecer. O arroz, que subiu, teve um pico [de preços] e depois caiu, voltou a subir de novo. Não dá mais para pensar que você vai voltar a pagar 16 reais no saco de cinco quilos de arroz”, ele diz. Em uma pesquisa rápida desta reportagem, feita no site de algumas das principais redes varejistas do Brasil, o preço de um pacote de cinco quilos de arroz branco poderia variar entre R$ 22 e R$ 40, considerando as lojas presentes na cidade de São Paulo.

Exporta que eu gosto

O superintendente de Gestão da Oferta da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Allan Silveira, diz em entrevista ao Joio que a elevação do preço de alimentos se deve ao fato de que “o ano de 2020 foi atípico”. Não só fatores diretamente relacionados à pandemia do coronavírus pesaram no aumento, segundo ele. A desvalorização do real frente ao dólar e uma safra ruim de grãos em outros países contribuíram para elevar valores por aqui, principalmente o do arroz e o do óleo de soja.

Um dólar chegou a custar R$ 5,90 em maio do ano passado. Depois, o preço do dinheiro norte-americano se estabilizou em um valor mais baixo, em pouco mais de R$ 5,14, em dezembro. Nesse patamar, o custo da moeda estrangeira foi importante para incentivar a exportação de grãos, já que barateou os itens brasileiros no exterior e elevou os ganhos de quem produz por aqui. Isso também diminuiu a oferta interna desses produtos, puxando o valor dos alimentos para cima.


“Esse é um ponto importante. O câmbio é uma variável importante. Nossa moeda, o real, está se desvalorizando. Isso faz com que o preço dos nossos produtos sejam mais competitivos e sejam mais exportados. Aconteceu com muitos dos produtos em que somos líderes de produção, como a carne, a soja e o suco de laranja”, afirma o engenheiro agrícola Marco Tulio Ospina, professor da Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

Além disso, em 2020, a pandemia serviu como desculpa para o fechamento das feiras-livres, sob o argumento de evitar aglomerações, ainda que as vendas ocorressem ao ar livre. E a propagação da Covid-19 também interrompeu a circulação de certas mercadorias e fez com que comerciantes adquirissem menos produtos, em razão da menor quantidade de pessoas nas ruas. 

Esses foram alguns dos motivos que mais influenciaram o preço de alimentos como frutas e hortaliças no primeiro semestre do ano passado, de acordo com uma avaliação feita pela Conab a pedido desta reportagem. No segundo semestre, há naturalmente uma queda na oferta dos dois grupos de alimentos por consequência da transição da safra, que, além de tudo, sofreu com uma piora das condições climáticas, segundo a análise da companhia. 

A previsão é de que, no ano em curso, o mau tempo não se repita, embora não haja muita certeza a respeito. “O movimento de preços das principais hortaliças e frutas em 2021 responderá à sazonalidade, característica de cada cultura, aos níveis de demanda, bem como às condições climáticas. Assim, esse conjunto de fatores ditará a oferta e, consequentemente, as oscilações de preços”, afirma, em nota, a Gerência de Estudos do Mercado Hortigranjeiro da Conab.

Outro fator que entra na conta da comida é o reajuste do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) que o governador João Doria Jr. (PSDB) tentou adotar em São Paulo. O aumento do tributo no Estado, que responde por cerca de um terço do PIB brasileiro, teria um efeito dominó sobre a cadeia de alimentos em todo o país. 

Após pressão de empresários, a gestão paulista voltou atrás e desistiu de mexer no ICMS, conservando a isenção para a maioria dos alimentos em circulação no Estado. No entanto, ela manteve a cobrança do tributo para as carnes bovinas, suínas e de aves vendidas a micro e pequenas empresas, como pequenos açougues, frigoríficos e mercados. Representantes do setor vêm organizando protestos contra a decisão de Doria, pois avaliam que a medida deve fazer com que a proteína animal fique até 13% mais cara.

Apesar de tal situação no Estado de São Paulo, alguns dos analistas ouvidos por esta reportagem, contudo, prenunciam que outro grande aumento de preços é improvável. O que deve ocorrer é o preço de alimentos se manter elevado, nos níveis alcançados em 2020.

“Como a gente já parte de um patamar alto, não há previsão de uma nova alta de preços. A queda [dos preços] não vai ser tão significativa, mas a tendência no curto a médio prazo é de queda, com a entrada das novas safras em março”, afirma Silveira, da Conab. O prognóstico da companhia de abastecimento é o de que as produções brasileiras de arroz e de soja atendam às demandas interna (estável) e externa (menor) pelos dois grãos, ainda que as duas permaneçam intensas.


O avanço da imunização da população brasileira contra o coronavírus também pode virar o jogo para melhor, segundo ele. Com menos gente trancafiada em casa e a decorrente normalização da quantidade de pessoas circulando nas ruas, a procura  interna de produtos como o arroz e o óleo pode cair juntamente com os preços, de acordo com o superintendente da Conab. “Se a imunização avançar, a tendência é queda na demanda, com mais gente se alimentando fora, nas ruas”, prevê.

Não custa lembrar, no entanto, que estamos no país de Jair Bolsonaro (sem partido), o presidente da República que não se adiantou para comprar vacinas e, durante muito tempo, jogou contra a aquisição desses fármacos.

O cenário de melhora nos preços pode, assim, não se confirmar, caso a transmissão do coronavírus permaneça em patamares elevados, afetando, consequentemente, a economia. “A pandemia fez com que muitos consumidores perdessem renda, e isso diminuiu um pouco a demanda de produtos agrícolas. A demanda menor diminui a oferta e, portanto, o aumento de preços é uma consequência direta da pandemia”, comenta Ospina.

Sem visão estratégica

Há algum tempo, a prioridade do governo federal em dar mais apoio aos grandes produtores do agronegócio —cuja prioridade é o mercado externo— do que aos pequenos agricultores, voltados à venda doméstica, também contribui para a carestia. “O nome ‘agronegócio’ é exatamente este por isso, porque ele é um negócio em que os produtores priorizam a venda para fora do país”, afirma Daniel Balaban, representante no Brasil do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP) e Diretor do Centro de Excelência contra a Fome.

Na avaliação do integrante do WFP, o braço da ONU que foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 2020, o problema que o país enfrenta no preço de alimentos não tem a ver com a produção, já que as safras crescem, batendo recorde ano a ano. Segundo Balaban, a questão decorre de outras duas variáveis: primeiro, da falta de estoques estratégicos, que servem para controlar a variação da oferta no mercado interno, como já falamos aqui no Joio; e, segundo, da ausência de estímulos aos pequenos agricultores.

“Os pequenos agricultores são a base para a produção e o consumo de alimentos. O agronegócio é importante para a balança comercial. Mas, quando você fala em termos de consumo e alimentação, são os pequenos que estão nessa base. Quando você pensa em políticas públicas e coloca um orçamento condizente, você atinge aquela meta. Quando corta, logicamente os resultados são decepcionantes.”

Também como já mostramos, ao longo dos últimos anos o Brasil vem retirando o apoio aos pequenos agricultores, que respondem por boa parte de itens tradicionalmente consumidos no país, como a mandioca, algumas frutas e o feijão

Um dos principais mecanismos públicos de incentivo a esses produtores rurais, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), passou a perder recursos a partir de 2012 — o PAA usa recursos públicos para a compra de leite e hortifruti e os distribui pelo país. Naquele ano, 128,8 mil agricultores familiares foram beneficiados com as compras de R$ 586 milhões em alimentos pela Conab. Meia década depois, em 2018, os números despencaram para 9.675 produtores beneficiados com R$ 63 milhões em compras públicas operacionalizadas pela companhia.

É verdade que em 2020 o PAA, ao contrário da tendência de queda de recursos que sofria, teve um investimento recorde. Após pressão de entidades da sociedade civil, o governo federal liberou uma verba de mais de R$ 500 milhões para a execução do programa, atingindo um total de R$ 643 milhões em investimentos, de acordo com informações do Ministério da Cidadania, responsável pela destinação dos recursos.

O aporte recorde de recursos no PAA, no entanto, ocorreu em função da liberação de um “orçamento público de guerra”, autorizado pelo Congresso Nacional em maio de 2020 para que o Estado brasileiro desempenhasse ações de combate à pandemia do coronavírus e seus desdobramentos. 

Trata-se, portanto, de uma ação pontual, e não estrutural ou estratégica, cuja previsão é de descontinuidade ao longo dos próximos anos. Para 2021, ainda não há previsão de gastos com o programa, embora as discussões do orçamento federal já tenham se iniciado entre os poderes Legislativo e Executivo. Por enquanto, o indicativo no Projeto de Lei Orçamentário, enviado ao Congresso pelo governo federal, é de R$ 213 milhões destinados a todas as atividades de segurança alimentar e nutricional do Ministério da Cidadania.


“Eu acho que todos os governos têm que agir estrategicamente. Não conheço um país que deixa a estratégia alimentar à mercê dos interesses do mercado [sob a lei da oferta e demanda]”, comenta o diretor do Centro de Excelência contra a Fome, que critica a retirada de recursos do PAA. “Por que não olhar também para os pequenos agricultores? Se você não fizer isso, vai quebrar um pêndulo extremamente importante da economia brasileira, pois são eles que fornecem alimentos para a nossa mesa.”

Aumentar o poder de compra dos trabalhadores, valorizando o salário mínimo, é outra política com capacidade de facilitar o acesso aos alimentos no país. Todo ano, o governo federal publica uma medida provisória em que determina o valor mínimo de remuneração. A cada período, a cifra é atualizada, levando em conta, pelo menos, o aumento do custo de vida calculado pela inflação mensurada pelo IBGE. 

O reajuste é uma determinação prevista na Constituição Federal, mas, embora acompanhe a lei, o salário mínimo não tem um aumento real há pelo menos dois anos. O aumento real é considerado quando a remuneração-base do país é reajustada acima da inflação. Por enquanto, a determinação do governo é de que o pagamento atinja o valor de R$ 1,1 mil, que apenas repõe as perdas salariais decorrentes da elevação de gastos, sem aumentar efetivamente o poder de compra.

Adeus, arroz e feijão

Noves fora, o conjunto de fatores que está contribuindo para o encarecimento dos alimentos no Brasil tem consequências não só na quantidade de comida adquirida, mas também na qualidade. O aumento do preço de alimentos contribuiu, principalmente, para encarecer aqueles mais saudáveis, produzindo efeitos na saúde dos brasileiros.

“A dificuldade logística decorrente da pandemia que a gente viu no mercado interno afeta mais os produtos in natura do que aqueles ultraprocessados. Toda vez que um caminhão de refrigerante [ultraprocessado] não pode sair, isso não muda em nada a validade do produto. Toda vez que um caminhão de maçãs [in natura] não pode sair, você vai perder pelo menos uma parte daquela produção”, exemplifica o pesquisador Claro.

O professor da UFMG faz um acompanhamento sistemático do preço de alimentos. Em 2019, ele orientou uma pesquisa de doutorado, realizada pela cientista Emanuella Gomes Maia, que chegava a uma preocupante conclusão. Há, por um lado, uma tendência de encarecimento dos alimentos saudáveis (in natura e minimamente processados) no país, enquanto, por outro, comidas não saudáveis (ultraprocessadas) estão se tornando cada vez mais baratas —e, portanto, mais acessíveis.

O estudo, que já foi tema de uma reportagem em O Joio e O Trigo, afirmava que, caso não houvesse um conjunto de políticas públicas para reverter a tendência constatada, os alimentos ultraprocessados, como bolachas, salgadinhos e salsichas, se tornariam a partir de 2026 mais baratos do que os alimentos in natura e minimamente processados, como frutas, verduras e grãos.

O encarecimento dos alimentos ocorrido em 2020 pode ter acelerado o surgimento desse ponto de inflexão, de acordo com Claro. “Daquela tendência que a gente tinha detectado, a gente perdeu dois anos no tempo. A tendência, se era para ocorrer em 2026, podemos vê-la acontecer pelo menos em 2024”, afirma o professor da UFMG.

Balaban, representante do WFP-ONU no Brasil, considera que ter ultraprocessados mais baratos é “extremamente perigoso”. “Não só porque os ultraprocessados não são alimentos, mas porque eles podem matar. São alimentos muito ricos em sal, gordura e açúcar, que podem levar a diabetes, hipertensão e ao [aumento do] colesterol. Isso é muito perigoso porque pode levar a problemas de saúde no futuro.”

A afirmação dele faz referência a uma série de estudos que revelam os males relacionados aos ultraprocessados, muitos dos quais foram outrora assunto em O Joio e O Trigo.

Mas, além dos problemas de saúde pública, a carestia pode também derrubar dois pilares sagrados da cultura alimentar brasileira. Se nada for feito, não está longe o dia em que o país irá se despedir, dizendo adeus ao arroz e feijão. O encarecimento de um, largamente repercutido durante o ano passado, não dá sinais de arrefecer tão cedo. E a queda no consumo do outro é, apesar de discreta, cada vez maior no Brasil, como já falou este repórter em outro momento.

O diretor do Centro de Excelência contra a Fome afirma que o encarecimento do preço de alimentos pode ser um divisor de águas. “Como já dizia a rainha: ‘Se não tem pão, que comam brioches’. A gente sempre escuta esse tipo de comentário. Mas o valor tem impacto, porque as pessoas precisam se alimentar e precisam substituir”, diz. “Se o arroz custa R$ 40 o quilo, é óbvio que a pessoa vai substituir por outra coisa.”

“A médio e longo prazo, a chance é bem essa”, reconhece Claro, da UFMG. “Já fizemos outras pesquisas sobre o consumo de feijão. E a tendência regular é declinante. Já tem algumas capitais do país em que o consumo de feijão caiu mais de 30%, principalmente naquelas em que a cultura alimentar já não era tão forte em torno disso. Se você não estabelecer uma política de valorizar a cultura alimentar, este é, provavelmente, um caminho sem volta”, ele conclui.

Nota da Redação: Atualização às 19h33 de 28 de janeiro de 2021. O entrevistado Marco Tulio 
Ospina é engenheiro agrícola, e não engenheiro agrônomo, como publicado originalmente. 
O texto foi corrigido.
Por Guilherme Zocchio

Matérias relacionadas