Com nove meses de atraso, governo cria protocolo voltado a doenças crônicas durante a pandemia

Brasil sofre com desmonte de plano de combate a doenças associadas às mortes por Covid-19

O governo Jair Bolsonaro levou nove meses para dar início a uma estratégia de atendimento às pessoas com doenças crônicas não transmissíveis em meio à pandemia. Problemas cardiovasculares e diabetes são as principais condições associadas às mortes por Covid-19 e estão, junto com o câncer, entre as principais causas de óbitos no país e no mundo. 

Mesmo diante da situação emergencial, uma série de medidas poderiam ter sido adotadas para evitar o que se convencionou chamar de sindemia, um neologismo que, nesse caso, define o encontro entre a pandemia de Sars-Cov-2 e doenças crônicas relacionadas a alimentação, tabagismo, álcool e inatividade física. 

A medida mais evidente para minimizar o impacto do Covid-19 no país seria a garantia de cuidados médicos especiais a pacientes com essas enfermidades na atenção primária de saúde. Apenas em novembro, quando o Brasil já ultrapassava a marca de 160 mil mortes e mais de 5,5 milhões de casos da doença, o governo federal criou um manual para organizar o atendimento para as pessoas com obesidade, diabetes e hipertensão arterial no SUS

Publicado em 3 de novembro, o protocolo orienta gestores de saúde e equipes de saúde da família a identificar, monitorar e orientar esses pacientes. Exatos nove meses depois de o governo brasileiro decretar emergência nacional de saúde pública veio a ajuda de R$ 221 milhões para que os municípios reforcem o atendimento na saúde primária, a porta de entrada do SUS. 

“Além do excesso de mortalidade por Covid-19, houve muitas mortes também por outras doenças crônicas. Mortes causadas pela não atenção e também pela associação ao Covid”, pontua Deborah Malta, pesquisadora de saúde coletiva e professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 

Somado à falta de coordenação e ao negacionismo da ciência, o país paga um preço alto pelo desmonte, praticado pelo governo Bolsonaro, do plano que deveria prevenir e combater essas doenças. Em 2011, Deborah esteve à frente da elaboração do Plano de Enfrentamento às Doenças Crônicas Não Transmissíveis, um amplo compromisso, criado no governo de Dilma Rousseff, com metas para enfrentar e deter, até 2022, a incidência dessas enfermidades. 

As metas nacionais propostas pelo plano envolviam diversos ministérios (alguns já extintos pelo governo Bolsonaro) e previam reduzir a prevalência da obesidade em crianças, adolescentes e adultos; aumentar o consumo de frutas e hortaliças; reduzir a ingestão de sal, o tabagismo e o consumo nocivo de álcool; e ampliar a prática de atividade física. 

No entanto, nos últimos cinco anos, houve uma reversão para pior nos indicadores de doenças crônicas e cresceu a incidência de obesidade, um problema que atinge as camadas mais vulneráveis e que caminha lado a lado com o aumento da desigualdade social. O aumento da obesidade gera um efeito cascata sobre outros indicadores de saúde relacionados à má alimentação e comportamento de risco, como hipertensão e diabetes, que também cresceram neste período.

Hoje, um a cada quatro adultos está obeso e cerca de 96 milhões de brasileiros estão acima do peso, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), recém-divulgada pelo IBGE. Essa fatia saltou de 22% para 26,8% em seis anos. “Havia sim um aumento do excesso de peso e da obesidade, mas não com essa força. Foi uma surpresa. Isso nos causa muita preocupação, por tudo que representa para os fatores de risco, com doenças cardiovasculares e diabetes, que já vinham em alta”, analisa Deborah. 

Fonte: PNS 2019

Com o agravamento da crise, medidas de austeridade e o subfinanciamento da saúde, em especial a atenção primária, houve uma inversão nos indicadores. “As metas da obesidade não serão atendidas [em 2022], assim como o aumento no consumo de hortaliças.” O aumento da atividade física e a redução no consumo de álcool e de tabaco seguem a mesma toada. “A partir dos anos de 2016 e 2017, vimos uma oscilação nas taxas e a tendência de crescimento da mortalidade por doenças crônicas no Brasil”, explica Deborah, que avaliou o alcance das metas propostas pelo governo brasileiro em estudo publicado no ano passado. A pesquisa faz projeções das tendências das taxas de mortalidade prematura por doenças crônicas e a prevalência de exposição a fatores de risco. 

O não cumprimento da meta de deter o crescimento da obesidade aparece com força também nos dados do Vigitel, pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde a partir de entrevistas telefônicas e que cobre um período maior, desde 2006. Em um período de 13 anos, desde que o levantamento começou a ser feito, a prevalência de excesso de peso em adultos aumentou de 42,6% para 55,4% e a de obesidade quase dobrou, passando de 11,8% em 2006 para 20,3% em 2019.  

Além disso, enquanto países da região deram passos importantes no desestímulo ao consumo de bebidas açucaradas (como refrigerante) e de alimentos ultraprocessados, o Brasil ficou estacionado. Em 2016, o Chile aprovou a adoção de sinais de alerta na parte frontal das embalagens para avisar sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras – medida que foi adotada por Peru, Uruguai e México. Já o México criou um imposto especial sobre refrigerantes e afins. No Brasil, essas bebidas são subsidiadas com o abatimento de uma série de tributos para estimular a produção na Zona Franca de Manaus. 

O Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, tem uma mensagem clara: evite ultraprocessados. Mas, ao longo dos últimos anos, lida com constantes pressões da indústria pela revogação do documento do Ministério da Saúde, que serve como base para a atuação de equipes de atenção primária. Recentemente, o Ministério da Agricultura somou-se à ofensiva, pressionando a Saúde a revisar a parte que diz respeito ao consumo de ultraprocessados. 

Mudanças no padrão alimentar, aumento no consumo de alimentos ultraprocessados e crescimento da obesidade ajudam a explicar por que a América Latina se tornou um epicentro da pandemia, concluem os autores do estudo “Obesidade e COVID-19 na América Latina: a tragédia de duas pandemias”.

A pesquisa alerta que países em desenvolvimento enfrentam um desafio ainda maior, devido à alta prevalência de doenças crônicas e desigualdades sociais, econômicas e ambientais que tornam mais difícil conter a disseminação do vírus.

Para esses autores, é fundamental alertar a população para os riscos da associação entre a obesidade e o Covid-19, já que evidências indicam que mesmo uma perda moderada de peso pode melhorar o estado de saúde e a capacidade de resposta a uma infecção.

A pesquisa sugere que governos dessa região adotem o quanto antes medidas regulatórias, como taxar e dificultar o acesso aos alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas, criar subsídios para a produção de frutas e hortaliças, e restringir a publicidade infantil de alimentos. Além de estimular a prática de atividade física mesmo durante o período de isolamento, em áreas abertas ou de forma remota, pela internet ou pela TV. 

O que era ruim piorou

No Brasil, o conjunto de retrocessos – somado à dificuldade em ter acesso a medicamentos e à descontinuidade no tratamento desses pacientes – prejudicou a capacidade de uma resposta mais eficiente para a crise de saúde imposta pela pandemia.

Um olhar para o período de isolamento social torna o quadro ainda mais preocupante: pesquisas recentes publicadas no Brasil e em diversos países mostram uma piora do comportamento de risco durante a pandemia, com aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, álcool e cigarros, e o crescimento do sedentarismo. 

“A tendência que observamos é de aumento no consumo de alimentos mais baratos, altamente calóricos e com menor aporte de nutrientes. Como consequência, temos uma alimentação nutricionalmente pobre”, explica Marcos Pereira, professor adjunto de epidemiologia do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. “O sobrepeso e a obesidade estão aumentando nas camadas mais vulneráveis justamente pela dificuldade de acesso ao alimento adequado, mais natural. Além disso, a obesidade pode coexistir com um conjunto de deficiências nutricionais e isso também vai impactar na gravidade de Covid-19, pois o estado imunológico vai sofrer influência direta da alimentação e do estilo de vida.”

O Índice de Massa Corporal (IMC) é uma medida importante para avaliar a chance de que o quadro de Covid-19 se complique, já que indivíduos com obesidade sofrem uma desregulação do sistema imune que dificulta a resposta de defesa do organismo contra o coronavírus.

O mesmo acontece com o diabetes, cujo risco associado aumenta em até 1,5 quando a doença está bem controlada e passa a ser 2,2 vezes maior quando não há o devido controle da glicemia, segundo estudo realizado pela Universidade de Oxford e pela London Schooll of Hygiene and Tropical Medicine. Os pesquisadores examinaram os registros médicos de 17 milhões de adultos e 10.926 mortes provocadas pela infecção pelo Sars-CoV 2.  

“Batemos na tecla de sempre: exercício físico e melhorar a alimentação, não tem como fugir disso”, afirma a endocrinologista Maria Edna, chefe da Liga de Obesidade Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ela aponta que o Brasil falhou na prevenção e no tratamento à obesidade, e chama a atenção para a falta de uma abordagem para esses pacientes durante a pandemia. 

“Diabetes, hipertensão e asma aparecem como fatores de risco, mas a obesidade não fica em evidência. Há muitos relatos de mortes de pacientes jovens que não tinham comorbidade, você olha a foto e a pessoa está no grau 3 de obesidade ou claramente tem algum nível de obesidade.”

Para a endocrinologista, deveria haver uma política de isolamento social pensada para as pessoas com obesidade. “Vemos campanhas pedindo aos idosos que fiquem em casa e se protejam, mas ninguém cuida dos pacientes com obesidade. Por outro lado, como recomendar que um quarto da população fique em casa?” 

Para o governo brasileiro, a responsabilidade pela interrupção do tratamento de doenças crônicas durante a pandemia é dos próprios pacientes.

“A gente sabe que nos últimos meses, por causa dessa orientação de fique em casa, muitas pessoas não procuraram os médicos e muitas doenças se agravaram. É fundamental que essas pessoas voltem para seus atendimentos (…) Os postos estão abertos”, disse o secretário de Atenção Primária, o médico ginecologista Raphael Câmara Medeiros, em entrevista coletiva no último dia 19.

Nomeado para a pasta em junho deste ano, Raphael tornou-se mais conhecido por seus posicionamentos alinhados à pauta ideológica do governo Bolsonaro, como a defesa da abstinência como política pública de educação sexual.  

Raphael Câmara Medeiros Parente | Foto: Reprodução

Invisibilidade

Enxergar a evolução do problema também desafia pesquisadores que se debruçam sobre os números da pandemia no Brasil e no mundo. Professor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), o epidemiologista  Cristiano Boccolini integra a equipe do painel Monitora Covid, da Fiocruz, que reúne dados e informações das secretarias estaduais de saúde sobre a pandemia. Ele explica que existem cinco bases de dados diferentes e muita interseção entre eles, o que dificulta uma visão mais clara da evolução do Sars-CoV2 entre os portadores de doenças crônicas. “Está tudo muito borrado ainda.” 

A pedido do Joio, Cristiano fez um recorte nos dados do sistema SIVEP GRIPE, onde são notificadas as hospitalizações por doenças respiratórias graves que tiveram diagnóstico clínico ou laboratorial de covid19. Entre 456 mil pessoas internadas com covid-19, 63,2% tinham algum fator de risco, sendo as cardiopatias (33,5%) e diabetes (25,3%) os fatores mais comuns. Desse total, apenas 12 mil pacientes tiveram peso e altura calculados, a melhor forma de averiguar se a pessoa tem ou não obesidade. Os dados foram extraídos no último dia 2 de novembro.  

“Entre esses 456 mil pacientes internados por covid, apenas 5% foram registrados com obesidade, o que está muito aquém da prevalência na população, que é de 26%. Se o padrão de notificação obedecesse ao da população, esse indicador teria que ser, no mínimo, de 26%. Isso se a gente não seguir o padrão mundial, pois pessoas com obesidade tendem a ser mais internadas em decorrência de Covid em comparação aos que não são obesos”, explica Cristiano. 

Entre esses 12 mil pacientes infectados que tiveram peso e altura calculados, a prevalência de obesidade é de cerca de 46%, ou seja, um a cada dois pacientes que tiveram complicações e precisaram ser internados estava obeso. Entre os pacientes hospitalizados que apresentam algum fator de risco, a proporção de morte foi de 44,3%, e entre os com obesidade e mais algum fator de risco, essa proporção foi de 44,5%. 

“Aparentemente a obesidade – e nem estamos falando do excesso de peso – se torna invisível para o olhar da pessoa que faz essa notificação. Cardiopatias e diabetes são visíveis no sistema, a obesidade não. Há uma invisibilidade dessa situação. E sem informação, não há ação. Isso pode dar a entender aos gestores e administradores da saúde que não é um problema que deve ser elencado como importante”, reflete Cristiano. 

Pesquisadores do mundo todo alertam para a necessidade de os países investirem em medidas para melhorar a qualidade da dieta alimentar e dos hábitos, aumentando assim a resiliência de suas populações durante essa e futuras pandemias. Mas, no Brasil, chama atenção a falta de iniciativas, no âmbito federal, para incentivar e viabilizar a alimentação adequada e saudável durante a pandemia. 

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro tocou no assunto pela primeira vez, em tom de deboche, ao mesmo tempo em que voltou a defender o tratamento precoce com o uso de medicamentos sem comprovação científica. “A maior prevenção para a Covid sabe qual é? É o preparo físico, estar bem de saúde, conseguir se alimentar bem. Nem todo mundo consegue se alimentar bem, tem gente que tem meios, mas é relaxado na alimentação. Correr de vez em quando, ficar menos fofinho”, disse o presidente. 

Nas orientações oficiais de prevenção à Covid-19 que constam no site do Ministério da Saúde, o tema aparece de forma sucinta e evasiva, em uma única frase: “Durma bem e tenha uma alimentação saudável”. No aplicativo oficial criado pelo governo brasileiro para orientar a população sobre os cuidados durante a pandemia, nenhum resultado é encontrado quando se buscam as palavras “alimentação”, “diabetes” ou “hipertensão”. 

Em resposta ao Joio, o Ministério da Saúde informou por meio de nota que o governo brasileiro pretende lançar no ano que vem uma campanha sobre os benefícios da prática de atividade física, a partir do Guia de Atividade Física para a População Brasileira, que deve ser lançado em dezembro. E que em 2021 retomará uma campanha contra a obesidade em adultos e crianças “com o intuito de incentivar o consumo de alimentos in natura e minimamente processados”, informa o texto. 

“A mensagem de ficar em casa é muito importante, mas não poderiam ter descuidado do acesso aos medicamentos e cuidados médicos para esses pacientes. O SUS foi a única coisa que salvou, de fato, nossa condução na pandemia e sua existência sai muito fortalecida nesse processo. Sem o SUS teríamos problemas muito mais sérios”, conclui.

Por Redação

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