Por que a compra do BIG pelo Carrefour deveria nos preocupar

Nosso livro mostra como a concentração de mercado prejudica concorrentes, fornecedores e a sociedade como um todo, ao privilegiar um sistema alimentar que não serve para produzir alimentos

O Carrefour anunciou hoje (24) a compra do Grupo BIG. Agora, o maior varejista do Brasil é dono do terceiro maior varejista. Antes, Carrefour e Pão de Açúcar tinham um faturamento equivalente aos 78 concorrentes seguintes, segundo o ranking da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). Agora, esse cenário desigual se agravará.

Em tese, a operação poderia ser barrada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), vinculado ao Ministério da Justiça. Mas já pode colocar as barbas de molho: o Cade nunca impôs qualquer dificuldade ao processo de concentração no setor supermercadista. O órgão alimenta a visão de que mais concentração é algo positivo para a sociedade porque, em tese, é uma maneira de garantir preços mais baixos — como mostramos em nosso livro Donos do mercado (Elefante e Joio, 2020), essa é uma ideia fundada em achismos. 

Nosso livro expõe, também, uma série de dimensões que são ignoradas pelo órgão público. A maior concentração torna inviável a vida de concorrentes e dificulta a sobrevivência de feiras livres, sacolões e iniciativas de comércio justo. Mais do que isso, prejudica escolhas alimentares. E não há qualquer evidência de que de fato garanta preços mais baixos. Num país assolado por inflação e miséria, a compra do Grupo BIG deveria nos preocupar.

Abaixo, publicamos um pequeno trecho do livro no qual apresentamos qual o ponto de vista do Cade diante de uma operação que concentra mercado.

Em junho de 2020, o Atacadão registrava 202 unidades espalhadas pelo país, contra 169 do Assaí. Juntos, Carrefour e Pão de Açúcar tinham 129 lojas de atacarejo só no estado de São Paulo. Os impactos sobre a concorrência, citados extensivamente neste livro, são difíceis de mensurar, mas inegáveis. Ainda assim, nenhum movimento das duas maiores varejistas acontece sem a anuência da principal autoridade de defesa da concorrência do país, o Cade. Em tese, compete ao Cade zelar pelos consumidores e garantir que as empresas brasileiras não abusem do poder econômico para prejudicar concorrentes ou tirá-los do mercado.

Nesse contexto, uma das mais importantes funções do Cade é impedir que os setores econômicos, quaisquer que sejam, fiquem concentrados nas mãos de umas poucas empresas. De acordo com a Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011, que estrutura a atuação do Cade, qualquer empresa que controle 20% ou mais de um mercado relevante infringe a legislação de defesa da concorrência. Há também violação quando “uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado”. Como veremos, a regra é frouxa e possibilita uma série de interpretações descabidas, mal-intencionadas, que contemporizam a concentração de mercado e o abuso de poder econômico.

Compreender esse ponto específico da apuração nos demandou muitas horas de leitura atenta e pragmática; de você, demandará apenas um pouco de paciência. Como de costume, vamos por partes.

No Brasil, sempre que uma empresa com faturamento anual superior a 750 milhões de reais deseja comprar outra empresa com faturamento superior a 75 milhões de reais, o poder público deve ser notificado. Fusões e aquisições do tipo dependem de uma autorização expressa do Cade, concedida depois da análise de um Ato de Concentração Econômica. Nesses atos, o Conselho julga o potencial impacto das aquisições para a concorrência naquele mercado específico. Mas sobram problemas.

As empresas interessadas precisam convencer o Tribunal Administrativo do Cade, instância do órgão que de fato julga os Atos de Concentração, de que a fusão é segura para a ordem econômica. Escritórios de advocacia especializados são contratados para tocar os processos. Todas as informações levadas em consideração no julgamento, contudo, são declaradas pelas próprias empresas, um contrato de confiança que pressupõe boa-fé do empresariado — uma especialidade das instituições brasileiras.

Além disso, o Tribunal é composto por um presidente e seis conselheiros indicados pela Presidência da República, com anuência do Congresso Nacional, para mandatos de quatro anos. Pela regra, os conselheiros devem deter notório saber jurídico e econômico; na prática, alguns deles são indicados políticos de padrinhos poderosos. Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro se viu obrigado a retirar a indicação de dois conselheiros reprovados pelo Senado. Os nomes haviam sido propostos pelos ministros da Justiça, Sergio Moro, e da Economia, Paulo Guedes.

O impasse com os senadores deixou o Cade sem quórum e obrigou o órgão a parar as atividades por mais de quatro meses, deixando vinte processos desatendidos. Bolsonaro reformulou finalmente a lista com indicados dos ministros Paulo Guedes, da Economia, e Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidência, além de nomes recomendados pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e por seu filho mais velho, Flávio Bolsonaro. Fica claro, portanto, que a composição do Tribunal Administrativo garante irrestrita independência às análises e decisões do Cade. Ou não.

Carrefour e Pão de Açúcar colecionam Atos de Concentração Econômica. A cada nova rede comprada, uma bênção do Cade. Todos esses documentos são públicos e podem ser acessados na base de dados do Conselho, mas também são extensos e confusos. Nós lemos pelo menos uma dezena deles, os mais importantes, que dizem respeito às principais aquisições feitas pelas duas empresas nos últimos vinte anos. Todas as operações foram aprovadas, sem exceção, mesmo as que resultavam em concentrações de mercado bem acima dos 20% permitidos pela lei — não raro passavam dos 50%. Nos piores casos, o enérgico Cade se limitou a aplicar restrições leves às redes: fechar uma unidade ou mudar a “bandeira” de uma loja (transformar um atacarejo em hipermercado, por exemplo).

Aqui, uma pausa necessária. Quando confrontadas com a alegação de que concentram excessivamente o mercado, as varejistas se defendem afirmando que não têm participação superior a 20%. De fato, quando consideramos o market share das redes em todo o território nacional, percebemos que Carrefour e Pão de Açúcar detinham, juntas, 32% do faturamento em 2019. A questão central do problema não é o número de lojas, mas a quem pertencem, onde estão e quanto dinheiro movimentam. Dos 378 bilhões faturados pelo autosserviço brasileiro em 2019, 38% (ou 147 bilhões) passaram pelo caixa das cinco maiores redes — a porcentagem seria bem maior se o Grupo BIG, do Walmart, divulgasse seu faturamento.

Mas um manauara não faz compras em Campo Grande, nem um carioca vai ao supermercado em Recife. Em um país como o Brasil, pensar na concentração de mercado considerando o território por completo é tolice ou desonestidade. Ao menos nesse ponto, o Cade é rigoroso: a concentração é analisada em “mercados relevantes” separadamente. Podem ser cidades inteiras, no caso de municípios pequenos e médios, ou regiões específicas de uma cidade. Na capital paulista, por exemplo, o Cade avalia os dados de treze mercados relevantes distintos. Em Santos, por outro lado, todo o território é levado em consideração.

Além disso, as lojas das duas maiores redes se aglutinam massivamente na região Sudeste e pouquíssimas ficam fora dos estados mais ricos. Das 475 unidades que o Carrefour tinha espalhadas pelo país em junho de 2020, 261 (ou 55%) estavam no estado de São Paulo. O segundo da lista era Minas Gerais, com 31, ou meros 6%. Acre, Rondônia e Amapá só tinham uma loja cada. Não era diferente com o Pão de Açúcar: 881 lojas no país, mas nenhuma em Rondônia, Roraima, Acre, Espírito Santo, Amapá e Rio Grande do Sul. Fora do Sudeste, praticamente só havia lojas em capitais: duas em Manaus, duas em Belém, uma em Palmas, sete em Curitiba. As bandeiras também se dividem de maneira desigual: os supermercados tradicionais ficam quase que exclusivamente no Sudeste, enquanto Norte e Nordeste recebem as lojas de atacarejo. Na Bahia, por exemplo, o Carrefour tinha dezoito lojas em meados de 2020 — todas sob a bandeira Atacadão.

Nos “mercados relevantes” considerados pelo Cade, a história é diferente. No Ato de Concentração apresentado para a compra do Atacadão, em 2007, o Carrefour indica que já detinha 21,6% do mercado em Santo André, no ABC paulista, antes da incorporação da loja que ficava na cidade. Ou seja, a concentração já estava acima do limite legal. Ainda assim, a compra foi autorizada sem restrições, o que elevou a concentração para 25%. O documento também apresenta dados sobre a participação do Pão de Açúcar, que detinha 25% do mercado em toda a cidade de São Paulo e 36,2% em Santos. Estas informações, é importante ressaltar, dizem respeito ao número de check-outs que as redes detêm em cada mercado. Essa é a medida mais comumente usada para calcular a concentração.

Os dados que o Pão de Açúcar apresentou ao Cade no processo de compra do Assaí são mais reveladores daquela distante realidade de 2007. No “mercado relevante de número treze” da cidade de São Paulo, que engloba uma parte da zona sul da capital, o grupo detinha 45,5% do mercado mesmo antes da consolidação da compra. Depois, bateria os 50%.

Para convencer os conselheiros do Cade de que a fusão não traria efeitos negativos à concorrência, os advogados da banca Barbosa Müssnich Aragão, que representava o Pão de Açúcar, usaram dois argumentos. Nos casos em que a concentração já era superior ao limite imposto por lei, como no “mercado treze”, defenderam a ideia de que a alta concentração é anterior à compra e um leve incremento não faria tão mal. Em outros casos, nos quais a fusão resultaria em uma concentração de 21% ou 22%, argumentaram que o valor é “pouco superior aos 20% previstos no Guia de Análise”. Em ambos os casos, os advogados se valem de uma lógica Tiririca, dizendo abertamente que “pior do que está não fica”. Afinal, o que é um copo d’água para um afogado?

“Se o cara tá com 50% do mercado e compra um cara de 3%, a princípio essa decisão não deveria ser aceita sem remédio”, admitiu Paulo Furquim de Azevedo, o ex-conselheiro do Cade com quem conversamos. “Não quer dizer que o Cade não tenha aceitado. O Cade erra. Num mercado desses é claro que piora a concorrência, mas já vi muito conselheiro engolir esse argumento.”

O conceito de concentração de mercado é simples, fácil de entender. Se algumas empresas dominam um determinado mercado, podem moldá-lo à sua maneira, manipular quem entra, quem sai, quem fica onde está. Ganham força para enriquecer os amigos, minar os inimigos e condenar à fome os fornecedores. Os dados de 2007 mostram que já havia uma dominância das duas maiores redes em diversos ambientes, mesmo quando a participação no mercado nacional era cerca de 2% menor para cada uma delas. Mas o que mostram os dados recentes? Não sabemos. Só podemos supor que a concentração vem aumentando gradativamente. Com o passar do tempo — e com a digitalização dos Atos de Concentração — as informações que as empresas repassam ao Cade estão cada vez menos transparentes, mais sigilosas.

Num Ato de Concentração de 2017, em que o Grupo Pão de Açúcar postulava a compra de duas unidades do Makro na cidade de São Paulo, os índices de concentração aparecem de maneira genérica: o Pão de Açúcar teria entre 30% e 40% do mercado em ambas as localidades. O número exato já não aparecia como nos processos da década anterior. Ainda que as informações fossem apresentadas de maneira pouco transparente, era óbvio que o grupo já concentrava mercado nas duas regiões. A companhia desistiu da compra de uma das unidades, mas levou a outra.

Três anos depois, em 2020, no Ato de Concentração referente à compra de trinta lojas do Makro pelo Carrefour, nenhum dado de concentração é apresentado. As informações ficam restritas às empresas e ao Cade. O que você, leitor, espera ler na decisão do Tribunal Administrativo indicado por Flávio Bolsonaro e companhia?


[1] brasil. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, e a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei nº 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1º dez. 2011, Seção 1, p. 1.

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