Por que passaremos a evitar a expressão ‘comida-porcaria’

O aumento brutal do estado de miséria do país nos fez repensar. Daremos prioridade à expressão “ultraprocessados”, que faz parte do nosso glossário desde a primeira reportagem

O Joio e O Trigo passará a evitar a expressão “comida-porcaria”. Nos últimos dois anos, por várias vezes discutimos dentro da equipe se deveríamos seguir a utilizar esse termo ou não. A cada uso da expressão, apareciam críticas e elogios; na maioria das vezes, com bons argumentos a favor e contra. Conversamos com outras pessoas, lemos textos, refletimos bastante. 

Inicialmente, havíamos decidido manter o uso, embora sem escrever um posicionamento. Mas o aumento brutal do estado de miséria do país nos fez repensar. Hoje, a maioria da população brasileira está obrigada a comer biscoito, macarrão instantâneo, salsicha e margarina – e até isso começa a parecer um luxo. Então, entendemos e levamos em conta o argumento de que a expressão “porcaria” soa ofensiva e faz aumentar a tristeza de milhões de pessoas.

Ah, mas já não era assim antes? Não. Os dados populacionais que temos são da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE. Esses dados mostram que, no geral, em 2017-18 os mais pobres consumiam consideravelmente menos comida-porcaria que os estratos de maior renda (metade, para ser mais preciso). 

Nesse pequeno intervalo, porém, muita coisa mudou. A intensificação de uma agenda econômica cruel por Jair Bolsonaro-Paulo Guedes já estava causando severos estragos quando chegou a pandemia. Esta é uma diferença relevante na atual onda de miséria no Brasil: em outras ocasiões, arroz e feijão ainda eram os alimentos mais baratos e disponíveis, mas, agora, ao que tudo indica, o país está acelerando uma transição alimentar que agrava assimetrias, ao escolher os corpos de pessoas pobres como alvo de múltiplos problemas de saúde. 

Antes, usávamos a expressão “comida-porcaria” como uma maneira de explicitar que, sim, as pessoas precisam saber que estão comendo porcaria. E esse alerta é importante para que, como sociedade, fomentemos a discussão daquilo que é preciso fazer para garantir que sigamos a ser o país do arroz com feijão. 

A nossa escolha por evitar a expressão não muda em nada o fato de que as pessoas não deveriam estar obrigadas a atentar contra a própria saúde. E não muda em nada o fato de que deveria haver regras para evitar que a publicidade induza ao engano. Ou seja, evitar a expressão não faz com que o Joio deixe de se posicionar na defesa de uma ampla agenda de políticas públicas voltadas à promoção da alimentação adequada e saudável para todas e todos – hoje, essa agenda tem uma emergência brutal. 

Uma expressão mais completa

A partir de agora, daremos preferência ao uso da expressão “ultraprocessados”, que usamos com frequência desde a criação do Joio, em 2017. Essa escolha tem alguns motivos de ser:

  • Ultraprocessados é um termo mais amplo. Porcaria é uma expressão de uso popular que designa, no nosso imaginário, aqueles produtos que costumavam ser consumidos no intervalo entre refeições: biscoitos, chocolates, sorvetes, salgadinhos. Ultraprocessados, por sua vez, pode ser uma expressão mais completa para dar conta da ofensiva industrial para substituir alimentos frescos e nossa culinária tradicional. Pratos congelados de péssima qualidade, margarina no lugar de manteiga, molhos prontos e uma série de produtos têm tentado fazer com que cozinhar se transforme numa mera abertura de pacotes. 
  • A expressão ultraprocessados vem se tornando mais e mais popular. Quando iniciamos nosso trabalho, o termo causava estranheza, e o Guia Alimentar para a População Brasileira tinha apenas três anos de vida – agora já são sete. Não apenas em nossas redes e reportagens o termo tem sido cada vez mais assimilado, mas também em reportagens voltadas a um público mais amplo. Um sinal dessas mudanças pôde ser visto recentemente, quando o Globo Repórter dedicou uma edição completa a abordar os malefícios causados pelos ultraprocessados.
  • Fundamentar-se em evidências científicas sempre foi parte fundamental do nosso trabalho. Nos últimos anos, a classificação NOVA, cunhada em 2009 pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, passou pelo principal avanço desde que foi criada. Variadas pesquisas mostraram que um maior consumo de ultraprocessados pode estar associado a maior risco de câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e mortalidade, entre outros. Em 2020, pelo menos 80 artigos científicos usaram a expressão “ultra processed”, num crescimento que vem se dando ano a ano. 

Assim como a ciência, a língua portuguesa está sempre em transformação. Adotar essa posição agora não significa que no futuro isso não possa ser revisto. Seguimos trabalhando por um sistema alimentar democrático e justo, no qual imitações de comida não são propagandeadas e reconhecidas como comida de verdade. 

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