Quando a terra não produz comida

Ao lado de ideias de modernidade e higiene, o boom da produção de celulose no Brasil enterrou a cultura caipira sob um lençol de eucaliptos e pinus do tamanho do Líbano

“Hoje tô sozinho com Deus”, diz seu Bertino, e olha em volta. Em frente, o que há é uma roça com poucas árvores que resistem numa terra seca em que nada vinga. Do lado direito, eucaliptos…. “Nós plantava roça, plantava tomate, milho, feijão. Agora não tem mais nada. Não tem jeito de plantar mais.” 

Não é questão de querer: é que a terra já não dá para comida. E já não há esse detalhe que há milênios faz a diferença na agricultura: seres humanos. Esse é o destino de muitas áreas de florestas plantadas: as pessoas vão embora, depois de alguns anos são os eucaliptais que se vão, mas os estragos ficam. 

Falar com seu Bertino, que na verdade se chama Izaltino Lobo de Oliveira, foi a nossa segunda opção. A primeira era conversar com a companheira dele, Benedita de Morais Oliveira. Seria a retomada de um papo que tivemos dez anos antes, na casa dela, em São Luiz do Paraitinga, uma cidadezinha no interior de São Paulo. Mas chegamos tarde: dona Dita morreu em 2019.

“A Dita morreu meio envenenada”, conta seu Bertino, num tom de quem encara a morte da companheira com naturalidade. Mas não foi natural. “Ela pegou o veneno. Se eu estivesse aqui eu entrava também. Ele [o funcionário da Votorantim] pegou a bomba de veneno e colocou dentro do poço de água que vinha aqui. E acertou que nessa hora a Dita bebeu água. Deu um tranco na cabeça dela, e ela ficou tonta, tonta, tonta.”

Isso foi por volta de 2010. “O médico falou: ‘Enquanto o veneno estiver transitando no corpo, você vai viver. Quando parar, você não vai aguentar’.” Quando conversamos pela primeira vez com dona Dita, ela deu uma descrição parecida. Naquele momento, como nos confirmou o médico, já sofria de transtornos físicos e psicológicos causados pelo veneno usado na produção de eucaliptos. 

Não era o único caso, mas talvez tenha sido uma rara exposição aguda aos agrotóxicos, capaz de causar problemas imediatos: via de regra, os danos se produzem por uma exposição lenta e prolongada, muito mais difícil de detectar.

Papelão no berço da cultura caipira

A cultura de eucalipto e celulose no Brasil é como todas as outras monoculturas: tudo começa a crescer durante a Revolução Verde, nos anos 1960 e 1970, e explode nos anos 1990, quando as terras do país são totalmente direcionadas à exportação. Hoje, o Brasil é, de longe, o maior exportador de celulose, e o segundo maior produtor. São dez milhões de hectares com eucalipto e pinus, o equivalente ao tamanho da Jamaica ou do Líbano – muito ou pouco? Você decide. 

Hoje, o Brasil é, de longe, o maior exportador de celulose, e o segundo maior produtor. São dez milhões de hectares com eucalipto e pinus, o equivalente ao tamanho da Jamaica ou do Líbano

Em 2010, num domingo quente de janeiro, fomos até a casa de Wagner Giron de la Torre, um defensor público que atua na região de Taubaté, que inclui São Luiz do Paraitinga. Dez anos mais tarde, presos pela pandemia, nos encontramos no Zoom. À distância, ele parece igual, no físico e no ideológico, com uma fala marcada pelo sotaque caipira carregado, pela ênfase em algumas palavras e por comentários ácidos sobre os poderes com que se confronta dentro dos tribunais. 

“Antes, nas comunidades campesinas do fundo do Vale do Paraíba, os agricultores desconheciam os impactos hídricos, os impactos de aumento de desertificação do solo, os grandes impactos de projeção de toneladas e toneladas de venenos, pesticidas, químicos nos solos, e o efeito deletério desse mal no cultivo”, diz. “Quase ninguém hoje desconhece. Muita gente que tem contato com a zona rural sabe que, ao contrário do discurso dessas corporações, isso não é mito.”

Naquela época, muita gente em São Luiz nos contava da propriedade do Zinho Mineiro. Era um lugar onde, antes da chegada dos eucaliptais, trabalhavam centenas de pessoas, e onde se cultivava boa parte dos alimentos consumidos por ali. Algumas pesquisas feitas nos anos seguintes mostram a transição de uma cultura de produção e consumo local para algo totalmente diferente, uma terra utilizada para cultivar árvores que resultarão em papel, cartolina, papelão utilizados na China, nos Estados Unidos e na Europa. A cidade foi se tornando mais dependente dos alimentos trazidos de fora, comprados em supermercados.

Vista parcial da cidade de São Luís do Paraitinga (SP) – 1955. Foto: Nilo Bernardes e Tibor Jablonsky (Arquivo IBGE)

O caso de dona Dita marca uma transição simbólica dessas relações. Ela era famosa por fazer um dos melhores requeijões de corte de São Luiz, que é um dos muitos itens da culinária caipira. É como se a tensão entre monocultura e cultura caipira se concretizasse em miniatura na vida dela – nesse caso, na morte. Ao longo de dois séculos, o avanço do café, da pecuária e, mais recentemente, do eucalipto transformou o Vale do Paraíba, no interior do Estado de São Paulo, e o sul de Minas Gerais. 

Ao longo de dois séculos, o avanço do café, da pecuária e, mais recentemente, do eucalipto transformou o Vale do Paraíba e o sul de Minas Gerais

Essa região é justamente o berço da cultura caipira, que ocupava boa parte do território brasileiro. Uma cultura marcada por bairros rurais isolados nos quais as relações se davam na base do compadrio, e não do dinheiro. No qual floresceu uma culinária que tem no feijão, no milho, na mandioca e na carne de porco os elementos centrais. E em tudo o que é derivado disso: o fubá, o polvilho, a banha de porco. 

A culinária caipira é uma das bases para a formação da cozinha brasileira. E, claro, essa culinária caipira absorveu muito da culinária dos guaranis e dos tupis. No formato do fogão, feito no chão com pedras encaixadas, e no hábito de cozinhar de cócoras. Acima de tudo, no culto ao milho.

Na pressa do paulista

Na virada para o século 20, a cidade de São Paulo precisava inventar um mito. Uma ode ao progresso. A população havia se multiplicado por oito entre 1870 e 1900, e quintuplicaria até 1940, para chegar a 1,3 milhão – hoje, são 12 milhões. O trabalho se converteu no motivo de ser, um orgulho traduzido em frases ainda vigentes, como “São Paulo é a locomotiva do Brasil”. 

E, então, a cidade aprende a odiar o caipira, que se transforma no sinônimo do atraso. O antropólogo Claude Lévi-Strauss observa, no livro Tristes Trópicos, como lhe cai mal essa elite paulistana durante o período em que esteve como professor da Universidade de São Paulo, nos anos 1930. Uma elite contraditória, porque depende totalmente do dinheiro vindo da agricultura, mas tem ojeriza ao caipira.

Na década de 1920, São Paulo iniciou a construção de um novo mercado municipal, que hoje em dia é ponto turístico gourmet. Naquela época, a intenção era erguer um prédio imponente para oferecer uma alimentação “moderna”, com itens importados e caros. Quando o novo mercado foi inaugurado, nos anos 30, a prefeitura desativou o Mercado dos Caipiras, onde pessoas da zona rural vinham oferecer alimentos. As fotos que sobraram dessa época mostram uma estrutura bem mais simples, com barracões apinhados de caixotes de madeira, ruas de pedra e objetos jogados pelo chão. 

Mercado dos Caipiras. Foto: Arquivo CMSP

Também nessa época as quitandeiras, ou quituteiras, estavam desaparecendo das ruas. Elas comercializavam algumas iguarias da culinária caipira ou da cozinha trazida pelos escravizados, que agora passavam a ser desprezadas ou consideradas sujas, anti-higiênicas. São Paulo se constrói assim: sobre a demolição do passado. 

Um personagem emblemático nessa construção da aversão ao caipira é o Jeca Tatu. Ele foi criado por Monteiro Lobato, que nasceu em 1882 em Taubaté, bem perto de São Luiz do Paraitinga. Lobato olha a decadência do café no Vale do Paraíba e escolhe o caipira como alvo de suas frustrações. 

O Jeca é sempre representado como o chucro, o atrasado, aquele que não quer trabalhar. Monteiro Lobato ficou obcecado com a ideia de que o grande problema do Brasil eram as verminoses e a doença de Chagas. Ele dizia que as pessoas eram preguiçosas, e eram preguiçosas por causa dessas enfermidades. Logo, resolver o problema era apenas uma questão de vontade do poder público em impor medidas sanitárias – por exemplo, proibir o pé descalço, que é uma forma de transmissão de verminoses.

O Jeca é sempre representado como o chucro, o atrasado, aquele que não quer trabalhar

Uma parte do sucesso do Jeca se deve a uma campanha de publicidade bancada pelo Biotônico Fontoura. O fabricante, que era amigo de Monteiro Lobato, comprou os direitos da história do Jeca e passou a imprimir exemplares a torto e a direito. Essas cartilhas vinham com propagandas dos produtos e traziam a ideia de que o problema de verminose do Jeca se resolvia com o biotônico. Tinha até uma espécie de antes e depois do Jeca. O livro Problema Vital, Jeca Tatu e Outros Textos fala que foram 100 milhões de exemplares impressos até 1982 – naquele ano, para se ter uma ideia, o Brasil tinha 120 milhões de habitantes. 

O Jeca era um sujeito que, nas palavras do Monteiro Lobato, “vivia na maior pobreza”, e “dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis, nem roupas, nem nada que significasse comodidade”. A partir especialmente do século 19, as observações sobre a vida dos caipiras passam a ter como referência as cidades grandes. 

Dois aspectos eram centrais: o controle do tempo e a organização do trabalho. Na zona rural, o tempo é o tempo agrícola: o que importa são as semanas, os meses e os anos. Na cidade, o minuto e o segundo passam a ser relevantes, porque regem as relações sociais, como a escola, o transporte público e a fábrica. São Paulo adota como nenhuma outra cidade brasileira a máxima de que tempo é dinheiro – e, então, as horas livres do caipira se tornam motivo para repulsa. 

Existe uma incompreensão sobre os pilares dessa cultura. O caipira é um sitiante, ou seja, alguém que mora numa fazenda em troca de cultivar a terra e entregar parte da produção ao proprietário. Isso faz toda a diferença: como tinha direito a uma área pequena, o caipira não consegue criar vacas, por exemplo, nem tem motivo para estabelecer cultivos de longo prazo. 

Por que construir uma casa elaborada se você pode ser expulso a qualquer momento? Como plantar árvores que demoram anos a dar frutos? O milho, o feijão, o arroz são culturas que se casam perfeitamente com essa instabilidade da vida caipira. E assim vai se formando a culinária brasileira. 

O milho, o feijão, o arroz são culturas que se casam perfeitamente com essa instabilidade da vida caipira. E assim vai se formando a culinária brasileira

Comida servida no fogão à lenha. Foto: Acervo do Instituto Chão Caipira.

Monteiro Lobato, que olhava para o caipira com a lógica de um fazendeiro febril por progresso, não consegue entender a situação: “O Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas.” 

Um belo dia, o Jeca vai ao médico. E a vida muda completamente.

– Você sofre de ancilostomíase. 

– Anci… o quê? 

– Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita. 

– Essa tal maleita não é a sezão? 

– Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é a mesma coisa, está entendendo?

O problema está resolvido, mas o Jeca sai do consultório com uma recomendação claríssima: “Daqui por diante não duvide mais do que a Ciência disser.”

A preguiça do Jeca desapareceu. Os vizinhos até se espantam, e chegam a falar pra pegar mais leve, mas agora ele estava cheio de “ideias americanas”: ele queria enriquecer. A fazenda passa a ser toda automatizada. Ele vai acumulando, criando fortuna, expandindo. E, entre muitas coisas, Jeca resolve plantar eucaliptos. 

Um museu caipira

A cultura caipira é uma antítese da cultura do progresso que se expandiu com toda a força nas sociedades latino-americanadas do pós-guerra. São pessoas que praticamente não precisam de dinheiro para viver. Que estão acostumadas a cultivar os próprios alimentos, fazer as próprias roupas, criar as próprias ferramentas. E que não têm pressa: que podem ficar um dia inteiro de papo pro ar. 

Acontece que o Vale do Paraíba está entre as duas maiores cidades brasileiras. Então, tornou-se estratégico para o avanço de monoculturas, primeiro, e da indústria, depois. Quanto mais o paradigma do desenvolvimento ganhava território, mais preciosa se tornava São Luiz. “O último reduto caipira”, promete a prefeitura no slogan oficial da cidade, como se apresentasse uma espécie de museu a céu aberto.

“O que caracteriza essa lavoura típica de São Luiz são práticas patrimoniais, práticas tradicionais que, em boa medida, foram herdadas dos índios”, comenta o antropólogo Carlos Brandão, que viveu na cidade na década de 80. “Então era uma cultura mais próxima do mundo indígena do que do mundo branco, nos costumes, na comida… Em comparação com as cidades vizinhas, que eram muito colonizadas pelo café, que se italianizaram muito depressa.”

São Luiz é realmente pitoresca. Uma cidadela de 10 mil habitantes, um casario colonial muito bem conservado, uma meia dúzia de ruas de pedras, um rio que margeia, limita, alaga e sufoca essas casas. Um desses povoados onde se escuta o sino da igreja, e onde o sino da igreja ainda tem significados: nascimento, morte, horário, missa, festa.

Plantação de tomate. Foto: Acervo do Instituto Chão Caipira.

As pessoas da metrópole chegaram atraídas pelo Carnaval. Assim como preservou a cultura caipira, a cidade conservou um Carnaval de marchinhas jocosas, animadas. Mas logo a gente da cidade grande se deu conta de que São Luiz é muito festeira: os habitantes dizem que têm mais festas do que dias do ano. 

A mais interessante, e talvez a mais importante do ponto de vista da cultura caipira, é a Festa do Divino. Importada das festividades medievais europeias, e muito comum nas cidades paulistas, tem elementos totalmente alheios à sua realidade, como um rei e uma rainha que precisam usar roupas quentes que não têm nada a ver com nosso calor. 

Tradicionalmente a celebração durava semanas, e a cada ano uma família era escolhida para abrigar o Divino: as portas ficavam abertas dia e noite, sempre com comida à disposição de quem chegasse. No último dia, todos se encontravam no mercado municipal para preparar e comer o afogado, um prato de carne, normalmente acompanhado de arroz. Esse não é um aspecto menor: a comida, que alguns têm como curativa, era fornecida por quem tinha bois para serem mortos e divididos.

Mas, então, um festejo que deveria celebrar a colheita passa a ser uma espécie de teatro do passado, porque com a chegada do eucalipto a produção de alimentos vai se tornando mais escassa, a ponto de serem raros os proprietários que ainda têm condição de doar os bois do afogado. 

“Antigamente, acabava uma festa, a gente saía a cavalo pelos bairros. Vinte e tantos anos atrás se perdia três ou quatro dias no bairro de tanta casa que tinha”, conta Marcelo Toledo, testemunha e ator dessa história. 

Morador de São Luiz, ele foi vereador por três vezes, e em cada uma delas buscou discutir a questão do eucalipto. “Você vai vendo que também colabora para esvaziar a zona rural. Não é interessante para o município de jeito nenhum uma plantação tão grande.” Na primeira vez, Marcelo tentou aprovar uma legislação municipal para exigir um estudo de impacto ambiental a cada novo plantio. Não deu. Foi então que ele buscou o defensor público Wagner Giron.

No final dos anos 2000, a Defensoria estava nos primórdios da atuação em São Paulo. O foco das preocupações eram as áreas urbanas, geralmente lidando com temas como divórcios e guarda de crianças, direito à moradia adequada, defesa de presidiários. Uma ação por questões ambientais representava algo totalmente novo e inesperado. 

“Nós não tínhamos muita experiência também de como fazer. Fomos construindo esse conhecimento no curso desses processos todos”, lembra Wagner. Em alguns casos, ele obteve liminares para frear o plantio, mas muitas outras vezes não funcionou.

“Olhando hoje, percebi institucionalmente que o Judiciário brasileiro infelizmente não é a melhor instância para questionar esses temas tão complexos e estreitos a esse segmento do capital, que exauriu recursos naturais para a produção de commodities em busca de lucros extraordinários, deixando um passivo socioambiental incomensurável no país. O Judiciário não está preparado para isso.”

Ajuda estatal

No final dos anos 1960 foi aprovada uma mudança nas leis federais para permitir que o eucalipto e o pinus fossem usados como madeira de reflorestamento. Durante duas décadas, o governo garantiu um abatimento de 50% no Imposto de Renda sobre os valores aplicados nesses plantios. 

Segundo a tese de doutorado “Eucalipto, água e sociedade”, de Clarissa de Araújo Barreto, o Brasil passou de 20 empresas reflorestadoras para 500 num espaço de menos de dez anos. Foram 312 mil hectares plantados por ano, em média, entre as décadas de 70 e 80.

O Brasil passou de 20 empresas reflorestadoras para 500 num espaço de menos de dez anos

Depois disso, não é que o Estado tenha deixado de ajudar. Bem longe disso. O setor de papel e celulose está entre os maiores clientes do BNDES. A Suzano fica na oitava posição na história do banco público, com 13 bilhões de reais emprestados. A Klabin vem em nono, com 12 bilhões. Fusões e aquisições foram mexendo com os nomes das corporações e concentrando mercado. 

O setor de papel e celulose está entre os maiores clientes do BNDES

Em São Luiz, a chegada dessas empresas foi um forte elemento de desarticulação. De esvaziamento dos bairros rurais. De perda de identidades. “Pode ser que não quebre totalmente, mas ela vai rompendo, vai desmantelando os vínculos. Cheguei a ver várias capelas que eram locais de reza, de devoção, de confraternização, de diversão da sociedade dos caipiras, que foram se perdendo”, recorda Marcelo. 

O eucalipto chegou a ocupar em torno de 5% do território do Vale do Paraíba. E quase 15% de São Luiz. Essa árvore desconhece obstáculos e avançou até mesmo sobre áreas montanhosas que haviam escapado do café e da pecuária.

Se antes as terras de qualquer pessoa podiam ser atravessadas para chegar até capelas, rios e nascentes, agora eram de propriedade das corporações que haviam arrendado ou comprado grandes áreas. “Aquela coisa bem do empresário, que tem que produzir. Já não respeitava o dia de santo, o dia de guarda. Às vezes todo o mundo tinha que trabalhar Sexta-Feira Santa, o que é uma coisa não muito boa para o pessoal da zona rural”, lamenta Marcelo.

Quem está certo

Hoje em dia é impossível imaginar a vida sem papel. Do papel higiênico às embalagens na qual praticamente qualquer coisa é transportada, precisamos que essa indústria exista. A questão está no tamanho, que por sua vez altera todo o impacto. 

As florestas de eucaliptos ficaram conhecidas como “desertos verdes”. Porque é isso que são. Árvores plantadas a distâncias geométricas, banhadas de venenos que sufocam o solo e afastam os animais, e que praticamente não dependem de seres humanos. “Aqui tinha passarinho. Hoje cê nem vê cantar mais. Matou tudo. Tinha uma tatuzada. A gente pegava. Isso acabou tudo”, conta seu Bertino.  

Em 2014, as várias associações das corporações de florestas plantadas se aglutinaram na Indústria Brasileira de Árvores. Melhor dizendo, Ibá, apresentada como uma “reinterpretação livre e sincera” dos idiomas tupi-guarani:

“Para os indígenas e para nós, ibá significa frutos. Frutos na dimensão econômica: toda a riqueza que vem da árvore. Madeira, painéis de madeira, pisos laminados, celulose, papel, biomassa, carvão vegetal, microfibras, matérias-primas não fósseis, nanopolímeros e muito mais. Frutos na dimensão social: fixação do homem no campo, capacitação produtiva, trabalho e renda, formação de futuras gerações com nova perspectiva e mais qualidade de vida, promoção de desenvolvimento humano e social. Frutos na dimensão ambiental: recuperação de áreas degradadas, captação de carbono, produção de água pelo reflorestamento, conservação de florestas naturais, fortalecimento da biodiversidade.”

Muitas comunidades se queixam de que a planta drena a água do entorno, enquanto as empresas se defendem dizendo que isso é mito. Nós lemos a produção científica para tentar entender se há um consenso. Em certos aspectos, há, como veremos. 

Conversamos com Rildo Moreira, pesquisador na Estação Experimental de Ciências Florestais Itatinga, no interior de São Paulo. A área de 2.000 hectares é uma fazenda de eucalipto há 70 anos, e hoje é utilizada pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, da USP. 

O impacto sobre a água. Sobre o solo. A seleção das melhores variedades. A adequação a diferentes climas. Tudo isso é pesquisado por essa turma. O próprio curso de engenharia florestal da Esalq foi criado em 1974 para lidar com essa demanda de uma cultura que estava crescendo exponencialmente. 

Existem mais de 700 variedades catalogadas de eucalipto, mas, como se dá em qualquer cultura voltada à exportação, são utilizadas apenas aquelas que têm uma produtividade bem alta. 

O que Rildo diz, e o que a gente encontrou na produção científica, é que o eucalipto pode ter esse papel de sugador de água, mas tudo depende da maneira como é plantado e de onde ele é plantado. Um índice de chuvas em torno de 1.000 milímetros por ano é suficiente: boa parte das regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte do Brasil consegue dar conta. 

Mas há alguns problemas. A densidade de plantio pode ser muito elevada. E o tempo de corte faz toda a diferença. “O pessoal começou a se esquecer de que, de onde tira e não põe, uma hora falta. E foi isso o que aconteceu”, diz Rildo. Segundo ele, em muitas áreas o corte acontece entre cinco e sete anos, o que é razoável, mas não é o ideal: sua opinião é de que o correto seria passar a pelo menos dez anos. Para piorar, há casos em que o corte é feito antes dos três anos, o que atrapalha o ciclo de reposição de nutrientes. “Existe uma deposição permanente de folha de eucalipto que cai, que decompõe, e isso volta para o sistema, o que aumenta muito a matéria orgânica no solo.”

Em outras palavras, a situação poderia ser melhor. Olhando os dados do IBGE, vemos como eucalipto e pinus se deslocam rápido pelo território. O ciclo do Vale do Paraíba parece estar em decadência, embora o estado de São Paulo ainda tenha muitos plantios. Em São Luiz, muitas áreas de eucaliptais estão abandonadas. E não há sinal de que voltem a ser cultivadas, porque as terras estão esgotadas. Viraram um lamaçal.

A bola da vez é o Mato Grosso do Sul, onde a área plantada quadruplicou entre 2009 e 2019. Seguindo o exemplo do boi, do milho e da soja, os plantios decidiram pegar a grande marcha rumo ao oeste. Num cenário de desmonte das leis ambientais, não é surpresa se as bordas da Amazônia se tornarem a nova frente de expansão. 

A bola da vez é o Mato Grosso do Sul, onde a área plantada quadruplicou entre 2009 e 2019

Em São Luiz, dona Dita morreu sem direito a indenização numa ação movida contra a Votorantim. Wagner espera sentado pelo desfecho dos processos movidos há mais de uma década. Na maioria dos casos, falta apenas uma perícia para calcular os valores que devem ser pagos pelas empresas às populações afetadas. Segundo o defensor público, o custo dessas perícias, entre R$ 200 mil e R$ 400 mil, é algo que o governo estadual se recusa a pagar. Marcelo tenta converter os eucaliptais abandonados em parques. E seu Bertino vive sozinho, com Deus. 

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