Da fazenda à gôndola

Agronegócio se une ao lobby da indústria alimentícia e dos supermercados e, juntos, defendem pautas e até compartilham parlamentares


Com toda a pompa e circunstância, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) reuniu no dia 17 de junho alguns dos lobbies mais poderosos do país para debater as estratégias e objetivos comuns do setor de abastecimento para os próximos anos. Primeiro de uma série de três encontros que têm como foco a criação de uma estratégia unificada de governança ambiental, social e corporativa (ou ESG, na sigla em inglês), o 1º Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento foi prestigiado por empresários, líderes setoriais e pelo primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro. 

Participaram da plenária de abertura os ministros Paulo Guedes, da Economia, Tereza Cristina, da Agricultura, e João Roma, da Cidadania, além do presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), Augusto Pestana. Investigado por beneficiar exportadores de madeira ilegal na Amazônia, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, era outra presença ilustre — dias antes de sair do governo — confirmada entre os debatedores, mas declinou de última hora por “problemas técnicos”. 

Com patrocínio dos frigoríficos JBS e BRF e de multinacionais como Carrefour e Ambev, o evento sedimentou uma nova etapa na união entre os interesses do agronegócio, da indústria e do setor de distribuição em torno de pautas como a autofiscalização de unidades processadoras de alimentos, da flexibilização nas regras de validade e na redução de impostos para toda a cadeia de abastecimento. 

Entre as quinze entidades de classe unidas em torno da iniciativa, cinco pertencem diretamente ao agronegócio. A Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), a Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho) e a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) são mantenedoras do Instituto Pensar Agro (IPA), think thank responsável por custear as atividades da bancada ruralista em Brasília. 

Também fazem parte da coalizão a Associação Nacional dos Distribuidores de Insumos Agrícolas e Veterinários (Andav) e a CropLife Brasil, organização de defesa da indústria de transgênicos e agrotóxicos criada em 2019 por Christian Lohbauer, ex-executivo da Bayer e candidato à vice-presidência na chapa de João Amoedo (Novo) em 2018. 

Mas os laços entre os três segmentos da cadeia de abastecimento não param por aí. Eles compartilham pautas, atuam em conjunto e dividem até mesmo alguns parlamentares. 

Com 280 parlamentares, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) é, de longe, o grupo de interesse mais poderoso do Congresso. Em atividade desde 2002, é também uma das mais frentes mais longevas de Brasília, servindo de exemplo para outros lobbies que ali circulam. 

É o caso, por exemplo, da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Comércio Serviço e Empreendedorismo. Assim como a FPA, a Frente CSE, como é chamada, foi criada para congregar os interesses do setor privado, canalizados pela União Nacional de Entidades do Comércio e Serviços (Unecs), grupo liderado pela Abras e composto por outras seis entidades: a Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores (Abad), a Associação Nacional de Materiais de Construção (Anamaco), a Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB), a Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop), Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) e a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL). 

“Somos a voz dos empresários e a Frente é a ponte que transforma nossos pleitos em decisões e projetos”, resume o presidente da Unecs George Pinheiro. 

As ligações entre as duas bancadas não ficam apenas na aparência. No lançamento da Frente CSE, em 2015, realizado durante um encontro entre dirigentes varejistas, o então presidente da Abras e coordenador da Unecs, Fernando Yamada, dono da rede de supermercados homônima, declarou ter se inspirado no modelo da FPA: “Nós da Unecs estamos copiando o bom exemplo da Frente Parlamentar da Agropecuária e vamos criar um instituto para dar todo o subsídio e estruturação a essa Frente”, declarou. Ele se referia ao Instituto Pensar Agro (IPA), que administra os recursos de 46 associações setoriais, pagos por meio de contribuições mensais, e os destina para a assessoria parlamentar da bancada ruralista, além de custear as reuniões do grupo, realizadas às terças-feiras em uma mansão no Lago Sul, em Brasília. 

O instituto planejado por Yamada nunca saiu do papel, mas a troca de cortesias entre os dirigentes se manteve nos anos seguintes. Tanto Yamada como seus sucessores tornaram-se figurinhas carimbadas em cerimônias da FPA. Em 2019, a frente agropecuária apoiou um requerimento do deputado João Roma (PRB-BA), hoje ministro da Cidadania, para convocar os dirigentes da Unecs em audiência pública para discutir a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45/2019, da reforma tributária

As duas frentes dividem também seus membros. Em março de 2019, foi anunciada a nova diretoria da Frente CSE, em cerimônia que contou com a presença do vice-presidente Hamilton Mourão, além, é claro, dos presidentes da Unecs e da Abras. Dos 22 parlamentares que coordenam a frente do setor de comércio, vinte são também membros da FPA. Destes, seis compartilham cargos executivos nas duas organizações. 

Encontro reuniu alguns dos lobbies mais poderosos do país para debater as estratégias Foto: divulgação Abras

“Aqui o produtor encontra respaldo”

Um caso claro dos interesses convergentes entre os dois blocos é o do próprio presidente da CSE. Filho do ex-senador paraibano Efraim Morais, dono de 1.314 hectares no estado, o deputado Efraim Filho (DEM-PB) é um grande apoiador da regularização das vaquejadas e compôs, no ano passado, a “tropa de choque” que tentou suspender a proibição do paraquat, agrotóxico associado à doença de Parkinson e mutações genéticas que já teve o uso banido na União Europeia e na China. 

Embora o líder do DEM na Câmara não tenha exercido cargos executivos na FPA, é comum sua atuação em temas caros à bancada ruralista, como a renegociação de dívidas e a inclusão de produtores rurais entre os beneficiários do mercado de Créditos de Descarbonização (CBIOs). 

Em 18 de fevereiro de 2020, na sessão que aprovou a chamada MP do Agro, que facilitou o acesso a crédito para produtores endividados, Efraim instou seus colegas de partido a apoiarem o projeto: “É o agronegócio que tem feito o Brasil reencontrar o rumo do desenvolvimento, voltar a crescer, recuperar os empregos perdidos”, afirmou. Na tribuna ele teceu ainda elogios ao relator da proposta e correligionário Pedro Lupion (DEM-PR) e à atuação da FPA: “Destaco o trabalho incansável de parlamentares que aqui seguram essa bandeira e representam esses produtores da melhor forma. Hoje o Plenário da Câmara dos Deputados dá um recado a quem quer produzir no Brasil. Aqui o produtor encontra respaldo!”.

Pela Frente CSE, Efraim foi relator do Projeto de Lei (PLN) nº 2/2021, que alterou a Lei de Diretrizes Orçamentárias, destinando R$ 10 bilhões para a retomada do Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm). Sancionada por Bolsonaro em 21 de abril, a nova lei permite que empregadores reduzam salários e jornadas em até 70%, além de autorizar a suspensão de contratos de trabalho por até 120 dias mediante pagamento de benefício emergencial pelo governo. 

Criticada por organizações sindicais por sobrepor acordos individuais entre patrões e empregados às negociações coletivas com representantes dos trabalhadores, a aprovação do programa se deu graças a uma intensa articulação da Unecs. Em um manifesto divulgado às associações do comércio, a organização mantenedora da Frente CSE pediu que os líderes setoriais – entre eles, a Associação Brasileira de Supermercados – entrassem em contato com parlamentares próximos e que difundissem uma carta para seus braços estaduais e para as empresas associadas pedindo que acionassem os representantes de cada estado pedindo que estes votassem a favor do texto de Efraim.

O deputado paraibano é autor de outra matéria que interessa ao setor de abastecimento. Trata-se do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 5/2021, que prorroga isenções e benefícios fiscais no Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) por 15 anos, igualando os incentivos do comércio aos do setor industrial enquanto não for aprovada a reforma tributária.  

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Ponte entre ruralistas e varejo

Efraim Filho não é o único deputado que se divide entre o lobby do agronegócio e dos supermercados. Coordenador de assuntos tributários da Frente CSE, Christino Áureo (PP-RJ) chefia também a comissão de endividamento rural da FPA, onde ganhou destaque como relator do PL nº 5.191/2020, que criou o Fundo de Investimentos das Cadeias Agroindustriais (FIAgro), disponibilizando mais de R$ 250 bilhões em créditos federais para o agronegócio. 

Ex-secretário estadual da Casa Civil e número 2 de Luiz Fernando Pezão (MDB) no governo do Rio de Janeiro, Áureo é réu em processo movido pelo Ministério Público Estadual que investiga a concessão de benefícios fiscais a empresas do estado – entre elas, o frigorífico JBS – em troca de propinas ao ex-governador e aliados políticos. Em janeiro de 2019, uma decisão da 15ª Vara de Fazenda Pública do Rio de Janeiro bloqueou R$ 12 milhões em bens do político, que também é investigado pela contratação de funcionários fantasma em seu gabinete. 

Áureo foi um dos deputados que votou, em 17 de junho, pela aprovação das mudanças na Lei da Improbidade Administrativa, que afrouxam as punições aplicadas a agentes públicos que, como ele, foram enquadrados na prática. 

Em 2020, o carioca foi designado relator da Medida Provisória nº 905/2019, que criou a Carteira Verde e Amarela, removendo encargos na contratação de funcionários de 18 a 29 anos. Apoiado pelo setor supermercadista e considerado uma violação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o texto de Áureo chegou a ser aprovado na Câmara, mas a medida foi revogada pelo governo enquanto tramitava no Senado. 

O deputado Christino Áureo está sendo investigado por concessão de benefícios a empresas Foto: divulgação FPA

Reaproximação com Bolsonaro

O deputado Christino Áureo foi um dos principais articuladores pela aprovação da Lei nº 14.016/2020, que “estimula” a doação de alimentos e refeições excedentes ao impedir que as empresas e seus intermediários respondam na esfera civil ou administrativa por eventuais danos causados pela ingestão de comida estragada, caso não seja comprovada existência de dolo. A medida foi comemorada pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) que, junto à Abras, vem cobrando do governo a adoção de mudanças legais para “criar programas de doação com maior segurança jurídica”.

Uma dessas cobranças se deu publicamente durante o Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento  que teve, entre seus temas principais, o desperdício de alimentos. O momento ocorreu logo no primeiro painel, quando o presidente da Abras, João Galassi, interpelou a ministra da Agricultura Tereza Cristina sobre uma proposta encaminhada pela organização para reformular as regras de validade de alimentos, introduzindo o modelo conhecido como “best before”, em vez do atual critério de data de vencimento. 

A ex-presidente da FPA sinalizou positivamente à demanda, prometendo criar um grupo interministerial para debater o tema. “Há muito tempo que a gente já precisava trabalhar esse assunto de maneira mais objetiva”, avaliou a ministra. “A gente poderia fazer uma adaptação, sem precarizar nada. Podemos rever uma série de fatores e gargalos, principalmente em relação à validade dos nossos alimentos”.

A ideia teve apoio do ministro da Economia, Paulo Guedes, que levou a ideia ao cúmulo neoliberal, propondo que restaurantes possam doar restos de comida para os mais pobres: “ Você vê um prato de um classe média europeu, que já enfrentou duas guerras mundiais, são pratos relativamente pequenos. E os nossos aqui, nós fazemos o almoço onde às vezes há uma sobra enorme, e isso vai até o final, que é a refeição da classe média alta, até lá há excesso.

A sinalização positiva foi comemorada por Galassi que, desde sua eleição à presidência da Abras, em novembro, vem conduzindo uma política de reaproximação com o governo após seu antecessor ter trocado farpas publicamente com Bolsonaro em função da alta nos preços do arroz. Na ocasião, o presidente cobrou “patriotismo” dos donos de supermercados, ao que foi respondido pelo então líder da associação, João Sanzovo Neto: “Nós não vamos ser vilões de uma coisa que não somos os responsáveis”. 

Desde então, os contatos têm sido intensos. No mês passado, Galassi esteve em Brasília acompanhado do deputado Efraim Filho, onde se reuniu com outros dois ministros: Anderson Gustavo Torres, da Justiça, e Damares Alves, de Direitos Humanos. Em pauta, a “segurança jurídica do varejo” e a campanha Doação Super Essencial, da Abras. 

A participação do primeiro escalão do governo Bolsonaro no Fórum agradou o dirigente. “Os nossos ministros realmente tem dado respostas sempre de forma assertiva”, comemorou.

Coincidentemente (ou não), enquanto transcorria o evento, Bolsonaro se reunia com outro dirigente varejista, o presidente da  Associação de Supermercados do Estado do Rio de Janeiro (Asserj), Fábio Queiróz. 

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