Relatório traça ataque a políticas que levou miséria a milhões de pessoas, com ou sem covid, e diz que, para Bolsonaro, direito à alimentação nem existe
Desde que saiu a primeira pesquisa sobre a situação alimentar e nutricional das famílias brasileiras durante a pandemia de covid-19, muito se tem ouvido falar sobre a fome. Para alguns, principalmente os que ainda podem se resguardar dentro de casa, essa realidade pode estar menos visível, mas com certeza não tão distante. É o que evidencia o informe “O Dhana e a Covid-19 – O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas no Contexto da Pandemia”, publicado nesta quinta-feira (1º).
Lançado pela Fian Brasil, organização que atua internacionalmente pelo direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (conhecido pela sigla Dhana), o documento faz um apanhado dos últimos inquéritos e reportagens que analisam e mensuram os efeitos da insegurança alimentar e da fome para a população brasileira durante a pandemia.
De acordo com Nayara Côrtes, assessora de Direitos Humanos da Fian Brasil, a importância da publicação está na perspectiva panorâmica sobre os aspectos que afetaram a realização do Dhana no Brasil e resultaram em números assustadores. De acordo com Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede PENSSAN, 19 milhões de brasileiros passaram fome em 2020.
“Foi um esforço acompanhar todas as situações, iniciativas ou inações que afetavam a realização do direito e também parar de atualizar o material, visto que quase todos os dias tem algo novo”, avalia Cortês.
O informe organiza, de forma ampla, os fatores externos à conjuntura de pandemia, ou seja, aquilo que deixaria a população mais vulnerável, com ou sem covid. Nesse sentido, analisa as estruturas de políticas públicas que existem – ou existiam – para assegurar alimentação adequada para a população, além de apontar para uma crise que vem sendo moldada ao longo dos anos pelas políticas neoliberais que, ora desmontam tais arcabouços, ora privilegiam os grandes negócios, dos supermercadistas ao agronegócio, deixando trabalhadores e trabalhadoras à deriva.
“A violação ao Dhana ocorre há séculos no país e não apenas em períodos marcados por pandemias. Esse problema foi tratado com mais ou menos seriedade ao longo do tempo, a depender de cada governante. Entretanto, para o governo do presidente Jair Bolsonaro, ele sequer existe”, aponta o informe.
“A suspensão e redução no valor do auxílio sugere que a situação de insegurança alimentar pode ter sido agravada no período”
A gestão Bolsonaro deixa evidente que, se não fossem as pressões populares e a posição do Congresso Nacional diante da necessidade de uma renda emergencial, nem sequer teríamos o fator “auxílio” para entrar na análise.
Nessa toada, o documento da Fian é categórico ao afirmar que “a suspensão e redução no valor do auxílio sugere que a situação de insegurança alimentar pode ter sido agravada no período”. Trata-se do intervalo entre dezembro de 2020 e março de 2021, quando houve um vácuo deixado pelo auxílio emergencial, que voltou em abril com parcelas que variam de R$150 a R$375, a depender da formação familiar. Essa leva de pagamentos está prevista para terminar em julho.
Além de não corresponder à alta do preço dos alimentos básicos desde o início da pandemia, o auxílio emergencial em voga já não garantiria a compra de alimentos suficientes para livrar uma família da fome, nem ontem, nem hoje. “A classe trabalhadora do país está tendo que escolher se morre de fome ou de vírus”, endossa o informe.
Sistemas alimentares
impactados de ponta a ponta
Pragmaticamente, a pandemia impactou e continuará impactando a produção, a distribuição e a oferta de alimentos em todo o território. Seja pela necessidade de confinamento das pessoas, principalmente aquelas dos grupos de riscos, seja pela própria contaminação dos trabalhadores.
Mas é principalmente a conduta do poder público que determina a segurança ou a insegurança alimentar em tempos de crise. A falta de acesso regular à água potável, essencial para cozinhar e higienizar as mãos, é um dos indicativos. O documento informa que algumas liminares judiciais permitiram que a água chegasse em favelas, ocupações e palafitas onde a população, normalmente, não teria acesso a esse direito universal. Mas foram concessões momentâneas.
É principalmente a conduta do poder público, que extrapola o vírus, que determina a segurança ou a insegurança alimentar em tempos de crise.
Outro ponto inédito na análise é a concentração supermercadista, que comemorou a alta dos lucros, enquanto milhares de brasileiros se viam num mato sem cachorro. Entendidos como serviços essenciais, em nenhum momento os supermercados fecharam as portas ou sofreram restrições mais sérias. Por outro lado, as feiras livres tiveram sua permanência impedida nos locais mais seguros para a circulação de pessoas: na rua, ao ar livre.
Outra preocupação presente no informe da Fian é o aumento no uso de agrotóxicos, que vem encontrando apoio irrestrito do presidente desde que assumiu, em 2019. Só no primeiro ano de mandato, foram liberados 475 tipos de veneno. Em 2020, quando a pandemia já era realidade, outros 118 foram aprovados sob a justificativa de “serviço essencial”.
Além disso, como já apontamos inúmeras vezes no Joio, a produção voltada para a exportação, e não para o consumo interno, faz crescer os preços dos alimentos. O agronegócio lucra em dólar enquanto os pequenos produtores rurais penam para escoar a colheita diante do sucateamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
As tentativas, via Congresso, de apoiar a agricultura familiar, pelo Projeto de Lei 735/2020, o chamado PL da agricultura familiar, foi barrada à canetada do presidente, que vetou 14 dos 17 artigos do projeto. O texto prevê o pagamento do auxílio aos pequenos produtores que ainda não tinham sido contemplados.
Outro projeto, que diz respeito à garantia de direitos básicos à população indígena para o gerenciamento da pandemia, também encontrou barreiras no Executivo. Dos 22 artigos, 16 foram vetados pelo presidente. Entre eles, alguns itens básicos: a garantia de acesso à água potável com urgência e de forma gratuita; a distribuição de materiais de higiene e desinfecção; a oferta emergencial de leitos hospitalares e Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).
“Em suma, o Estado brasileiro é responsável por um quadro de violação sistêmica dos direitos humanos, dos quais deveria ser o guardião”, conclui o documento. Dessa forma, a insegurança alimentar não é sentida só pelos consumidores finais. Todos os trabalhadores da cadeia da alimentação se vêem sob ameaça, do vírus e da fome.
Enfrentando a sindemia
Antes da chegada do coronavírus, já enfrentávamos três pandemias globais: a pandemia de obesidade, a desnutrição e as mudanças climáticas. A essa junção, os especialistas dão o nome de sindemia, por ocorrerem ao mesmo tempo e no mesmo espaço.
O informe aponta que “eventos extremos, como secas prolongadas e chuvas intensas, afetam diretamente a produção de alimentos, contribuindo para o aumento dos índices de desnutrição. Já o aumento da prevalência de obesidade decorre da atual configuração dos sistemas alimentares, que privilegiam a produção e o consumo de alimentos ultraprocessados”.
O desmonte das políticas de proteção ambiental, dos programas públicos de abastecimento e distribuição de comida, como os bancos de alimentos e os restaurantes populares, além do incentivo à indústria de ultraprocessados, só fazem reforçar a sindemia, que ganhou mais uma aliada em 2020. A política de extermínio do governo Bolsonaro faz “passar a boiada” principalmente na Amazônia e no Cerrado e, enquanto a natureza agoniza, a população sente no estômago e na pele os efeitos desse projeto.