Foto: OMS/Pierre Albouy

Na COP 9, indústria do fumo ganha, mas não leva

Pressão do setor conseguiu desfalcar delegação, porém não teve força para promover guinada pró-tabaco na posição brasileira

No Brasil, o relógio nem tinha marcado sete da manhã na última segunda-feira, dia 8 de novembro, mas os aplicativos de mensagens não paravam de apitar.

Os trabalhos da nona edição da Conferência das Partes da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (COP 9) tinham acabado de começar, pela primeira vez de forma virtual. E logo se notou uma ausência.

Também pela primeira vez na história das COPs, o corpo técnico responsável por orientar a posição brasileira sobre os mais variados assuntos debatidos no evento não estava na delegação do país.

Integrantes de organizações da sociedade civil que se dedicam à agenda antifumo disparavam a mesma pergunta para todos os lados: “Onde foi parar o pessoal da Conicq?”.

Conicq é a sigla para Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. O colegiado governamental, que existe há 18 anos e já recebeu diversos prêmios internacionais, é o principal alvo da indústria do fumo no Brasil.

A decisão de riscar da lista de delegados quatro técnicos do Instituto Nacional do Câncer (Inca) responsáveis por coordenar a Conicq havia sido comunicada na véspera pelo Ministério da Saúde.

Em uma reunião convocada às pressas no domingo, o recado da pasta foi de que era preciso ceder agora para ganhar lá na frente.

Apenas dois dias antes, a mensagem tinha sido outra. Numa reunião realizada em 4 de novembro, o próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, havia assegurado a presença da Conicq na COP.

O zigue-zague se torna compreensível a partir de seu contexto. Como o Joio revelou, uma batalha está sendo travada dentro do governo federal.  

De um lado, porta-vozes da cadeia produtiva do tabaco – como o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) – pressionam pela interpretação de que a Conicq foi extinta por um decreto editado por Jair Bolsonaro em 2019.

Por outro, um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) sustenta que o colegiado não foi afetado pelo decreto – e, na prática, pastas como Relações Exteriores e Saúde mantêm inalterado o fluxo administrativo com a Conicq.

Para garantir maior segurança jurídica ao colegiado, o Ministério da Saúde tenta, desde a gestão de Luiz Henrique Mandetta, editar um novo decreto para a comissão.

O ‘ganhar lá na frente’ tem a ver com a assinatura desse texto que dormita em alguma gaveta da Secretaria-Geral da Presidência da República. O ‘ceder agora’ é, literalmente, ceder à pressão da indústria do tabaco.

Por tudo isso, o desfalque da delegação brasileira foi recebido primeiro com incredulidade, e depois com revolta.

“O Ministério da Saúde não deveria transigir com nenhuma interferência da indústria do tabaco. É lamentável”, critica Luiz Antonio Santini, ex-diretor do Inca.

“É um péssimo sinal de interferência, um precedente que nos preocupa muito”, reforça Monica Andreis, diretora-executiva da ACT Promoção da Saúde. A ONG lançou um manifesto ainda na terça-feira (9/11) denunciando em múltiplos idiomas o desfalque na delegação brasileira.

O Joio entrou em contato com o Ministério da Saúde, mas a pasta não respondeu até o fechamento da reportagem.

Lobby formalizado em ofício

A indústria do fumo avançou outro sinal na COP 9. Via Lei de Acesso à Informação (LAI), o Joio obteve documentos que mostram o grau de influência das empresas fumageiras no Ministério da Agricultura.

Em 21 de setembro, o Itamaraty enviou um ofício para os ministérios da Saúde, Justiça e Agricultura, além da Receita Federal, da Anvisa e da Conicq. O objetivo era orientar a atuação da diplomacia brasileira durante as negociações da proposta de declaração final da COP 9.

O texto destacava várias vezes a necessidade de que os países não permitissem interferências da indústria do tabaco para garantir uma implementação eficaz da Convenção-Quadro.

Ironia das ironias, a resposta do Mapa foi dada pela… Indústria do tabaco. 

Em 14 de outubro, a pasta encaminhou ao Itamaraty a resposta da Câmara Setorial do Tabaco – um colegiado composto por representantes da indústria – sem nenhum tipo de adendo, deixando claro que a posição das empresas é também a posição do ministério.

O ofício não deixa dúvidas: a cadeia produtiva do tabaco quer ser ouvida. Para isso, argumentava que a coordenação da participação brasileira na COP 9 deveria ser feita pela Secretaria Geral da Presidência da República ou pela Casa Civil. “A Conicq foi extinta por não ter previsão legal e por essa razão não parece ser a instância adequada para formulação e decisão final sobre a posição brasileira”.

A indústria foi além: pediu que a diplomacia brasileira enviasse todos os documentos relacionados à agenda da COP 9 para a Câmara Setorial. E, só depois disso, o governo brasileiro deveria definir a posição “visando a evitar posicionamentos divergentes”.

Em especial, as empresas queriam que o governo se posicionasse de “forma neutra” sobre os dispositivos eletrônicos de fumar. E manifestou “grande preocupação” com a recomendação de aumentar impostos.

“Vale destacar que o Brasil é o 2º maior produtor de tabaco e o maior exportador desse produto no mundo”, diz o texto, que termina pedindo que “o governo brasileiro defenda os interesses nacionais” – leia-se, os interesses de empresas como British American Tobacco (antiga Souza Cruz, no Brasil), Philip Morris e Japan Tobacco International, para citar algumas multinacionais que atuam no país.

Quem encaminhou a resposta do Mapa ao Itamaraty foi a chefe de gabinete da Secretaria de Comércio e Relações Internacionais da pasta, Francieli Covatti. Ela é filha de Silvana Covatti, atual secretária de Agricultura do Rio Grande do Sul. Sua irmã, Viviane Covatti, trabalha na Philip Morris. E seu irmão, Covatti Filho (PP-RS), é deputado federal com longa ficha ligada aos interesses da indústria fumageira, já tendo recebido doações de campanha da Philip Morris, como o Joio contou.

E quem assina o documento é Romeu Schneider, presidente da Câmara Setorial e secretário da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra).

Em entrevista à Gazeta, jornal de Santa Cruz do Sul – conhecida como a “capital mundial do fumo” –, Schneider se gabou do posicionamento formal enviado ao Itamaraty graças ao “inédito movimento de abertura” do Ministério da Agricultura.

Barreira de contenção

Contudo se é verdade que a indústria do fumo avançou algumas casas no tabuleiro da interferência, também é visível que ela não chegou aonde queria.

Isso porque, a delegação brasileira na COP 9 seguiu o “instrutivo” elaborado pelos mesmos técnicos da secretaria executiva da Conicq barrados pelo lobby empresarial.

Esse documento, secreto no curso do evento para não atrapalhar negociações, contém uma série de considerações sobre cada um dos pontos que serão discutidos na COP, com a instrução sobre qual deve ser a posição brasileira.

Segundo fontes ouvidas pelo Joio, o instrutivo desta COP tem mais de 250 páginas e está sendo seguido com rigor pelo Itamaraty.

A postura da diplomacia brasileira foi destaque na cobertura da Gazeta, patrocinada pela Afubra, pelo Sinditabaco e pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), instituição de ensino com estreitas ligações com as empresas do ramo. 

“Na minha opinião, a COP 9 está igual às anteriores. Som único, música de uma só tecla. Estabelecer regras para serem cumpridas pelos outros é fácil”, disse ao jornal o deputado federal Heitor Schuch (PSB), um dos parlamentares aliados da indústria do tabaco. 

Na mesma matéria, o jornal escreve que o embaixador Tovar da Silva Nunes, chefe da delegação brasileira na COP 9, foi na “contramão do que o setor pediu ao governo”. 

Outro alarme falso foi a atuação do representante do Mapa na COP 9. O indicado do ministério na delegação brasileira é Nelson de Andrade Junior, assessor da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo – a mesma que, em outro ofício, afirmou que a Conicq não precisava existir.

Fontes relatam ao Joio que Andrade Junior sequer compareceu às reuniões da delegação brasileira.

Na COP 9 houve casos emblemáticos da captura empresarial que funcionam como exemplos distópicos do que a indústria queria fazer com a delegação brasileira.

A República Dominicana, que sequer assinou a Convenção-Quadro e participa da COP no papel de observador, fez uma declaração de amor à indústria do fumo. Na sessão plenária, fechada para jornalistas, uma representante do país pediu a palavra para afirmar que a indústria do tabaco é “um orgulho nacional”. Não é à toa que, segundo o Índice de Interferência, o país ocupa a pior posição do ranking mundial, com 96 pontos numa escala de 100.

Outro exemplo pedagógico de conflito de interesses foi dado pelas Filipinas. A delegação do país não poupou elogios à indústria e chegou a afirmar que dispositivos eletrônicos de fumar seriam “saudáveis” e fontes de bem-estar. A atuação provocou um racha dentro do governo filipino.

“Não há benefícios no tabaco”, diz uma nota Departamento de Saúde do país publicada na quarta-feira (10/11). Equivalente ao Ministério da Saúde por lá, o departamento teve que esclarecer para o mundo todo que se “opõe e dissocia das afirmações pró-tabaco feitas pela delegação filipina na COP”.

“Algumas delegações revelam que estão sendo influenciadas por interesses da indústria do tabaco de formas mais indiretas, tentando protelar as discussões”, explica Mônica Andreis, da ACT. São as chamadas manobras protelatórias.

É o caso de Guatemala, Honduras e Nicarágua, denunciados por aproximadamente 40 entidades da sociedade civil por tentaram atrasar de todas as formas as discussões no primeiro dia da COP.

Como a conferência foi virtual, para não prejudicar quem está muito à frente ou muito atrás do fuso horário de Genebra, sede da OMS de onde se coordenam as discussões, cada dia de trabalho tinha apenas seis horas, fazendo com que cada minuto contasse bem mais.

Pra depois

Foto: OMS/Pierre Albouy

Também pelo formato virtual, a pauta desta nona edição da COP que terminou hoje (12/11) foi enxuta – e todas as polêmicas foram adiadas para a próxima conferência, que acontecerá no Panamá em 2023. 

É o caso de resoluções que podem recomendar a proibição de novos produtos de tabaco, como os cigarros eletrônicos, e o uso de aditivos de sabor e aroma.

“Adicionar sabores e aromas é uma estratégia da indústria para atrair o público jovem, por isso a expectativa é que gere um grande debate”, situa Mônica Andreis.

“A gente tem, no Brasil, um bom exemplo disso: em 2012, a Anvisa publicou uma norma proibindo o uso dos aditivos, mas a indústria questionou na Justiça e, até hoje, essa norma não foi implementada”, lembra.

Na avaliação de fontes ouvidas pelo Joio, a falta de polêmicas na COP 9 protegeu o Brasil. Segundo esses interlocutores, caso houvesse necessidade de costurar acordos sobre temas complexos, como cigarros eletrônicos, estaríamos em uma posição bem mais frágil sem a expertise da secretaria executiva da Conicq, que tem em seus quadros gente como a médica Tânia Cavalcante, premiada em maio deste ano pela OMS e que, até então, havia participado de todas as COPs.  

De novidades, a COP 9 trouxe a decisão de criar um fundo de investimento para acelerar a implementação do tratado.

O fundo será administrado pelo Banco Mundial e por um comitê de supervisão indicado pelos países signatários da Convenção-Quadro.

A ideia é arrecadar 50 milhões de dólares adicionais ao orçamento projetado para os próximos dois anos, que é de 19 milhões em contribuições dos governos.

Segundo o Itamaraty informou ao Joio, o governo brasileiro deve 336 mil dólares ao secretariado da Convenção-Quadro e 13 milhões de dólares à Organização Mundial da Saúde.

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