Apesar do melhoramento de espécies para cultivo ser algo antigo e muito utilizado, iniciado pelos povos originários, a chegada da técnica do milho híbrido abriu uma nova era no campo e consolidou a semente do agronegócio como conhecemos hoje no país
O maior banco de sementes do Brasil tem quatro mil variedades de milho. Localizado em Brasília, o edifício da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) é um dos maiores guardiões da biodiversidade do mundo. Cerca de três mil foram coletadas em nosso país, e pelo menos 300 estão diretamente ligadas à cultura indígena.
Mas, hoje, essa variedade fica no passado. O milho que compramos na feira, a farinha de milho, o fubá, os derivados que estão em alimentos ultraprocessados, tudo isso vem basicamente de um punhado de espécies que caberiam nos dedos das mãos. Controlado por corporações, o milho de nossos tempos tem no Brasil um elemento fundamental da história: da ofensiva dos Estados Unidos durante a guerra fria à entrada de sementes transgênicas, o país foi e é um dos centros de uma disputa que envolve ciência, geopolítica e cultura alimentar.
Essência da culinária de quase toda a América Latina, o milho está na nossa literatura, na nossa poesia, na nossa música. Comida dos pobres, herança dos povos indígenas, o milho nunca havia dado fortuna a ninguém.
“Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres… O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro. Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.”
— Cora Coralina
Mas essa história começa a mudar no século passado. Milhares de variedades selecionadas ao longo de milênios garantiam diversidades no sabor, na região de plantio, na época do ano. Porém, tudo isso passou a ser regido por um único fator: produtividade.
“Você sabe que o Brasil é um país maravilhoso. Se eu fosse jovem, iria pra lá”, disse o presidente norte-americano Franklin Roosevelt ao empresário Nelson Rockefeller. Ao apontar no mapa com o dedo as planícies do interior, completou: “Um dia esta será a mais importante área de desenvolvimento do mundo inteiro. A história do nosso Oeste lá será repetida.”
Conforme relata o escritor Antonio Pedro Tota, no livro O amigo americano, não se sabe se este diálogo entre os dois realmente ocorreu, mas é certo que ele foi usado em um dos discursos de Rockefeller para os brasileiros, em sua terceira visita ao país, para convencer empresários e governantes de que era necessário modernizar todos os setores econômicos.
Mais do que uma profecia, a ideia da “conquista do Oeste” era um modelo e um objetivo. E Nelson Rockefeller construiu, ao longo dos anos, as condições para que isso de fato ocorresse. Utilizando-se da imaginação e do sentimento, com o uso intenso da imprensa e da propaganda, e de relações próximas no público e no privado, Rockefeller mudou a história do Brasil, embora poucos brasileiros saibam.
Mas, calma, é preciso dar um passo atrás porque essa história não começa com Rockefeller. Quando ele chegou ao Brasil, o terreno já estava arado e semeado. Historicamente, cada agricultor é um melhorista: ele seleciona as melhores sementes de cada ano, promove cruzamentos, vai entendendo que planta se adapta melhor a cada situação.
“Todos tinham seus roçados, se utilizava a semente daquela própria roça, as melhores espigas eram debulhadas no terço médio, descartando a ponta e a base, e os grãos eram utilizados como sementes para a próxima lavoura. E os agricultores se ajudavam e trocavam sementes”, recorda o engenheiro agrônomo Aildson Pereira Duarte, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), uma empresa pública paulista que foi parte fundamental na mudança da história do milho.
O milho é complexo
Na lógica do melhoramento, cruzar uma planta boa com outra melhor deveria dar um resultado ainda melhor. Mas o milho é teimoso: quanto mais se cruzava a planta com ela mesma, mais fraca e menos produtiva ela se tornava. O milho é uma planta alógama, ou seja, ele prefere a polinização cruzada. Assim, para obter uma planta mais produtiva é preciso cruzar um pé com outro. Esse detalhe foi a fortuna e a desgraça do milho, como veremos.
A espécie possui o órgão masculino e feminino na mesma planta, o pendão, que nasce no topo, distribui o pólen, que cai nos filamentos da espiga, gerando um grão para cada fio da espiga. “A parte masculina libera o pólen que deveria cair naquela espiga, mas a natureza é sábia: a maioria dos grãos de pólen não vai para aquela espiga daquela mesma planta, vai para a espiga de outra planta. E com esse cruzamento natural, temos um processo de variabilidade genética dessas plantas”, explica Aildson Pereira Duarte.
Em 1932 se iniciou o primeiro programa de melhoramento de milho do IAC. Na ocasião, cruzamento e pesquisas eram feitas com as “variedades”, como são chamados os milhos crioulos. “O primeiro híbrido era intervarietal, usando variedades diferentes”, destaca Duarte.
Mas o milho híbrido que se encontrou com os desejos de Rockefeller surgiu em outro estado. Na mesma época, outro polo de desenvolvimento da tecnologia do milho se formava na Escola Superior de Agricultura e Veterinária da Universidade Federal de Viçosa (Esav), em Minas Gerais.
Antonio José Secundino, formado na primeira turma de agronomia da Esav, também se dedicava ao melhoramento do milho. Foi durante uma viagem aos Estados Unidos que ele aprendeu a tecnologia do milho híbrido.
Secundino entendeu que o cruzamento precisava ser feito entre linhagens puras para que a planta alcançasse o vigor híbrido, ou seja, quando o resultado do cruzamento é melhor do que a média das linhagens progenitoras. Em 1937, ele chegou a trazer na bagagem algumas linhagens dos Estados Unidos, mas elas não se adaptaram ao clima brasileiro, e foi necessário continuar as pesquisas até encontrar um milho híbrido que fosse adequado às condições locais.
Foram anos de pesquisa dentro da Esav até que em 1945 foi fundada a Agroceres, que passou a vender as sementes que resultavam em plantas muito mais produtivas – o que faria o milho passar de um cultivo local e de populações pobres para uma cultura de escala.
“O milho que vale um milhão”: essa era a frase estampava as sacas das sementes vendidas pela empresa, de porta em porta, pelo próprio Secundino.
Já não se tratava de retirar as sementes da própria produção. A partir de então, o agricultor que quisesse obter melhor produtividade na sua lavoura teria de comprar novas sementes todos os anos. A tecnologia alterava a lógica anterior e tornava o comércio de sementes muito lucrativo, inserindo a agricultura no capitalismo.
A invenção do agro
O “amigo americano”, Nelson Rockefeller, que conhecia o potencial das sementes híbridas e as pesquisas da Agroceres, não perdeu tempo. Em 1947, um ano depois de sua segunda visita ao Brasil, tornou-se sócio majoritário da empresa. O Internacional Basic Economy Corporation (Ibec), empresa privada do norte-americano, já possuía uma fazenda de 300 hectares em São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte, que fornecia alimentos para a base espacial americana em Natal.
Já na esfera pública, Rockefeller atuava através da American International Association, traduzida como Associação Americana Internacional de Fomento Econômico e Social. Assim, ele podia lucrar com sua empresa privada e seus negócios em plena expansão, como também pressionar para que o Estado o apoiasse com investimentos.
Mas os interesses não se concentravam apenas no econômico. Ele tinha razões políticas para suas missões pela América Latina, em plena guerra fria. Rockefeller se dizia um defensor da liberdade, um fervoroso anticomunista, e atuou como um representante dos interesses norte-americanos na região, fortalecendo as relações entre os dois países.
Foi nessa época que os Estados Unidos fizeram dos alimentos uma arma na luta geopolítica contra a União Soviética. E o Brasil foi escolhido como um dos espaços centrais da difusão da ideia de que a agricultura deveria, agora, ser especializada e concentrada em grandes áreas. Em 1955, na Escola de Negócios de Harvard, surgiu o conceito de agronegócio. Não por acaso, a Agroceres foi a principal importadora dessa noção.
A ofensiva de Rockefeller inseriu o campo brasileiro na era da industrialização. Essa modernização levou tempo, exigiu muitos recursos em tecnologia, e trouxe uma mudança completa na forma de plantar, colher, trabalhar e de se alimentar, com inúmeros impactos socioeconômicos. O “amigo americano” criou muitas outras empresas no setor: uma fábrica de ração animal, produção de aves, suínos e gado, e também de insumos, como fertilizantes agrícolas.
Após o grande aporte de capital estrangeiro, a Agroceres se tornou a maior produtora de sementes híbridas do país e uma das seis maiores do mundo, diversificou os negócios e montou novas produções de sementes em outros estados rapidamente, com o apoio dos governos locais. Posteriormente, o setor de sementes da empresa foi adquirido pela Monsanto, e hoje pertence à Bayer.
Das lavouras pobres para as commodities
Porém, o caminho percorrido pelo milho para o mercado internacional das commodities foi longo. Desde os anos 90, a produção se incrementou ano a ano. Outras técnicas de plantio foram inseridas, bem como o uso de novos insumos nas lavouras e o melhoramento das sementes.
Um novo salto foi a inclusão de uma segunda safra, conhecida como safrinha. O que começou pequeno se tornou grande: a segunda safra produz atualmente mais do que a primeira, conhecida como “safra verão”. O diferencial foi o desenvolvimento de cultivares exclusivamente para o clima do inverno e para regiões do país que não cultivavam o milho em larga escala.
O engenheiro agrônomo Aildson Pereira Duarte é especialista no desenvolvimento do milho safrinha há 30 anos, pelo IAC. Com a abertura do mercado nacional nos anos 90 e o fim da Comissão de Compra Nacional do Trigo, entidade estatal que concentrava e intermediava a compra do trigo, os preços caíram e o agricultor deixou de plantar o grão. Então, produtores do Paraná e de São Paulo começaram a explorar uma segunda safra de milho.
“Na década de 90 tivemos o incremento do milho safrinha no Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Em Santa Catarina e Rio Grande do Sul não houve essa substituição porque lá a geada chega cedo. Mas, a partir da virada do século, começa a aparecer em Goiás e Mato Grosso do Sul”, explica Duarte.
Nos últimos dez anos, segundo o Ministério da Agricultura, a área total cultivada com milho avançou 30,7%, mas de maneira bem desigual: a antiga safra principal teve redução de 42%, enquanto a segunda safra avançou 95%, graças ao revezamento com a soja. A expectativa é de que ao longo da década a safrinha ganhe mais 5,2 milhões de hectares, e que o total de área do milho chegue a 42 milhões de hectares.
Mais um salto. Agora, a chegada do milho transgênico nos anos 2000. O glifosato, comercializado como Roundup ou mata-mato, ao mercado brasileiro, mudou a técnica de plantio. Já não se revolvia a terra para o controle das ervas daninhas, e sim, apenas o uso do herbicida sobre o solo. Contudo, o herbicida matava também a planta do milho.
Em 2007, o primeiro produto transgênico aprovado para a comercialização no Brasil foi o milho resistente ao glifosato, chamado de Milho RR (no original, Roundup Ready, e em tradução livre Resistente ao Roundup), produzido pela Bayer. O herbicida mais utilizado no mundo é alvo de críticas e processos judiciais por danos à saúde e ao meio ambiente. Inclusive, chega a matar produções agrícolas vizinhas ao plantio onde ele é utilizado.
O segundo milho transgênico que ingressou ao mercado e também aumentou os ganhos dos agricultores foi o milho Bt, chamado assim por conter os genes da bactéria Bacillus thuringiensis, que mata a lagarta-do-cartucho e outras pragas, que comem os grãos do milho causando enormes prejuízos.
Atualmente, 93% da área total cultivada com o milho no país é de sementes geneticamente modificadas, segundo uma publicação da Embrapa de maio de 2020.
O milho em números
Hoje, o Brasil está entre os três maiores produtores de grãos do mundo, de acordo com um estudo divulgado em junho deste ano pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa. Em 2020, o país alcançou o terceiro lugar na produção de milho, com 101,8 milhões de toneladas, posição que deve permanecer pelos próximos anos, segundo a Companhia Nacional do Abastecimento (Conab).
Do montante total produzido, pouco menos de 20% foi exportado, movimentando US$ 6 bilhões, aproximadamente R$ 31 bilhões. O restante, 80% dessa produção, é utilizada internamente no Brasil.
Mesmo assim, a produção de milho cresce todos os anos. Para se ter uma ideia, o Brasil saltou de 13,8 milhões de hectares destinados à produção do grão em 2010 para 19,8 milhões de hectares em 2021. O número já equivale a praticamente a metade da área utilizada para a plantação de soja no Brasil.
A maior parte do milho produzido no Brasil é destinado à produção de ração para a alimentação de aves, porcos e gado, produtos que colocam o país em primeiro lugar no ranking de exportação mundial, segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).
Imposição do mercado
“É difícil definir o número de variedades que já foram produzidas em larga escala no mundo. No Brasil, atualmente, existem cerca de 4.000 variedades preservadas no Banco de Germoplasma e 6.000 variedades registradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento”, explica a pesquisadora da Embrapa de Milho e Sorgo, Flávia França.
Das 4.000 variedades preservadas, ao menos 3.000 foram coletadas no Brasil. “O restante, ou vieram do exterior, ou foram cultivadas em algum momento, mas caíram em desuso”, explica.
O banco de sementes público em Brasília é uma biblioteca de seres vivos. “A coleção existe para ser usada”, destaca Flávia França. Somente no Centro Internacional de Melhoramento do Milho e do Trigo (Cimmyt), o maior banco de germoplasma do mundo, localizado no México, são preservadas ao menos 25.000 variedades de milho.
O milho continua presente na refeição dos brasileiros, mas de maneira homogênea. A perda cultural é tamanha que o Movimento Slow Food chegou a sugerir que as festas juninas, que são a principal celebração agrícola no país, fossem realizadas sem pratos à base de milho.
As sementes crioulas produzem espigas diferentes em uma mesma colheita, ou seja, um grão pode sair um pouco mais amarelo que o outro, ou com tamanhos diferentes. Com a produção industrializada, o grão precisa ter um padrão de tamanho para passar nas peneiras das máquinas. Assim, milhos brancos, roxos, azuis, laranjas, grandes, miúdos, todos deram lugar ao milho amarelinho que vemos hoje em dia.
“Se você for pensar do ponto de vista do consumidor, quando ele vai ao mercado, ele procura o produto com maior uniformidade. Por exemplo, na hora de comprar o saco de feijão, se ele ver um saco de feijão misturado ao lado de um só com um tipo, ele vai comprar o que não esteja misturado. Talvez o misturado tenha maior equilíbrio de teores”, analisa Flávia França.
“Então, se você for pensar num agricultor, e ele tiver que optar entre uma variedade e um híbrido, ele vai escolher o com a maior precificação do produto. E pensando naqueles dois produtos, a variedade e o híbrido, se alguém pagasse mais pela variedade, ele seria recompensado”, analisa a pesquisadora.
O papel do Estado e os orgânicos
Apesar da dominação veloz do milho transgênico, o mercado de orgânicos também começa a apresentar um potencial de crescimento, e o papel do Estado se mostra extremamente relevante neste nicho. De acordo com a Embrapa Milho e Sorgo, uma pesquisa mostrou que as regiões onde existem mais produtores de orgânicos são aquelas em que há um maior apoio público.
Segundo o estudo “Variação geográfica da ocorrência de produtores de milho orgânico cadastrados no Brasil”, existe uma relação importante entre os produtores orgânicos e as políticas públicas em prol deste mercado. Hoje a maior parte dos produtores de milho orgânico se concentram na região Sul do país.
Analisando o caso do Paraná ficou evidente que o trabalho desenvolvido historicamente pela Emater-PR, hoje chamado de Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná, impulsionou esse tipo de produção. Além do aumento da demanda de produtos saudáveis por parte dos consumidores, a existência de cooperativas e associações, somadas à assistência técnica e adaptações de técnicas para as condições locais dão resultados positivos.
Outro caso semelhante é o do Distrito Federal, que, além de receber apoio de diversas entidades públicas e privadas, conta com a vantagem de estar a menos de cem quilômetros dos grandes mercados consumidores.
Delwek Matheus, dirigente e integrante da coordenação nacional do MST, e responsável pela produção de grãos orgânicos do movimento, endossa o resultado da pesquisa e afirma que a participação do Estado é fundamental tanto na assistência técnica quanto na organização do mercado de orgânicos.
Segundo Matheus, o movimento tomou a decisão de se tornar o maior produtor de orgânicos do país e agora começa a desenvolver também a produção do milho.
“Primeiro, nós não temos uma política [pública] de orgânicos. Segundo, também não temos um mercado de grãos orgânicos no Brasil. Então essas parcerias são importantes porque nós precisamos organizar o mercado de grãos orgânicos em escala. Agora a produtividade entrou em um patamar razoável e consequentemente temos que baixar custos de produção”, ressalta o dirigente.
Matheus explica que as dificuldades começam já no projeto da produção certificada orgânica. A compra das sementes, insumos, a terra e o maquinário precisam ser certificados a cada produção. “Se eu plantar milho crioulo, não posso comercializar como orgânico, porque precisa provar que ele não teve contato com o transgênico. A semente precisa ser certificada”, explica.
O dirigente explica que o movimento ainda quer avançar e começar a produzir também a soja orgânica, contudo, a dificuldade de encontrar as sementes ainda é um entrave, embora entidades como a Embrapa, Instituto Agronômico de Campinas entre outras forneçam sementes de variedades, o projeto como um todo ainda torna o preço do produto orgânico alto.