O Miojo fica pronto em três minutos, mas o marketing é uma construção de 60 anos que mistura self-made man, arranjos políticos, questões de gênero e muita publicidade infantil
*Este texto é uma adaptação do roteiro do episódio “Miojo, o mestre dos disfarces”, do Prato Cheio. Escute no tocador acima ou em sua plataforma de áudio favorita.
Em 2005, o macarrão mais antigo do mundo foi descoberto na China. Com idade estimada em quatro mil anos, a massa foi encontrada dentro de uma tigela lacrada no sítio arqueológico de Lajia, no noroeste do país.
O anúncio do achado foi feito na Nature, uma das revistas científicas mais importantes do mundo. Lá, os arqueólogos publicaram uma foto do macarrão: feito à base de painço, ele é amarelo e tem fios longos e finos. Não dá para negar que o macarrão mais antigo do mundo lembra muito o macarrão de hoje – o que diz alguma coisa sobre a relação de amor da humanidade com esse alimento.
É também na China que foi inventado um jeito especial de consumir macarrão, em que a massa é servida junto com um caldo salgado que leva legumes, verduras e proteína. Esse prato foi batizado de lamian. Mas a gente conhece hoje como lámen. Ou “ramen”, se se levarmos ao pé da letra a pronúncia daqueles que o difundiram mundialmente, os japoneses.O miojo nasceu para copiar esse prato. Embora, nem de longe, a cópia consiga reproduzir o original, como frisa Mark Veen, chef e um dos proprietários do Tamashii Ramen, restaurante que fica em Pinheiros, na zona oeste paulistana.
O caldo servido junto com o macarrão cozinha por horas – às vezes, dias, dependendo do sabor que se quer extrair dos ossos e carcaças que servem de base.
“Não é nenhum absurdo ter três dias de cozimento”, conta ele. “O segredo é você conseguir extrair o máximo de sabor desses ingredientes para fazer uma sopa rica, completa.”
Mas, em contraste com o tempo de cocção, a montagem do prato não pode demorar. “Quando o cliente chega, o ramen tem que ser preparado muito rápido”, diz Veen. Isso tem a ver com o contexto histórico no qual o prato se popularizou, é claro.
Entre 1895 e 1945, muitas partes da China foram ocupadas pelo Japão. Junto com a conquista desses territórios, veio o intercâmbio cultural. O lámen caiu no gosto dos japoneses. Era preparado e servido por pessoas na rua, muitas vezes na frente das fábricas.
“Então, esse prato que mistura macarrão e caldo ficou muito popular porque era robusto, dava sustento para aguentar várias horas trabalhando ou matar a fome depois de uma longa jornada”, explica o chef.
A história oficial do miojo tem tudo a ver com esse hábito.
No livro da Nissin sobre sua trajetória, lançado em 1992, o fundador da empresa e autoproclamado inventor do miojo – Momofuku Ando – conta que sua experiência de ver longas filas de pessoas esperando no gélido inverno setentrional para comer lámen, em um mercado que funcionava ilegalmente durante a ocupação do Japão pelos Estados Unidos, despertou seu interesse em desenvolver uma forma instantânea do prato, que desse pra fazer em casa.
O mito fundador
Era uma vez um país devastado por uma grande guerra, no qual as pessoas estavam passando fome. Porque perdeu a guerra, este país precisou ficar sob a tutela de outro. Um homem muito empreendedor olhava, de um lado, para a introdução forçada de um ingrediente até então estranho àquela cultura e, de outro, para as filas de pessoas esfomeadas esperando por um prato barato e tradicional. Até que – Eureka! – ele teve um estalo. Iria salvar, a um só tempo, a tradição culinária de seu país e a população da fome.
Em síntese, essa é a história que a Nissin Foods e seu fundador, Momofuku Ando, contaram ao longo de décadas para explicar a criação do miojo.
Simples. Simplista, na verdade.
Não surpreende que encante pessoas do quilate de Luciano Hang, o “véio da Havan”, que em seu canal de YouTube tem um vídeo dedicado a Ando.
Mas, de acordo com as pesquisas de George Solt, pós-doutor pela Universidade da Califórnia em San Diego e referência internacional na história do lámen, as coisas se passaram de forma diversa – e bem mais interessante, diga-se de passagem.
O contexto era o seguinte: a derrota na Segunda Guerra Mundial significou a ocupação do território japonês pelos EUA – mesmo país que lançou bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki.
Durante os sete anos da ocupação, que se estendeu de 1945 a 52, Solt conta que houve uma sinergia entre os interesses geopolíticos dos norte-americanos e os interesses da elite japonesa, que viu seus privilégios não só preservados, como reforçados. E, para ele, a farinha de trigo é um ótimo exemplo disso.
“Quanto mais o Japão experimentasse escassez de alimentos, mais pessoas gravitariam em torno do Partido Comunista”, resume Solt em sua tese de doutorado que virou livro (The Untold History of Ramen).
E, do ponto de vista dos ianques, isso não podia acontecer: era a Guerra Fria. Assim, os EUA davam “ajuda alimentar” ao Japão por meio da exportação de farinha de trigo. Mas adivinha? No Japão não se comia farinha de trigo da mesma forma que no Ocidente.
George Solt conta que a introdução do “american way of life” na terra do Sol nascente foi um esforço a muitas mãos. Na época, representantes dos interesses agrícolas dos EUA se uniram a nutricionistas no Japão para “espalhar o evangelho da superioridade do trigo, da carne e dos laticínios” em relação à dieta tradicional, baseada em arroz, peixe e produtos de soja.
O governo japonês também fez sua parte, incluindo biscoitos na merenda escolar e até organizando uma campanha em que veículos com alto-falantes percorriam as ruas, incentivando a população a comer pão.
“Cada vez que via um deles, um pensamento cruzava minha mente: estava insatisfeito com a ideia de que a farinha deveria ser usada exclusivamente para pão.” Esse é um depoimento de Momofuku Ando no livro da Nissin. Ele nasceu em 1910 em Taiwan – que, nessa época, era uma colônia japonesa. Sua família era bem estabelecida no ramo têxtil. É a partir de uma herança que ele inicia sua jornada como empreendedor, repleta de negócios que abrem e fecham, e com direito até a uma prisão por evasão fiscal.
Em 1948, Ando entra na indústria de alimentos, a princípio produzindo sal e, depois, furikake, que é um condimento para arroz normalmente feito de algas ou resto de peixes.
Outro produto era o “becycle”, um extrato de proteína derivado da medula óssea de vacas e porcos, vendido a hospitais para uso por pacientes que necessitassem de suplementação nutricional.
De acordo com Solt, houve ainda uma tentativa mal sucedida de criar alimentos a partir do extrato de rãs cozidas.
“O modelo de negócios para todos esses empreendimentos se baseava no ultraprocessamento de ingredientes de baixo custo ou que saíam de graça, por nem serem considerados comestíveis”, escreveu o historiador em sua tese. Para ele, a produção de lámen instantâneo – que aconteceria anos depois – seguiria a mesmíssima lógica, pois havia tanto a disponibilidade de excedente de farinha de trigo dos EUA, como de partes não comidas de frango.
Esse modelo de negócios também se beneficiava da proximidade com o poder, já que tudo isso era vendido através de canais do governo, que chancelava os produtos como “nutritivos”.
No livro da Nissin, o próprio Ando não esconde que tinha trânsito fácil com autoridades, e expressou a elas sua perplexidade em relação à campanha governamental em prol do pão: “Eu acreditava que a adaptação a uma dieta de pão era o equivalente à adaptação à cultura ocidental. E confrontei um representante do governo: por que você também não incentiva o consumo de comida asiática tradicional? Macarrão?”
A mágica do marketing
Em 25 de agosto de 1958, foi lançado o Chikin Ramen, um macarrão instantâneo à base de farinha de trigo que continha na massa alguns elementos que serviam para imitar o sabor de um caldo de lámen feito com frango. (Só depois viria o pozinho com essa mesma função.)
Chikin Ramen e sua linha de fabricação. Foto: History Extra/reprodução
Momofuku Ando batizou o produto de “ramen mágico” por ser “um alimento pronto para comer em apenas dois minutos após a adição de água quente”.
Mas o que se provaria realmente mágico era o talento de Ando para o marketing. A começar pelo slogan – que reverbera até hoje – de que o produto se tratava do “primeiro macarrão instantâneo do mundo”.
Segundo George Solt, uma empresa chamada Matsuda Sangyō já havia lançado um produto idêntico chamado Aji homens tsuke Chūka (macarrão chinês com sabor) em 1955 – portanto, três anos antes do Chikin Ramen.
Mas, além de não ter garantido uma patente, essa empresa pecou justamente no marketing, e interrompeu a produção alguns meses depois do lançamento devido a vendas fracas.
Olhando em retrospecto, é inegável que o macarrão instantâneo foi uma inovação quando surgiu. Ao contrário das outras massas, o processo de produção envolve fritura, que expulsa a umidade, fazendo com que o produto dure muito. Ao mesmo tempo, se você joga esse macarrão frito na água quente, ele cozinha rápido.
Mas nem toda inovação se transforma em produto. Muito menos em produto global e pop – como, inegavelmente, é o caso do miojo. Segundo a Associação Mundial de Macarrão Instantâneo (WINA, na sigla em inglês), formada por dezenas de empresas fabricantes, nada menos do que 100 bilhões de pacotes do produto são consumidos no planeta anualmente.
Um dos acertos do fundador da Nissin foi assegurar uma boa distribuição do miojo. Em 1959, ele firmou uma parceria com a Mitsubishi, empresa que se notabilizou mundialmente por intermediar a importação e a exportação de uma vasta gama de produtos.
A distribuição garantiu espaço para que a produção crescesse. Nos oito primeiros meses da operação, seis mil unidades de miojo saíam da fábrica da Nissin. Dois anos depois do início da fabricação, esse número havia saltado para 1,2 milhão.
Os laços de Ando com o governo japonês também foram úteis. Não só porque o mercado de farinha de trigo era controlado, mas também porque, em 1960, a Nissin recebeu permissão para comercializar o miojo como uma “comida especial saudável” após concordar em enriquecer o produto com aditivos de vitamina B1 e B2. Poucos anos depois, a empresa começou a adicionar ao miojo um suplemento proteico, a lisina.
O apelo para o nutricionismo era forte. A primeira embalagem do Chikin Ramen estampava alegações como: “Constrói força” e “Uma refeição completa: nutritiva e saborosa”.
E isso também tinha como pano de fundo o imperialismo dos EUA: segundo George Solt, na época, nutricionistas começaram a propagandear que o consumo de farinha de trigo e carne eram a razão por trás da suposta superioridade física e mental dos norte-americanos em relação aos japoneses. Baixo astral, né?
Falando em contexto, outra coisa é certa: o miojo começa a circular num período em que aconteciam profundas transformações no mundo e no Japão.
Por lá, o primeiro supermercado foi inaugurado apenas um ano antes do lançamento do Chikin Ramen. Além disso, o miojo começou a ser vendido no momento de guinada na estrutura familiar, com muitas mulheres indo trabalhar fora e optando por apenas um filho. Por fim, a chegada do macarrão instantâneo coincidiu com a popularização da televisão, meio no qual a Nissin nadou de braçada.
No top 10
O Brasil é o 10º país que mais consome miojo no mundo. São mais de 2,7 bilhões de unidades, segundo a Associação Mundial de Macarrão Instantâneo.
E, quando o assunto é consumo per capita, saltamos para a 9ª posição. Em média, o brasileiro manda para dentro 13 pacotes de miojo por ano.
A história de como isso aconteceu também tem a ver com a Nissin, embora o produto tenha chegado em terras tupiniquins por outras mãos.
Por a Nissin ser uma empresa de capital fechado, o Joio não conseguiu muitos documentos sobre o início dessa história por aqui. Mas uma consulta nos registros da Junta Comercial do Estado de São Paulo confirmou que o marco zero é 1965.
Também nos valemos de um relato de terceira mão, feito 50 anos depois disso. Em 2015, o ex-diretor do departamento de propriedade intelectual da Nissin, Masaki Kato, veio ao Brasil dar uma palestra justamente sobre a chegada do macarrão instantâneo por aqui.
De acordo com o site Hashtag, que cobriu o evento, Kato contou o seguinte: em 1965 o taiwanês Ko Kim Pyo abriu uma empresa chamada Myojo. Só que já existia uma empresa bem forte com esse nome no Japão, o que rendeu um processo a Pyo. Ele então fez uma adaptação, e Myojo virou Miojo.
Mas o que a Nissin tem a ver com isso?
Em 1972, parte do controle acionário da Miojo foi para a japonesa Ajinomoto, que já trabalhava com a fabricante brasileira como fornecedora do tempero. Três anos depois, a Ajinomoto passou a dividir o controle acionário da Miojo com outra empresa japonesa. Ela mesma, a Nissin.
As duas formaram uma joint venture que encerrou suas atividades só em 2015, quando a Nissin comprou as ações da Ajinomoto por R$ 1 bilhão. Na época, o faturamento da joint venture chegava a quase R$ 700 milhões por ano.
Por serem países bastante diferentes, o jeito como o miojo foi apresentado no Brasil não teve muito a ver com a cultura japonesa do lámen – prato que, aliás, só ficou conhecido de verdade por aqui na década passada.
Mas os brasileiros já curtiam uma massinha – como destacou um executivo da Nissin nos anos 80 quando foi instado a explicar por que a empresa tinha decidido investir aqui. Voltando à década de 60, a Miojo resolveu apresentar seu produto como “spaghetti vitaminado instantâneo”, numa referência à culinária italiana, com a qual os brasileiros estavam mais familiarizados.
Talvez por essa estranheza, o macarrão instantâneo não atraiu o interesse de outras empresas por 16 anos. Remando sozinha por águas calmas, não admira que a marca Miojo tenha virado o nome do produto no Brasil. Tipo Bombril, Band-Aid e Chiclete.
Mas, no início dos anos 80, as coisas começaram a mudar. Uma matéria do Jornal do Brasil dá conta de que as vendas de miojo cresciam uns 10% ao ano, enquanto as de macarrão sofriam sucessivas quedas. É aí que empresas como Adria começam a investir no segmento instantâneo.
Nessa mesma reportagem, um executivo da Nissin-Ajinomoto mostrava tranquilidade em relação ao novo cenário: “Por enquanto não existem concorrentes, mas parceiros”. Segundo ele, a “grande briga” era para ampliar o consumo de miojo entre os brasileiros.
Não há dúvidas de que essa briga foi vencida.
Em 1980 tínhamos cerca de 120 milhões de habitantes e o consumo de pacotes por ano era, segundo a Nissin, de 200 milhões. Cada brasileiro comia um pacote de miojo.
Em 2001, o consumo per capita alcançou cinco pacotes. E, hoje, como já dissemos mais na frente, chegamos a quase 13 pacotes por habitante.
E nada indica que vá parar por aí. De acordo com a Abimapi, associação que reúne os fabricantes de massas alimentícias no país, as vendas das massas instantâneas cresceram quase 20% em 2020.
Comida de criança?
Por ser uma empresa de capital fechado no Brasil, a Nissin só divulga o que quer, quando quer. Em 2001, quando a Nissin detinha 65% das vendas de macarrão instantâneo no país, ela divulgou alguns dados através de uma matéria no Estadão.
Na época, o Departamento de Marketing da empresa havia encomendado uma pesquisa entre seus consumidores que chegou à conclusão de que a faixa etária mais lucrativa era formada por crianças com até 12 anos.
O texto não relata quantos pacotes essa galerinha comia. Mas dá para inferir que eram muitos, já que a faixa etária entre 15 e 25 anos ficava atrás, consumindo impressionantes nove pacotes por mês – 108 por ano.
A relação entre miojo e infância é um campo fértil. Desde o início, as crianças foram um público-alvo da Nissin, junto com os homens solteiros e com as “jovens donas de casa”, com quem formam um duo, na verdade.
Uma das propostas originais de Momofuku Ando era distribuir o miojo nas escolas, incorporá-lo à merenda no Japão.
Por aqui, antes de a Nissin ser acionária, a Miojo também se empenhava nesse sentido.
Na propaganda mais antiga que achamos, de 1972, a Miojo crava que seu produto vinha para “revolucionar os nossos hábitos de alimentação” e destaca que “várias escolas o adotaram como merenda escolar”.
Outro componente importante do esforço para promover o produto para crianças foi a introdução de personagens. A Nissin criou vários, como “Chibikko” – que surgiu no Japão em 1965 para ser a “imagem da saúde” (detalhe: trata-se de uma criança loura, branca e com sardas). Por aqui, a estratégia foi um pouquinho diferente. Em vez de construir do zero um personagem com apelo para o público infantil, a Nissin vinculou seu produto a algo já conhecido. No caso, personagens da Turma da Mônica, que já estavam bem estabelecidos no imaginário da criançada desde os anos 1970.
Foi nessa época que a Turma da Mônica entrou no universo dos alimentos, primeiro fazendo propaganda de ingredientes culinários, como vinagre e purê de tomate, e depois, com desembaraço, de produtos ultraprocessados.
Desde 1986 há embalagens de miojo com a Turma da Mônica. A propaganda também pode ser encontrada, até hoje, nas revistinhas que falam diretamente a esse público.
O tempo passa, mas a Turma da Mônica continua a serviço da venda do produto ultraprocessado: publicidades de 1989, 2010 e 2022
Mas a presença de personagens também influencia a escolha dos pais. Vanille Pessoa, professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), contou ao Joio uma história da época em que atuava como nutricionista em uma unidade básica de saúde do SUS em Cabedelo, região metropolitana de João Pessoa.
“Um belo dia estava lá atendendo e me chega uma mãe com uma criança de mais ou menos quatro anos, com os exames mais alterados que eu já tinha visto”, relembra.
A criança tinha desenvolvido diabetes. E tinha problema de colesterol alto. Na consulta, a mãe contou que a criança comia quatro pacotes de miojo por dia: dois no almoço, dois no jantar.
“E aí, quando a gente foi discutir sobre alimentação, eu falei: ‘E esse miojo que ele come? Você sabe o que é que tem nesse miojo?’” A nutricionista pegou embalagens do produto, para conversar sobre a tabela nutricional e a lista de ingredientes.
“E aí nessa hora ela olhou para mim e falou: ‘Não, doutora, mas não é esse, não. É um miojo que tem a foto da Turma da Mônica, é miojo que é pra criança. Não é o que faz mal, não’”.
Um estudo de 2018 analisou a composição de 281 produtos consumidos por crianças e bebês. Entre todos esses produtos, o miojo foi o campeão do sódio. Um único pacotinho contém mais sal do que uma criança pode comer num dia inteiro. São sete vezes mais sal do que seria considerado um limite sensato.
Na categoria dos aditivos, o miojo foi o vice-campeão, com 11. Perdeu para o mini bolo, com 16 aditivos.
Mais recentemente, uma análise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) a qual o Joio teve acesso constatou que alguns macarrões instantâneos chegam a ter 75% de aditivos na sua composição. De 74 produtos analisados, nenhum tinha menos do que 26%. Cor, sabor e cheiro são quase sempre resultado de aditivos: 100% dos produtos tinham corante, 93% realçadores de sabor e 92% aromatizante.
As ciências da saúde ainda têm muitas dúvidas sobre os efeitos dos aditivos. Porque são tantos, e a nossa alimentação é tão complexa, que não é fácil medir os impactos de cada uma dessas substâncias. Mas as pesquisas estão avançando no sentido de demonstrar os efeitos negativos.
Sempre igual, sempre diferente
Se você foi adolescente nos anos 2000, é possível que se lembre de uma campanha publicitária dedicada a alavancar as vendas de uma sandália de plástico. “Sempre igual, sempre diferente”, dizia o slogan.
Naquela época, os modelos do calçado não variavam quase nada, de modo que a propaganda apelava para a vaidade da consumidora, dizendo que ela era única: “Mesmo que se vista igual, ninguém no mundo, nunca, vai ser igual a você.”
Existe pelo menos outro produto que, até hoje, se encaixa perfeitamente nesse slogan: o miojo.
O macarrão instantâneo é uma “massa alimentícia” que tem mais ou menos os mesmos ingredientes. Farinha de trigo, sal, gordura vegetal e, por ser um alimento ultraprocessado, outros tantos impronunciáveis que a gente não sabe o que são, nem o que causam direito. É sempre igual.
Mas, por obra e arte do marketing, o miojo também é sempre diferente. A Nissin tem, hoje, 11 linhas de produtos no Brasil. Com 53 sabores.
Galinha caipira sem galinha. Carne sem carne. Carbonara sem carbonara. Tem até brócolis com molho branco. É o triunfo da cara de pau.
Parte da jornada desse produto rumo ao sucesso tem a ver com as estratégias que a Nissin usou para mascarar o caráter monótono de seu produto, e manter bem aceso o desejo dos consumidores.
Maria Alice de Faria Nogueira, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que muitas vezes confundimos marketing com comunicação – mas o marketing vai além.
Ele começa na invenção do produto – momento em que é preciso analisar o cenário social, econômico e político –, mas compreende também lançamento, distribuição, promoção e venda. E não acaba aí. “Um bom marketing não para”, frisa a professora.
É aí que entram as muitíssimas variações que uma empresa pode ter de um produto, como o miojo.
Variações de sabor, variações de formato (no pacote pequeno ou grande; no copo), variações de temas.
Em outubro de 2020, a Nissin lançou duas novas linhas de miojo: “Saladaria” e “DeBoas”. São linhas cujo apelo transita entre o saudável e o gourmet.
O Saladaria, por exemplo, parece ser uma mudança de estratégia da Nissin na relação com os alimentos frescos e tradicionais. Em vez de competir por espaço, passou a sugerir que esses alimentos sejam complementares ao miojo. Que sejam servidos junto. Poderia ser motivo pra comemoração?
Na nossa opinião, não. Parece muito mais um sinal de vitória da Nissin, de quem já consolidou um reinado, e agora pode avançar para se inscrever de vez como um elemento da nossa cultura alimentar.
Outra linha que chama atenção é a Nosso Sabor, lançada em 2007 e vendida só nas regiões Norte e Nordeste. Nela, os sabores tradicionais da marca – galinha caipira, carne, etc. – supostamente ganham um toque regional. Todas as embalagens estampam muitas folhas de coentro. A publicidade destaca o uso do coentro o tempo todo. Mas…
Não tem coentro em lugar algum. Sendo totalmente precisos, a lista de ingredientes de um dos sabores, o galinha caipira, fala que tem salsa triturada no tempero em pó. Coentro, mesmo, mandou lembrança.
Aquela pesquisa do Departamento de Marketing da Nissin que teve alguns resultados divulgados pelo Estadão em 2001 mostrou que o brasileiro preferia um miojo sem caldo, mais distante do lámen e mais próximo do macarrão italiano: mais da metade dos entrevistados escorria a água do produto antes de adicionar o tempero.
Também era costume incrementar o miojo com ingredientes como requeijão e feijão… Recentemente, a publicidade da Nissin tem explorado ao máximo essa variante que torna o sempre igual em sempre diferente – e depende só do consumidor.
Essa escuta e adaptação, contudo, não são novidade, mas chave do sucesso da Nissin. Segundo George Solt, a empresa se expandiu para fora do Japão fazendo com que o produto refletisse as preferências das pessoas de cada país e região.
“Os efeitos têm sido o deslocamento de práticas culinárias e a preparação das bases para as futuras gerações de consumidores se tornarem dependentes da conveniência do cozimento instantâneo, semelhante ao que a farinha de trigo dos EUA significou para o Japão”, avaliou o historiador.
Uma coisa que chama atenção nessa história é como toda a propaganda do miojo colou de tal forma na cabeça das pessoas que fatos facilmente verificáveis passam ao largo quando se fala do produto.
Será que o miojo é tão mais rápido assim que outras massas? Faz o teste aí na sua casa com o cabelinho de anjo e conta pra gente em quanto tempo ele cozinhou.
Será que o miojo é assim tão mais barato que outras massas? Na verdade, não é. Nunca foi.
No Japão, o miojo começou a ser vendido por 35 yenes, contra 6 do udon – outro macarrão à base de farinha de trigo. Garimpando anúncios e notícias antigos no Brasil, descobrimos que nos anos 70 e 80, o quilo do miojo custava o dobro do quilo do macarrão. Hoje em dia, um quilo de miojo custa em torno de R$ 20. Isso é suficiente pra comprar três quilos de macarrão comum.