Acusação veio depois da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos denunciar o aplicativo Nutri Escolha, do Carrefour, por violação da rotulagem frontal aprovada pela Anvisa
No calor da disputa judicial em torno do aplicativo Nutri Escolha, o Carrefour chegou a chamar a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) de “lobo em pele de cordeiro”.
Em uma rara troca de farpas pública, a empresa alegou que, ao litigar contra o aplicativo, a Abia se disfarçou de defensora dos consumidores para proteger, na realidade, interesses de seus associados.
A rede de supermercados também acusou a Abia de manipular imagens com a intenção de induzir a erro a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça, e de ter atrasado a implementação da nova legislação por rotulagem frontal no Brasil.
A Abia, por sua vez, censurou o Carrefour por promover “maniqueísmo nutricional” e “enganar e confundir o consumidor” ao distribuir o aplicativo, que ranqueia alimentos em mais ou menos saudáveis, sugerindo alternativas “mais equilibradas” dentro do portfólio da rede.
Troca de acusações entre a Abia e o Carrefour
Em nota enviada ao Joio, o Carrefour defendeu o Nutri Escolha, afirmando que o aplicativo tem como objetivo permitir que “o consumidor realize suas compras de forma mais consciente, facilitando suas escolhas alimentares”. A Abia foi procurada pela reportagem, mas não respondeu aos nossos questionamentos.
O Nutri Escolha
O aplicativo Nutri Escolha foi lançado pelo Carrefour em julho de 2021, com a promessa de facilitar escolhas mais saudáveis e baratas ao consumidor.
O aplicativo utiliza o método Nutri Score, criado na França, país de origem da rede varejista, e utilizado de maneira voluntária por fabricantes de alimentos naquele país.
O Nutri Score registra a porcentagem de óleo de canola, castanhas, frutas, legumes e verduras para conferir pontos positivos aos produtos, e o teor de açúcar, sal e gorduras para conferir pontos negativos.
Somados, os pontos resultam em uma nota que vai de “A” a “E”. Quanto mais próximo de “A”, mais saudável, e vice-versa. O modelo chegou a ser defendido durante as discussões na Anvisa sobre a nova rotulagem frontal no Brasil, pela Associação Brasileira de Nutrologia, mas acabou preterido.
Além de fornecer pontuações, o aplicativo do Carrefour também oferece aos usuários alternativas “mais saudáveis” ou mais baratas dentro da mesma categoria do produto analisado.
Disputa na Senacon
Logo após a estreia do aplicativo, a Abia ingressou com denúncia na Senacon, chamando o Nutri Escolha de “ferramenta de marketing e publicidade”.
A entidade alegou que o Nutri Escolha estava dando notas diferentes a produtos com perfil nutricional semelhante e que o app privilegiava produtos da marca Carrefour ao sugerir opções mais saudáveis e baratas.
Os produtos de marca própria são o centro de uma antiga queda de braço global entre varejistas e indústria; entre outras questões, os fabricantes alegam que as redes utilizam esses produtos para rebaixar preços e copiar produtos cujo processo de desenvolvimento é caro.
Segundo o Carrefour, 15,3% da sua receita líquida total de alimentos é composta por produtos de marca própria, que custam em média 30% menos quando comparados a marcas líderes de mercado.
Em 2020, a multinacional varejista tinha, no Brasil, 2.769 produtos alimentares comercializados sob marca própria, 600 deles lançados apenas naquele ano.
A Abia também argumentou que o Nutri Escolha estaria em contradição com o sistema frontal de rotulagem que foi aprovado pela Anvisa em 2020 e que entrará em vigor a partir de outubro deste ano.
A RDC que instituiu a lupa proíbe que outros modelos de rotulagem sejam exibidos nas embalagens dos alimentos justamente para evitar que informações divergentes confundam o consumidor.
Para a Abia, o algoritmo do Nutri Escolha ignora o fundamental: o teor de açúcar, sal e gordura (que são objeto do sistema de lupa), enquanto confere notas altas a alimentos ricos nesses ingredientes.
A Abia também reclamou que o Carrefour vinha exigindo dados comerciais sigilosos aos seus fornecedores com o pressuposto de abastecer o aplicativo, sem qualquer transparência em relação à utilização das informações prestadas.
Carrefour se defende
Instado a se manifestar, o Carrefour apontou “conflito de interesses” na denúncia da Abia e insinuou que a associação na realidade estaria incomodada com as notas baixas recebidas por produtos processados fabricados por suas associadas.
A empresa conseguiu demonstrar que alguns de seus produtos de marca própria na realidade recebiam notas menores do que outros nas mesmas categorias, e argumentou que nenhum produto com alto teor de ingredientes críticos (sal, gordura e açúcar) havia recebido nota A e B do aplicativo.
Em decisão bastante rápida, 25 dias após o ingresso da denúncia, a Senacon determinou a suspensão do app, entendendo que o Nutri Escolha induz o consumidor em erro e viola o direito do consumidor à informação.
Na decisão, o diretor substituto do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, Fernando Moesch, argumentou que o algoritmo do aplicativo é pouco transparente, e que, por permitir compras online, o app estaria sobrepondo o Nutri Score ao método da lupa – uma vez que os usuários sequer poderiam ver os avisos frontais de alto conteúdo nutricional previstos pelo sistema de rotulagem aprovado pela Anvisa.
“[O aplicativo] impacta sistema regulatório vigente e toma para si competência regulatória que não lhe cabe”, escreveu Moesch na decisão.
O processo vai à Justiça
O Carrefour então ingressou com mandado de segurança no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, pedindo a suspensão da decisão.
A rede de mercados apontou inconsistências no inquérito administrativo que havia sido aberto no âmbito da Senacon e alegou ter tido seu direito à ampla defesa cerceado.
Também acusou a Abia de manipular imagens juntadas à denúncia original, tentando induzir a Senacon em erro ao alegar que alimentos semelhantes teriam recebido notas diferentes no Nutri Escolha.
Repetindo argumentos trazidos ainda na Senacon, a empresa chamou a Abia de “lobo em pele de cordeiro” e lembrou que a entidade litigou contra a primeira tentativa da Anvisa de criar alertas para produtos com excesso de sódio, açúcar e gorduras, em 2010.
Na época, a Anvisa tentou – através da RDC 24/2010 – fazer com que propagandas de alimentos com alto teor de ingredientes críticos exibissem mensagens alertando para o risco de desenvolvimento de hipertensão, diabetes e doenças do coração.
Mas a iniciativa foi barrada judicialmente pela Abia, que argumentou que a Anvisa não tinha competência para legislar sobre o tema.
Um livro publicado pelo pesquisador Marcello Baird, defendido como tese de doutorado na Universidade de São Paulo, registra que a Abia não só judicializou bem-sucedidamente o tema, como fez lobby junto ao Congresso Nacional, à Advocacia Geral da União (AGU) e à campanha da então candidata à presidência Dilma Rousseff (PT) – que teria prometido “botar ordem na casa” da Anvisa uma vez eleita.
Segundo Baird, a pressão deu certo. Em 2011 Dilma nomeou Jaime César Oliveira, ex-funcionário da Unilever, para a diretoria da Agência. Mais próximo da indústria de alimentos, Oliveira era contrário à regulação da publicidade e teria a função de estabelecer um novo canal de diálogo com o setor.
Desfecho
Após decisão favorável ao Carrefour na segunda instância da Justiça Federal, o NutriEscolha permanece no ar. Clique aqui para conferir a resposta completa do Carrefour.