Desmatamento e desmonte de políticas públicas remontam a um passado de escassez no semiárido nordestino, onde insegurança alimentar, queimadas e desertificação avançam a níveis recordes
Quem inventou a fome? “São os que comem”, atestou com propriedade Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), hoje considerada uma das mais importantes escritoras brasileiras e, em seu tempo, sobrevivente da fome no Brasil.
Num passado que antecedeu as obras de Carolina, a literatura nacional popularizava personagens vítimas da escassez de água e alimento durante as secas históricas que castigaram os sertões nordestinos entre os séculos 19 e 20.
Nos chamados “romances regionalistas”, Manuel de Freitas, personagem de Rodolfo Teófilo, Chico Bento, de Graciliano Ramos, e Fabiano, de Rachel de Queiroz, são exemplos ficcionais dos pais de família sertanejos que, abandonados à própria sorte pelos governos e donos de terras, buscavam meios de sobreviver aos períodos dramáticos de estiagem no interior do Nordeste.
Também na imprensa, na academia e na política institucional, o século passado foi tempo de olhar para a fome como a expressão biológica de males sociais, conforme descreveu o prestigiado médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro (1908 – 1973).
Já entre 1974 e 1975, o IBGE realizou sua primeira pesquisa nacional. O Estudo Nacional da Despesa Familiar (Endef) revelou que a desnutrição infantil atingia, respectivamente, 24,5% e 27% das crianças nas regiões Norte e Nordeste, ao passo que acometia 11,7% e 13,3% da população infantil nas regiões Sul e Centro-Oeste. Tardiamente, os números confirmavam as análises de Josué sobre as profundas desigualdades regionais nas quais se estruturou o país.
Os campos de concentração da seca
A fome, portanto, foi e é assunto muito conhecido no Brasil. Mas, ainda hoje, quando o acesso à informação é ampliado pelo digital, pouco se conhece sobre a história dos campos de concentração da seca no Ceará, criados há cerca de cem anos.
Foi durante as secas de 1915 e 1932 que milhares de famílias nordestinas retirantes da fome foram confinadas em “currais”, espalhados estrategicamente pelo governo estadual, com anuência do poder federal, em rotas de migração cearenses.
Eu seu livro Isolamento e poder – Fortaleza e os Campos de Concentração na seca de 1932 (Imprensa Universitária), a historiadora Kênia Sousa Rios afirma que o objetivo dos confinamentos era “manter a cidade dos ricos afastada da miséria”. Prática que, segundo ela, “concretizou-se na construção de locais para o aprisionamento dos flagelados, bem como em frentes de trabalho e em políticas de emigração forçada para outros estados”.
Nos campos – e mesmo após a desativação dos locais, em 1933, – dezenas de milhares morreram por inanição e doenças. Sobre esse contexto, Valdecy Alves, advogado e pesquisador dos campos de concentração cearenses, frisa: “é muito importante dizer que não é a seca que mata, não é a seca que bota o pessoal pra ir embora.”
Em entrevista ao Joio, Alves defende que a história dos campos de concentração da seca não diz respeito apenas ao passado, “mas ao passado repetido, representificado, que vai virar futuro se o nosso poder público não aprender com seus erros”.
De novo, a fome epidêmica
Apesar de repercutidos nos meios acadêmicos e literários, os massacres, registros e estudos daquele passado pouco distante não deram conta de garantir que as causas da fome no país fossem assumidas, principalmente pelo Estado, como realidade estrutural e superadas na atualidade.
Um artigo publicado por pesquisadores da Cátedra Josué de Castro, da Universidade de São Paulo (USP), como parte de um projeto em homenagem aos 75 anos da obra “Geografia da Fome” de Josué de Castro, sintetiza: “Primeiramente rural e localizada em particular nas regiões Norte e Nordeste, vinculada à seca, a fome se espalhou para todas as regiões do Brasil. Urbanizou-se. Mudou as características e não foi embora: tal qual visita inconveniente, a fome insiste em ficar. Houve um breve momento, é verdade, em que parecia que ela seria vencida, tornando-se uma má lembrança de outro tempo. Não foi o que ocorreu, infelizmente – ainda não.”
No presente, algumas das principais manchetes de 2021 estampam o retorno da fome em escala epidêmica no Brasil, com imagens de mulheres em disputa por restos de comida no lixo de supermercados e pessoas que aguardavam em filas de doação de pelancas e ossos com retalhos de carne.
Um estudo da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar) revela que mais da metade da população brasileira (55,2%) – ao menos 116,8 milhões de pessoas – vive sem acesso pleno e permanente à alimentação no país.
Segundo a pesquisa, mais uma vez, o cenário de subnutrição é agravado no Norte e no Nordeste, onde mais de 60% e 70% da população, respectivamente, convivia com algum nível de insegurança alimentar até o final de 2020.
Já a fome (insegurança alimentar grave), que no mesmo período afetava ao menos 9% da população brasileira, ou mais de 19 milhões no país, esteve presente em 18,1% dos lares no Norte e em 13,8% no Nordeste – região que abriga o maior número absoluto de pessoas em condição cotidiana de fome no país: cerca de 7,7 milhões.
As análises e os dados divulgados pela Penssan evidenciam que a pandemia da covid-19 agravou a situação da subalimentação e das desigualdades regionais no Brasil, mas ressaltam que, mesmo antes de 2020, a insegurança alimentar já crescia a níveis não vistos desde o início dos anos 2000.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) mostram que, de 2004 a 2013, a parcela de brasileiros em situação de fome havia caído de 9,5% para 4,2% – o nível mais baixo da série. Já entre 2013 e 2018, a Pnad calcula um aumento médio da população faminta no Brasil em 8% ao ano.
No período seguinte, de 2018 a 2020, o crescimento anual da insegurança alimentar grave saltou para 27,6%, o que significa que, em apenas dois anos, o número de pessoas que passaram a conviver com a fome no país saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões, segundo a Rede Penssan.
Ao analisar a saída do Brasil do Mapa Mundial da Fome, em 2014, Tereza Campello, então ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, destacou que esses bons resultados deviam-se ao investimento federal em políticas nacionais de enfrentamento à subalimentação, como o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criados no âmbito do Fome Zero para ampliar o acesso à renda e à alimentação de qualidade no país.
“Para um país conseguir combater a fome tem que colocar o pobre no centro da meta e transformar aquilo em prioridade. Se não assumir que combater a fome é essencial, ela não vai acabar”, afirmou Campello na ocasião.
“A base é a água”
A conhecida e histórica situação de subnutrição e pobreza que atinge ainda hoje em maior escala as regiões Norte e Nordeste do país também vale para as áreas rurais brasileiras, segundo os dados da Penssan. Nessas regiões, por todo o país, a insegurança alimentar grave se mostrou uma realidade em 12% dos domicílios, especialmente onde não há disponibilidade de água adequada para consumo humano, produção agrícola e uso animal.
“No caso do Nordeste, a gente fala de seca com flagelo da década de 90 para trás. A partir dos anos 2000, as secas, que são cíclicas, vieram, mas seus efeitos foram atenuados por políticas de convivência com o semiárido, como os programas de acesso à água nas comunidades rurais”, afirma João Evangelista Santos Oliveira, coordenador no Piauí da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede de organizações civis que propõem estratégias de convívio com o clima da região, em oposição ao ideal de “combate à seca”.
Oliveira se refere especialmente ao Programa Um Milhão de Cisternas. Criado pela ASA há mais de 20 anos para suprir a demanda por água entre famílias do semiárido, o projeto atua na construção de reservatórios de cimento com tecnologia para captar e armazenar água das chuvas. Em épocas de estiagem, as cisternas servem também para o armazenamento de água fornecida por carros-pipa do Exército brasileiro.
Em 2003, o projeto da ASA se tornou política federal, nomeada Programa Cisternas, e ganhou escala por meio de recursos do extinto Ministério de Desenvolvimento Social (2004 – 2019), com mais de cinco milhões de pessoas assistidas pela construção de cerca de 1,1 milhão de cisternas até outubro de 2021.
Segundo Oliveira, além de suprir as necessidades primárias da população rural com água para beber e uso diário, as cisternas também possibilitam a geração de renda pela venda de alimentos a partir da agricultura familiar. “Isso garante sustento às famílias e viabiliza a economia local. Então, a base é a àgua”, defende.
O grande número de reservatórios construídos pelo programa federal, no entanto, ainda não supre a demanda por água limpa na região. A ASA calcula que mais de 357 mil lares ainda vivem sem acesso à água potável no semiárido, além de cerca de 800 mil famílias sem condições hídricas de cultivar seu próprio alimento.
O pequeno agricultor piauiense Humberto dos Santos Costa é um dos que hoje aguardam pela construção do reservatório de alvenaria no quintal de casa. “O que a gente mais pede é uma cisterna para colocar água pra gente beber. E seria bom demais essa ajuda pra fazer uma hortinha pra gente até vender.”
Costa é morador de uma comunidade rural em São Raimundo Nonato, no Piauí, estado onde a demanda por cisternas para consumo e produção chegava a quase 140 mil em 2019, segundo dados enviados pela ASA à nossa reportagem.
Apesar de mais de 1 milhão de famílias da região semiárida, que abrange a maior parte do Nordeste, ainda aguardar na fila pelos reservatórios, os investimentos federais destinados à construção de cisternas despencaram nos últimos anos.
De acordo com dados disponibilizados pelo Sistema Vis Data do Ministério da Cidadania, hoje responsável pelo Programa Cisternas, o governo federal entregou nos últimos dois anos o menor número de reservatórios para consumo e produção familiar desde a criação do programa. A baixa também se reflete nos recursos destinados ao orçamento da política.
Em 2020, o governo investiu na construção de 8.031 reservatórios de água para consumo e produção agrícola, o que representa uma queda de 74% em relação a 2019. Já no ano passado, foram entregues apenas 2.682 unidades – o menor número de toda a série histórica do programa, que chegou a construir mais de 100 mil cisternas anualmente, entre 2013 e 2015.
“Desde 2018, a gente está sem condições de construir novas cisternas e a demanda vem só aumentando. Hoje, nós estamos em débito grande com muitas famílias porque a construção depende de apoio financeiro”, relata Heronildes Negreiros, coordenador da Cáritas Diocesana de São Raimundo Nonato (PI), organização que integra a ASA e é responsável pela entrega das cisternas em municípios piauienses.
De acordo com Negreiros, nos últimos anos, “houve desvalorização e falta de um olhar diferenciado para o rural” por parte do governo federal. A avaliação é reiterada por João Evangelista: “Nos governos Temer e Bolsonaro, foram cortados todos os recursos [federais] dos programas da ASA”, que hoje se mantém com apoio do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), da ONU, e de doações via campanhas de arrecadação em parceria com o Consórcio Nordeste.
Questionado sobre a atual situação de desfinanciamento do Programa Cisternas e a desassistência federal no semiárido rural, o Ministério da Cidadania não retornou ao contato da reportagem.
Outra preocupação latente entre famílias do campo é a incerteza em relação ao futuro dos programas de transferência de renda pelo governo federal, como o extinto Bolsa Família.
Até outubro de 2021, mais de 2,2 milhões de pessoas aguardavam na fila para receber o Bolsa Família no país, segundo cálculos do Consórcio Nordeste. Dessas, mais de 800 mil (36% do total) viviam no Nordeste. No mesmo mês, o governo federal anunciou a substituição do programa pelo Auxílio Brasil, após declarar intenção de cortar o benefício de 100 mil famílias nordestinas.
Além do medo de perder a renda e voltar à fome, o coordenador da Cáritas Diocesana de São Raimundo Nonato afirma que “a necessidade tá gritante entre as famílias que vivem de auxílios federais porque o poder de compra agora diminuiu muito. O que eles gastavam com um valor em um mês, agora não dá pra 15 dias”.
“As pessoas estão conscientes que está difícil e vai continuar difícil por um tempo ainda. Elas não estão vendo políticas públicas sendo implementadas e pensadas para que essas famílias saiam dessa situação. E nós também estamos conscientes disso, de que os dias estão difíceis”, segue Heronildes.
Fogo e deserto nos sertões
De acordo com o meteorologista e cientista do solo Humberto Barbosa, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o desmatamento e as mudanças climáticas também têm colaborado para o aumento da insegurança alimentar no semiárido brasileiro, onde a agricultura familiar é a base da alimentação nas comunidades rurais.
Predominante no Nordeste, a Caatinga é o bioma nacional onde se registrou o maior crescimento no número de queimadas em 2021, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Apenas no ano passado, foram registrados 17.917 focos de fogo na região – a maior quantidade em dez anos e uma alta de 23% em relação ao ano anterior.
Segundo Barbosa, o avanço do desmatamento nos últimos anos é o principal responsável pelo aumento das áreas desertificadas no semiárido, que abrange a maior parte do Nordeste e o norte de Minas Gerais.
A desertificação, explica o pesquisador, é o processo de degradação da terra que, quando desprotegida de sua cobertura natural e exposta a altas temperaturas, perde seus nutrientes, sua biodiversidade e, ao fim, torna-se morta e improdutiva para qualquer cultivo.
“No DNA do Brasil, não estava programado pra gente ter deserto. E por que hoje a gente tem? Exatamente por causa do uso intenso da terra e da [falta de sua] cobertura. Ou seja, pelas atividades humanas e queimadas, que são 99% provocadas por ação do homem”, afirma Barbosa.
No final de 2019, o Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), do Instituto de Ciências Atmosféricas (Icat) da Ufal, revelou que 13% de toda a região semiárida brasileira (cerca de 127 mil quilômetros quadrados, equivalente à extensão da Inglaterra) estavam em estágio avançado de desertificação. As causas, explica o pesquisador, são, além do desmatamento, os longos períodos de seca, as mudanças climáticas e o avanço de práticas agrícolas e extrativistas sem manejo e regulamentação adequados.
De toda a Caatinga, o estado mais atingido por incêndios é o Piauí, que até pelo menos 2020 abrigava 60% da área queimada do bioma, segundo o MapBiomas. Além disso, em janeiro de 2022, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) reconheceu a situação de emergência em 35 municípios piauienses afetados pela estiagem. Entre eles, Guaribas, no sul do estado, que é também o berço dos programas Fome Zero e Bolsa Família.
Natural de Guaribas, o agricultor aposentado Wilson Corrêa da Silva, de 76 anos, conta que, há mais de três anos, vivencia os efeitos da estiagem no campo: “Aqui, antigamente dava de tudo, mas hoje não chove mais, então acabou. [A terra] tá ressecada demais, o povo até desanimou.”
Humberto Barbosa, que também coordena o Lapis, lembra que a maior seca do país – em termos de duração e ampliação da escassez hídrica –, desde o primeiro registro oficial de 1845, ocorreu no período de 2012 a 2017 no semiárido.
Sobre a carência de chuva na área rural, outro pequeno agricultor guaribano, Antônio da Silva, desabafa: “Eu vivo da roça, lutando com gado, lutando com planta, e aí não chove, você fica desesperado.”
“Aquela planta que você planta é a mesma coisa que não plantar, não vai pra lugar nenhum, não tem chuva. Antes, a gente vendia, tinha renda. Vendia a farinha, o milho, o feijão, tudo dava. Hoje, não dá nada”, segue Silva.
“Já não depende só das chuvas”
Divulgado em agosto do ano passado, o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), principal órgão global responsável por organizar o conhecimento científico sobre mudanças do clima, afirma que “o Nordeste brasileiro é a área seca mais densamente povoada do mundo e recorrentemente afetada por extremos climáticos”.
Nos últimos meses de dezembro e janeiro, o semiárido recebeu sinais de confirmação dos alertas do Painel: chuvas intensas precedidas por um longo período de seca em municípios do Nordeste e de Minas Gerais, onde as precipitações extremas combinadas à falta de infraestrutura das cidades resultaram em dezenas de mortes e milhares de pessoas desabrigadas e feridas.
Além das perdas humanas, a alta intensidade e a rapidez das chuvas provocam erosões hídricas sobre o solo já vulnerável de boa parte do semiárido, explica Humberto Barbosa. Nesse cenário, o pesquisador afirma que, para que a região degradada ou já em processo de desertificação se recuperasse, seriam necessários altos investimentos.
“O que plantar ali já não depende só das chuvas, o trabalho que teria de ser feito para que a região voltasse a ser fértil é recuperá-la. E isso seria caríssimo”, avalia Barbosa.
Negócios na Caatinga
Além dos impactos socioambientais dos extremos climáticos sobre o semiárido brasileiro, o avanço acelerado do desmatamento na região também deixa em estado de alerta os pesquisadores do clima.
Na região de fronteira agrícola conhecida como Matopiba (sigla formada pelas iniciais de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) é onde se concentram os principais focos de desmatamento nos estados, de acordo com o Inpe.
“No passado, a gente tinha ali a fronteira entre dois ecossistemas, Cerrado e Caatinga, mas toda essa transição foi removida e Matopiba passou a ser dominantemente uma região agrícola, quase como um Mato Grosso do Sul na região Nordeste do Brasil”, explica Barbosa.
Dados do Mapeamento Anual da Cobertura de Terra no Brasil, do MapBiomas, mostram que, até 2020, a agropecuária já havia avançado sobre 11,26 milhões de hectares da Caatinga e respondia pela ocupação de 35,2% da área do bioma. Em paralelo, desde 1985, a região perdeu mais de um quarto (26,36%) de sua vegetação primária.
Quem monitora o desmatamento no Nordeste afirma ainda que, além da agropecuária, outros grandes negócios têm deixado sua pegada de desmatamento sobre a região.
“Pelo semiárido, também há forte presença do extrativismo mineral e da construção civil, pelas condições do solo, que tem alto valor comercial. Olhando as imagens [de satélite do Lapis], a gente percebe essa movimentação de retirada do solo na região”, segue Humberto Barbosa.
Já João Evangelista, da ASA, afirma acompanhar também o avanço dos “grandes projetos de energia eólica e solar que desmatam grandes faixas da Caatinga”, além das mineradoras, “que estão com todo o estado do Piauí mapeado”, em termos de potencial mineral.
“As grandes empresas, como a Vale e suas subsidiárias, conseguem facilmente as licenças para fazer prospecção na região, e isso já está em processo avançado de norte a sul do estado [piauiense], inclusive ameaçando comunidades tradicionais, povos quilombolas, indígenas, e criando novos conflitos agrários”, diz Evangelista.
Um dos maiores territórios quilombolas do país, que se estende por seis municípios do sul do Piauí e abriga mais de 1.700 famílias, é o Quilombo Lagoas. É lá que, nos últimos anos, moradores de uma das comunidades do território, localizada em São Raimundo Nonato, passaram a se preocupar com a presença da mineração.
“A gente aqui não espera nada de bom da mineração. Se nós vivemos da agricultura familiar, da apicultura, da ovinocultura, como é que vão sobreviver os animais com essa poeira e movimentação toda?”, questiona Carla Pereira Pindaíba, moradora e secretária da Associação Territorial do Quilombo Lagoas.
No ano passado, a empresa SRN Mineração recebeu uma licença prévia da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí para a extração de minério de ferro em municípios do estado que abrangem o território tradicional. Logo depois, a associação quilombola entrou com uma ação judicial no Ministério Público Federal para reverter a decisão, mas ainda aguarda um parecer.
Em 2009, Lagoas recebeu a certidão de comunidade quilombola expedida pela Fundação Cultural Palmares, mas ainda hoje espera pela conclusão do processo de titulação da terra pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que facilita a instalação de negócios extrativistas na região.
Na avaliação de João Evangelista, há urgência na regularização fundiária de comunidades do campo: “É preciso regularizar e dar condição para que essas famílias estejam juridicamente seguras para poder produzir, garantir alimentos, qualidade de vida e a preservação ambiental onde vivem.”
A cultura do fogo no sertão
Também em São Raimundo Nonato, outras comunidades são impactadas por uma atividade bastante conhecida (e praticada) no rural nordestino: o uso do fogo para “limpeza” de roça, queima de lixo e, mais recentemente, caça e preparação de alimentos.
“Esse [último] ano, parece que foi uma coisa mais geral. O que eu percebi, tanto por imagens de satélites quanto por contato com os bombeiros, é que os incêndios foram no Piauí todo. Foi um ano muito intenso, um dos mais difíceis que os bombeiros relataram quanto à questão de quantidades de focos [de fogo]”, afirma André Santos Landim, secretário Municipal do Meio Ambiente de São Raimundo Nonato.
De acordo com o secretário, 90% dos incêndios no município são causados por “limpeza de roça” para plantio, que ele afirma ser uma prática “cultural” na região. “Quando eu converso com os agricultores, eles falam que é algo que vêm trazendo de geração em geração.”
Em setembro de 2021, o Assentamento Serra dos Gringos foi o principal território atingido por incêndios de grandes proporções em São Raimundo Nonato.
“Quando chega o período de estiagem, de oito, dez meses, a gente se preocupa demais porque a nossa mata aqui fica como se fosse pólvora”, afirma Heronildes Negreiro, da Cáritas. “As folhas ficam todas secas e qualquer fagulha, ponta de cigarro ou fogueira de alguém que tá limpando sua terra ou caçando algo para alimentar sua família, pode ser o suficiente para causar um grande incêndio”, segue.
O secretário municipal do Meio Ambiente, André Landim, explica que, além de colocar em risco as comunidades, o uso do fogo degrada o solo, limita sua vida útil para a agricultura e estimula a busca por novas áreas de plantio.
“Quando você coloca o fogo, no primeiro ano pode até dizer que deu bom [na plantação], porque tinha muita matéria vegetal que foi morta, virou cinza e tá ali como adubo no solo. Mas, no ano seguinte, aquela matéria já vai ter perdido seus nutrientes e vai chegar num ponto que vai precisar desmatar outra área porque aquela [queimada] já ficou infértil”, explica Landim.
Moradora local e secretária da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Assentamento da Serra dos Gringos, Ana Célia Clementino confirma que, na comunidade, o uso do fogo como recurso para “limpar a roça” é costume antigo.
“Eu já expliquei para eles [agricultores] que a queima enfraquece a terra, mas como a gente não tem nenhum plano de manejo ou investimento pra tá fazendo um trabalho diferente com a terra, sempre fazem desse jeito”, conta ela.
A saída pelo campo
No mesmo município onde se intensifica a convivência com as queimadas, o desmonte de políticas públicas e o avanço da fome, iniciativas de valorização da agricultura familiar e preservação ambiental surgem como estratégia de sobrevivência nas comunidades rurais.
Uma dessas ações é o projeto Algodão em Consórcios Agroecológicos, coordenado pela organização civil Diaconia com apoios de fundos internacionais, que chegou a São Raimundo Nonato em 2018 para levar a famílias agricultoras da região formações práticas de manejo agroecológico, cultivo e venda de algodão e alimentos orgânicos.
O projeto já chegou a cerca de 230 comunidades do semiárido e gerou renda a mais de duas mil famílias espalhadas por sete estados nordestinos. Sua proposta é aproximar pequenos agricultores do comércio justo e do mercado orgânico, além de garantir renda e segurança alimentar a suas famílias.
Só na região da Serra da Capivara (PI), que inclui o município de São Raimundo Nonato, 233 famílias já receberam as formações técnicas para a cultura de algodão e alimentos como milho, feijão e gergelim. Por lá, a iniciativa conta com a assessoria técnica da Cáritas e a execução da Associação dos(as) Produtores(as) Agroecológicos(as) do Semiárido Piauiense (Apaspi), que é gerida por famílias agricultoras de assentamentos e comunidades quilombolas da região e está habilitada no Ministério da Agricultura a conferir selo orgânico aos produtos agrícolas.
“As famílias produzem de forma orgânica, sem veneno e sem fogo, um produto e alimento saudável que elas comercializam por um preço diferenciado”, informa o coordenador local da Cáritas.
A formação, oferecida por técnicos em agroecologia, é dividida em seis etapas que acompanham o ciclo natural do roçado e prevê a conservação do solo com plantios em curvas de nível e adubação orgânica, sem uso de fogo ou agrotóxicos.
Na safra de 2018 para 2019, apenas na Serra da Capivara a colheita resultou em mais de 27 toneladas de algodão, milho, feijão e gergelim, segundo dados da Diaconia.
“Tem todo um espaçamento, toda uma linguagem técnica para essa plantação em consórcio dar certo. As culturas diferentes em um mesmo pedaço de terra ajudam no combate às pragas. Por exemplo, a lagarta come o feijão, mas não come o algodão, que já é uma espécie de repelente para ela”, explica Heronildes Negreiros.
De acordo com Fábio Santiago, agrônomo e coordenador do projeto pela Diaconia, as formações ocorrem nas terras de “agricultores multiplicadores”, que servem como base experimental das plantações em consórcio e onde os outros pequenos produtores locais “aprendem executando”.
Em todo semiárido nordestino, o resultado das primeiras produções do projeto, em 2019, chegou a mais de 70 toneladas de algodão e a quase 400 toneladas de feijão, milho e gergelim. Segundo Santiago, os números do primeiro ano do projeto já mostram como “a fome é estratégica”.
“É um problema social que não tem relação com a produtividade [agrícola], mas com quem está produzindo, armazenando e distribuindo. Não disseram lá atrás que iam aumentar a produtividade e, com isso, a fome ia diminuir?! A fome só aumenta porque o problema não está no campo. Ao contrário, a saída tá ali, nas organizações de base que vão produzir essas riquezas e fazer circular no município”.