Central de Comercialização da Agricultura Familiar em Várzea Grande, desativada desde maio de 2019. Imagem: Google Maps

Desmonte de políticas públicas impede avanços da agricultura familiar em Mato Grosso

Enquanto leis são descumpridas, estado do agronegócio mantém fechada há três anos uma central que seria fundamental para a comercialização de alimentos frescos

Conhecido por ser um dos estados “recordistas” do agronegócio, Mato Grosso ainda está longe de ser uma potência da agricultura familiar, sustentável, consciente e que verdadeiramente coloca comida na mesa da população. O desmonte de políticas públicas de incentivo às pequenas produções rurais tem refletido não só na renda de produtores, mas contribuído ainda mais com a desigualdade social e a insegurança alimentar de milhares de pessoas. 

Apesar de ser responsável por 70% do que é consumido diariamente nos lares, a agricultura familiar ainda sofre com desestímulos e a falta de maiores recursos para o desenvolvimento. O cenário, que já era desfavorável, tornou-se ainda mais difícil com a pandemia de Covid-19. E o resultado disso, alerta o representante da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE-MT), Leonel Wohlfahrt, é a existência de agricultores rurais sofrendo com a insegurança alimentar e, em casos mais graves, passando fome. 

“Nos últimos cinco anos, o Cerrado e o Pantanal vêm enfrentando a seca mais rigorosa e o aumento das queimadas. Isto influenciou no extermínio de várias espécies de produção. Estão faltando sementes, mudas e ramas de diversos produtos. Com isso, diminui-se a diversidade, tanto para produzir, como para se alimentar. Observamos que mesmo que muitos produtores tenham alimentos, não é nutricionalmente equilibrado, o que gera a insegurança alimentar. É triste, mas temos agricultores em Mato Grosso passando fome.”

A agricultura familiar representa 68,79% dos estabelecimentos agropecuários de Mato Grosso, mas responde por 9,34% da área ocupada. Investigações do Joio têm exposto a insegurança jurídica em assentamentos da reforma agrária, por onde também avança o plantio de soja, em substituição aos alimentos comercializados localmente, além de atividades ilegais, como a grilagem e o desmatamento. 

Entre as principais políticas de incentivo à produção rural está o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), transformado em 2021 no Alimenta Brasil (PAB). Desde 2019 temos documentado no Joio o desmonte do PAA, que chegou a ficar praticamente sem recursos no ano passado

O produtor rural Adriano Ribeiro dos Santos mora no assentamento agroecológico Egídio Brunetto, do MST, em Juscimeira, a 139 km de Cuiabá, na região sul do estado. O local foi fundado em junho de 2015, por ex-trabalhadores rurais de fazendas da região e suas famílias. Na visão dele, a relevância do PAA é a garantia de produção e venda para os agricultores. O assentamento, que possui cerca de 75 famílias, conta com 15 delas participantes do PAA, principal fonte de renda do local. As famílias produzem mandioca, folhas, mamão, banana, abóbora, maracujá, banha de porco e ovos, que são semanalmente entregues na Secretaria de Assistência Social do município.  

“O assentamento ainda é novo na região, então, aos poucos estamos crescendo na produção e venda. A participação no PAA nos ajuda porque sabemos que o que é produzido, já tem um destino certo, sem necessidade de sair pela cidade para vender e correr o risco de ter prejuízo.” 

No início de junho, a Secretaria de Estado de Agricultura Familiar (Seaf) abriu as inscrições do edital do Alimenta Brasil, com um orçamento de R$ 2 milhões. A estimativa é de que existam cerca de 105 mil produtores rurais no estado, ou seja, se distribuído igualmente, o recurso seria inferior a R$ 20 por pessoa. Na outra mão, no ano passado os grandes produtores contaram com quase R$ 390 milhões em recursos do do Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), além de financiamento federal e do setor privado.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022, também chamada de “PEC Kamikaze”, recém-aprovada pelo Congresso Nacional, promete destinar R$ 500 milhões para o Alimenta Brasil. A exemplo de outros programas governamentais, o recurso está garantido apenas para o ano eleitoral: 2023 é um mistério.

Para o secretário-executivo do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento, Herman Oliveira, rede composta por mais de 30 organizações socioambientais no estado, a ausência de políticas públicas não só enfraquece o setor da agricultura familiar e seus segmentos, pela falta de recursos, como causa desigualdade alimentar. Ele frisa que é necessário retomar órgãos como o Ministério do Desenvolvimento Agrário e as próprias secretarias municipais e regionais para viabilizar recursos exclusivamente ao setor. 

“A construção dessas políticas tem como objetivo a promoção da dignidade, soberania alimentar e a cadeia de conjunto de valores e saúde ambiental e humana. Isto fortalece a identidade da agricultura familiar e o campo. Faltam recursos e secretarias destinados a isso, com poder e orçamento à altura dos desafios. É preciso também rearticular as organizações que vinham fazendo o trabalho de ajuste, reajuste e orientação com a finalidade de evitar que campesinos deixem suas terras, para que voltem a produzir alimentos.”

Descumprimento de leis

Prevista na Lei 11.946/2009, a garantia de 30% do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) investida na compra direta de produtos da agricultura familiar é outro problema no estado. A política pública caminha muito aquém do que deveria. 

Um levantamento conduzido pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), em parceria com outras entidades, mostrou que nos últimos 10 anos somente três das 141 cidades mato-grossenses atingiram os 30% obrigatórios — Mirassol D’Oeste, Nova Mutum e São José dos Quatro Marcos. 

“O Pnae é uma conquista de movimentos sociais, que cobraram a inserção da agricultura familiar. Em Mato Grosso, ele nunca evoluiu como deveria e o governo não é cobrado por isso. Os contratos existem, mas as escolas não compram aquele valor e acabam pedindo menos. No último ano antes da pandemia, a média estava em 9,8%, o que é absurdo”, reivindica Leonel Wohlfahrt da FASE-MT. 

O Pnae é administrado pela Secretaria de Estado de Educação (Seduc), que transfere os recursos aos Conselhos Deliberativos da Comunidade Escolar (CDCES). As entidades são responsáveis pela compra anual de alimentos por meio de contratos do tipo pregão ou chamada pública, realizados pelas Câmaras de Negócios da Alimentação Escolar de cada município. Porém, de acordo com a secretaria, em várias cidades as chamadas públicas “sagram-se desertas”, pois não há interessados em participar. 

Ainda segundo a Seduc, o descumprimento do índice obrigatório de 30% em Mato Grosso tem como fatores a falta de diversidade na produção, além de o volume ser insuficiente para atender à demanda escolar, à sazonalidade e à manutenção do fornecimento no decorrer do ano. A pasta salientou que, nessas circunstâncias, a lei prevê que a compra seja dispensada. 

Encerramento de atividades

Inaugurada em 2019, em Várzea Grande, cidade vizinha a Cuiabá, a Central de Comercialização da Agricultura Familiar nasceu como solução, mas é hoje mais um entrave para os avanços da pequena produção em Mato Grosso. Com investimentos de R$ 3,6 milhões do Governo Federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário em parceria com o governo estadual, o espaço de mais de 3 mil m² está desde maio do mesmo ano desativado pela Secretaria de Estado de Agricultura Familiar (Seaf). 

Na época, a decisão foi justificada pela necessidade de contratação de uma nova gestão do local, conforme recomendado pela Procuradoria Geral do Estado (PGE). No  entanto, três anos depois, a unidade permanece fechada, com toda a estrutura de câmaras frias e equipamentos de armazenamento sem qualquer utilização por parte dos produtores. 

“A Central é uma conquista dos agricultores e foi criada com recursos públicos para a agricultura familiar. Mesmo antes do fechamento, sempre tivemos problemas com a gestão, porque tentaram conduzir o local politicamente, e não pensando nos produtores. Foi informado que o custo era muito alto, mas o que significa R$ 40 mil por mês para manter um espaço como aquele? Tentamos o que foi possível, mas não houve avanço. Com isso, buscamos outras alternativas de construção social, com a venda em feiras, aplicativos, acordos para venda consignada”, pontua Leonel Wohlfahrt, da FASE-MT. 

Em abril de 2020, em ofício encaminhado à Seaf, organizações da agricultura familiar solicitaram o uso emergencial da Central devido às dificuldades dos produtores, principalmente, com a suspensão do atendimento ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) após o encerramento das aulas presenciais na rede pública de ensino. No requerimento, o grupo propôs a utilização de 50% da área livre da unidade, duas câmaras frias e um escritório para atender cinco organizações com atuação em Cuiabá, Várzea Grande, Nossa Senhora do Livramento, Poconé e Pontes e Lacerda. No entanto, o pedido não foi aceito e o local segue fechado. 

Procurada pela reportagem, a Seaf informou que está previsto para os próximos dois meses o lançamento do edital que autorizará que agricultores familiares possam voltar a utilizar a Central. No entanto, a pasta frisa que o certame será diferente de gestões passadas, em que não houve a definição dos trabalhadores aptos a comercializar a produção na Central. A secretaria não deu mais detalhes sobre os critérios para esta definição. Questionada sobre que suporte foi dado aos produtores desde o fechamento do local, a respondeu “não saber responder com exatidão”.  

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