Difícil de entender e alinhada à lógica do século passado, estrutura tributária vai na contramão do Guia Alimentar e se torna um obstáculo para o acesso a alimentos saudáveis
Ambas deveriam caminhar de mãos dadas, mas correm em direções opostas: algumas décadas de atraso separam o inovador Guia Alimentar Para a População Brasileira e o conjunto de impostos que incidem sobre a comida no Brasil.
O nível de processamento dos alimentos, o estímulo a sistemas sustentáveis de produção e a necessidade de evitar o consumo de ultraprocessados não encontram respaldo algum no sistema tributário do país. Pelo contrário, a política fiscal favorece grandes produtores de commodities e fabricantes de ultraprocessados, enquanto onera a agricultura familiar, o pequeno produtor e o pequeno comércio, além do alimento orgânico.
Foi o que concluíram o economista Arnoldo de Campos, ex-secretário nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e a consultora Edna Carmélio. A pedido da ACT Promoção da Saúde, eles se debruçaram sobre a complexa estrutura fiscal que incide sobre os alimentos, desde os ingredientes até os produtos, e a estrutura por trás da cadeia de produção, considerando o nível de processamento e o valor nutricional. A ACT é uma das organizações que financiam o Joio.
“A gente percebe claramente que o sistema tributário tem princípios, diretrizes e uma estrutura antiquada. Foi pensada lá no momento em que o Brasil estava buscando a industrialização, estimulando a industrialização. Então é muito favorável ao alimento industrializado e aí o produto ultraprocessado acaba tendo vantagens”, explica Arnoldo de Campos. “O próprio guia é muito posterior à formulação da política tributária brasileira. Então você tem acordos que vêm da década de 70 e que vigoram até hoje.”
O Guia Alimentar para a População Brasileira foi atualizado pelo Ministério da Saúde em 2014. Uma das novidades é dar ênfase ao propósito e ao tipo de processamento dos alimentos, expressando a necessidade de que se evite o consumo de ultraprocessados, como biscoitos, salgadinhos, alguns pratos congelados, alguns lácteos, refrigerantes e uma série de outros produtos.
Falar de imposto no Brasil é complicado. É chato. É complexo. Distante do entendimento da maioria da população, a política tributária é um tema frequentemente oculto na discussão sobre segurança alimentar, fome e preço dos alimentos. Mas os seus efeitos têm se relevado dramaticamente evidentes, do campo à mesa.
No campo, as commodities voltadas para a exportação avançam sobre a produção de alimentos voltados para o mercado interno. Saem o feijão e a mandioca, entram a soja e o milho. Um dos propulsores desse fenômeno é a política tributária, já que os grandes produtores de grãos e alimentos voltados ao mercado externo não pagam imposto para exportar.
No consumo, os alimentos frescos ou minimamente processados foram responsáveis por cerca de 70% da inflação total da alimentação em casa entre janeiro de 2021 e junho de 2022. Esse grupo se refere a uma centena de alimentos diferentes e essenciais na dieta da população, como cenoura, tomate, batata, café, cebola, feijão e frutas.
“Quando a gente olha o IPCA, que é o principal índice de inflação do país, tem mais de cem itens de alimentos, a grande maioria in natura e minimamente processados, que lideram a inflação. Eles sobem quatro, cinco vezes acima da média da inflação dos demais produtos, tornando o alimento saudável mais caro até do que os ultraprocessados, que acabam ficando mais em conta e viram uma opção de alimentação”, explica Arnoldo.
Distorções tornam a comida saudável mais cara
Há distorções em todos os níveis da estrutura tributária brasileira, inclusive quando a intenção é aparentemente boa. É o caso da desoneração de impostos federais dos itens da cesta básica, por exemplo, que permite a inclusão de achocolatados, bebidas lácteas e macarrão instantâneo, refletindo uma lógica de nutrição do século passado, como já mostramos no Joio aqui e aqui. A estimativa da Receita Federal é de que essa desoneração custe R$ 30 bilhões apenas neste ano – é uma das maiores renúncias de arrecadação da União.
Os fabricantes de ultraprocessados também se beneficiam de créditos presumidos ao longo de sua produção. Crédito presumido é um instrumento criado para evitar o pagamento em cascata de tributos ao longo da cadeia produtiva, impedindo que se pague novamente imposto sobre itens que já foram tributados antes. Esse princípio da não cumulatividade permite baratear a produção, seja na compra de ingredientes para a produção, seja na hora de comercializar esse produto.
Mas essa lógica não se aplica aos pequenos, como veremos.
Um entre vários exemplos dessas distorções é o feijão. Por compor a cesta básica, não é tributado. Mas também não se beneficia de crédito presumido. Isso ocorre porque tributos federais, como PIS/Pasep e Cofins, não consideram o nível de processamento na concessão desse crédito. Também não consideram as características de produção de um alimento in natura em relação a um produto ultraprocessado.
“Pra você chegar no achocolatado, no salgadinho, no nuggets, no macarrão instantâneo, você tem um conjunto de etapas que é bem diferente para você chegar numa mandioca descascada, embalada a vácuo no supermercado ou numa feira. O alface, o tomate, os legumes, verduras e o próprio suco integral são alimentos in natura ou minimamente processados, que têm uma cadeia totalmente diferente”, explica Arnoldo, acrescentando mais uma camada de problema à discussão.
As desvantagens pesam também sobre os ingredientes. Quando a indústria compra de outra indústria glutamato monossódico, gordura hidrogenada e açúcar, os impostos pagos na produção desses insumos são descontados depois. Tanto quem fabrica, como quem compra esses ingredientes se beneficia.
A situação é diferente para ingredientes saudáveis analisados no estudo: farinhas de arroz e linhaça, fubá, castanhas e alguns tipos de açúcares (demerara, cristal e refinado). Por terem alíquotas zeradas na saída, não geram crédito para os seus compradores. Quando minimamente processados por uma pessoa jurídica, esses ingredientes sofrem com a cumulatividade de todos os impostos embutidos nas matérias-primas.
“A indústria de ultraprocessados paga só a diferença e acaba pagando uma diferença muito pequena. Porque ela consegue descontar tudo que foi pago lá atrás. Agora, se você é dono de uma quitanda que vende alimentos saudáveis e compra do produtor um produto que já vem com uma carga tributária, já vem com impostos pagos, ele não consegue descontar. Esses impostos vão impactar no preço. O produtor rural tem problemas”, explica Arnoldo.
As mesmas dicotomias se repetem na esfera estadual, com o ICMS. E, novamente, mesmo quando a intenção é reduzir o preço final pago ao consumidor, são muitas as armadilhas para o pequeno produtor.
É o caso, por exemplo, do convênio que isenta de ICMS os produtos hortifrutigranjeiros, mecanismo tributário que mais se aproxima do Guia, embora também tenha distorções em sua aplicação e algumas limitações. Se um agricultor comercializa sua produção como pessoa física ou microempresa, ou é adepto do sistema Simples, ele não conseguirá descontar o tributo que já foi pago em combustível, energia elétrica, investimentos, água e etc. Tudo isso colabora para um preço final mais caro.
Isso não ocorre com a agroindústria, por exemplo.
Em todas as esferas tributárias, o sistema é muito mais eficaz quando se trata de grandes produtores, grandes fabricantes e grandes supermercados. E isso se relaciona menos com o valor da alíquota em si, e mais com os mecanismos de proteção que permitem receber créditos nas etapas posteriores.
É bom lembrar disso quando ler ou ouvir por aí que o Brasil cobra muito imposto.
Miojo e salsicha na cesta básica
A defasagem nos conceitos sobre alimentação saudável faz com que alimentos da nossa sociobiodiversidade frequentemente fiquem de fora do conceito de hortifrutigranjeiros. O convênio que isenta esses alimentos também não permite processamento mínimo, como torrar ou cozinhar. “É muito limitado: só pode picado, descascado, embalado e classificado. Não permite, por exemplo, que você torre um produto e transforme numa farinha. Então a mandioca está lá, mas, quando é farinha, já não acessa o benefício”, acrescenta o economista.
O ICMS também é utilizado para tornar os itens da cesta básica mais baratos e acessíveis. Cabe aos estados decidirem que alimentos e produtos podem se beneficiar de isenção ou imposto menor. Em estados como Paraná, São Paulo e Bahia, ultraprocessados como macarrão instantâneo e salsicha foram incluídos na cesta básica. Na Bahia, a Coca-Cola poupou R$ 540 milhões com incentivos fiscais de ICMS ao longo de dez anos, como mostramos em uma das reportagens que compõem a série A Conta da Indústria.
Orgânicos pagam até quatro vezes mais
A desconexão entre duas políticas públicas que deveriam convergir para o mesmo objetivo também aparece quando se olha a produção de alimentos orgânicos. Eles têm a mesma tributação que os alimentos in natura convencionais, mas, por serem orgânicos, lidam com custos muito mais altos.
“A política tributária não tem nenhum viés ambiental. A cadeia tributária que incide sobre um alimento orgânico não tem nenhuma vantagem em relação aos transgênicos e alimentos convencionais. Sabemos que, do ponto de vista da saúde e das práticas ambientais, inclusive sociais, o alimento orgânico tem uma série de critérios que tornam ele um alimento de maior qualidade. A estrutura tributária brasileira é desatualizada, não responde aos atuais desafios”, acrescenta Arnoldo.
Um litro de suco de uva orgânico paga cerca de seis reais de imposto. Um néctar, feito com água, açúcar e uma quantidade menor de fruta, paga quatro vezes menos.
Água paga o mesmo imposto que refrigerante
“A água mineral em vários estados paga o mesmo imposto que o refrigerante. Está enquadrado dentro do mesmo tributo e da mesma alíquota. Qual é o sentido disso? E, às vezes, a água tem um preço até mais caro que o refrigerante. Portanto, vai pagar mais imposto por unidade. São várias as distorções que fazem com que existam diferenças que são desfavoráveis para o alimento saudável”, critica Arnoldo.
O estudo também identificou que, de um modo geral, verduras e legumes, orgânicos ou convencionais, têm em comum uma alta carga tributária. Dos 20 itens pesquisados (10 orgânicos + 10 convencionais), 13 tinham carga superior a 10%, chegando a um máximo de 18,4% para a abóbora convencional. Apenas o alho convencional e orgânico tinha carga inferior a 5%.
Os autores agora preparam uma segunda parte do estudo, com medidas propositivas, considerando inclusive algumas iniciativas positivas já identificadas, como o caso da Bahia. O estado criou um selo para identificar produtos provenientes de cooperativas de agricultores familiares que dá o direito a um crédito presumido de 100% de ICMS para quem produz e para quem compra.
“A gente comeu mosca há muito tempo na questão tributária, porque sempre foi um assunto, digamos, deles, da própria indústria. Ela tem uma estrutura de lobby em Brasília e nas assembleias para conseguir vantagens tributárias. Eles têm uma incidência muito forte. E a nossa incidência é tardia. A linguagem tributária é quase incompreensível para a grande maioria das pessoas que estão discutindo segurança alimentar. Com esse estudo, a gente está conseguindo pautar a questão tributária por quem discute saúde, sustentabilidade e combate à fome. A tributação é uma variável que conta, que é relevante, e a gente tem que entender para poder propor”, conclui Arnoldo.