Por que fome e insegurança alimentar são coisas diferentes


O Joio sempre te ajuda a não passar vergonha no meio do salão. Na conversa de boteco. No debate de família. Esse tira-gosto explica por que fome insegurança alimentar e nutricional não são a mesma coisa. 

Os dados mais recentes mostram que 33 milhões de brasileiros passam fome no Brasil. De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado em junho de 2022, são 125 milhões de brasileiros nessa condição – 59 milhões em insegurança alimentar leve, 31 milhões em insegurança moderada e 33 milhões em insegurança grave.



Apenas esse último nível de insegurança alimentar e nutricional pode ser entendido como sinônimo de fome. No geral, a insegurança alimentar é importante para poder dar complexidade à vivência de um país ou região sobre a fome. É uma maneira de o poder público, pesquisadores, organizações da sociedade e a própria população poderem formular soluções a partir daquilo que é medido a cada momento histórico. 



A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) foi criada em 2004, a partir de uma experiência existente nos Estados Unidos, para dialogar com o esforço de combate à fome do governo Lula. “Era uma oportunidade de ter um instrumento que pudesse não só diagnosticar situações de carência alimentar no Brasil de forma mais direta, mas também acompanhar e avaliar o impacto daquelas políticas públicas que estavam sendo propostas”, conta Ana Maria, professora aposentada da Unicamp e coordenadora do estudo que resultou na Ebia. 

A Ebia é formada por 14 perguntas. 

1. Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida?
2. Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que os moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar mais comida?
3. Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada? 
4. Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio comeram apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiro acabou?
5. Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade deixou de fazer uma refeição porque não havia dinheiro para comprar comida?
6. Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez comeu menos do que devia porque não havia dinheiro para comprar comida?
7. Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez sentiu fome, mas não comeu, porque não havia dinheiro para comprar comida?
8. Nos últimos três meses, Algum morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, fez apenas uma refeição ao dia ou ficou um dia inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida?
9. Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de idade, alguma vez, deixou de ter uma alimentação saudável e variada porque não havia dinheiro para comprar comida?
10. Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de idade, alguma vez, não comeu quantidade suficiente de comida porque não havia dinheiro para comprar comida?
11. Nos últimos três meses, alguma vez, foi diminuída a quantidade de alimentos das refeições de algum morador com menos de 18 anos de idade, porque não havia dinheiro para comprar comida?
12. Nos últimos três meses, alguma vez, algum morador com menos de 18 anos de idade deixou de fazer alguma refeição, porque não havia dinheiro para comprar comida?
13. Nos últimos três meses, alguma vez, algum morador com menos de 18 anos de idade, sentiu fome, mas não comeu porque não havia dinheiro para comprar comida?
14. Nos últimos três meses, alguma vez, algum morador com menos de 18 anos de idade, fez apenas uma refeição ao dia ou ficou sem comer por um dia inteiro porque não havia dinheiro para comprar comida? 

A escala de insegurança alimentar é definida de acordo com a quantidade de respostas afirmativas.

Para entender melhor o que isso significa na prática, podemos começar pela situação plena, ou seja, pela segurança alimentar e nutricional, definida da seguinte maneira: 

“Consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.”

Fonte: Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, 2006


Pensando na escala como uma gradação, a insegurança alimentar leve significa que a família começa a adotar estratégias para driblar dificuldades. “Então, elas começam a comprometer a qualidade da alimentação. E também, quando há uma situação de precariedade do trabalho, de irregularidade no trabalho ou na renda da família, mesmo quando as pessoas estão com a alimentação ainda garantida, existe uma ansiedade, porque elas sabem que podem viver uma situação de insegurança alimentar”, conta Ana Maria. 

No Brasil de hoje, a insegurança alimentar é um dos retratos da situação de precariedade laboral, com a retirada de direitos pela reforma trabalhista de 2017 e o avanço de novos modelos de emprego marcados pela instabilidade – caso dos trabalhadores de aplicativos como Uber e iFood. É o caso do Altemício do Nascimento, de 54 anos, que hoje trabalha como entregador de refeições. 

“Então a gente vai trocando. Uma salsicha, uma linguiça, uma carne de porco, um frango. Que a carne de boi você chega no açougue você compra um quilo e meio dá 80 reais. Você tá maluco, tá muito caro um negócio desse. Não tem como?”

Na insegurança alimentar leve, ainda não há falta de alimentos, mas um comprometimento da qualidade da alimentação e a insegurança psicológica, ou seja, a alimentação passa a ser uma preocupação da família. 

“No grau moderado, a gente não fala em fome diretamente, mas pode ter indivíduos na família, sobretudo os adultos, que já estejam saltando alimentação, deixando de fazer alguma alimentação, ou ainda reduzindo a quantidade de alimentos que acha que seria o razoável, para garantir a alimentação para toda a família, sobretudo crianças, pessoas adoecidas, acamadas, idosos”, continua Ana Maria. 

É o caso de Diego Garcia de Morais, de 32 anos. Ele mora na zona norte de São Paulo e trabalha como ajudante num projeto social de distribuição de pães para pessoas de baixa renda. Ele vivia de bico desde 2014, e a mãe trabalha como faxineira. Com problemas de saúde, ela não tem podido comer como deveria, à base de alimentos frescos. 

– As crianças porque não tem que se preocupar primeiro com as crianças. Nóis adulto se vira.
– E aí não sobrou para os adultos?
– Não sobrou. Nós adultos se vira. Toma água que passa.

“E, quando a família não consegue resolver os problemas que estão causando esse tipo de problema, aí entra progressivamente uma situação de insegurança alimentar grave: toda família já está com acesso aos alimentos comprometido, dos pontos de vista qualitativo e quantitativo, inclusive as crianças. Eufemisticamente, se fala em insegurança alimentar grave, mas, na verdade, é uma situação de experiência da fome nessas famílias.” 

É o caso de Angela Queiroz e da filha, Aliny, que moram na ocupação Queixadas, em Cajamar, na Grande São Paulo. As duas são mulheres negras, o que constitui a regra quando se fala em insegurança alimentar grave: um em cada cinco domicílios chefiados por mulheres está em estado de insegurança alimentar, contra um em cada dez domicílios chefiados por homens. Ao mesmo tempo, domicílios habitados por pessoas brancas registraram um índice de segurança alimentar de 53%, contra 35% de domicílios habitados por pessoas negras. 

“Ele mandou segurar até quinta feira aí vamos ver vamos se virar faz um bolinho de massa de trigo inventa um café. A gente vai aguentando, entendeu?”

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