O Joio e O Trigo

Leite das crianças: uma ideia construída com bases comerciais e político-partidárias que se tornou inquebrável

Em massa no Brasil, programas de distribuição de leite trazem na origem interesses econômicos e perduram sem instrumentos de avaliação

Pelas diferentes regiões do país, produtos lácteos chegam mensalmente nas casas dos beneficiários de programas de distribuição de alimentos. Maquiados de política pública, algumas dessas medidas de âmbito municipal, estadual e federal nunca passaram por monitoramento e avaliação, o que desperta o questionamento sobre a sua efetividade. A ideia de tirar o leite das crianças se tornou impraticável, não exatamente pelo produto ser um alimento fundamental e sim por ter se tornado moeda de troca.

É o caso do Programa Leve Leite, iniciado em 1995 pelo então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf. Trata-se de um caso emblemático de um programa municipal que, entre idas e vindas, sempre esteve associado à figura do prefeito em exercício.

Em execução até hoje, o programa passou pelas mãos de diferentes mandatários que não só seguiram fazendo sua manutenção nesses quase 30 anos, mas o usaram como estratégia de campanha política. 

A idade longeva faz parecer que o Leve Leite é um sucesso. Mas o programa nunca passou por um processo de avaliação com indicadores, objetivos e resultados que permitiriam saber seu grau de eficiência e impactos na sociedade. Em vez de fomentar a construção de uma política pública estruturada de combate à desnutrição, o programa entrou no rol dos assistencialistas e, pior, edificou com bases comerciais e político-partidárias uma ideia enfeitada de presente para populações vulneráveis.  

A advogada Ekaterine Karageorgiadis se debruçou sobre o programa Leve Leite durante sua pesquisa de mestrado na área de Saúde Pública. “Então isso é criado naquele momento e é mantido e é utilizado, seja para promoção e reeleição ou eleição e manutenção de partido, enfim, ou para oposição a uma visão anterior”, disse a pesquisadora em entrevista para O Joio e O Trigo. Ela foi conselheira do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional entre 2012 e 2019. Em sua pesquisa, queria entender o que estaria por trás das decisões dos agentes públicos de manter o programa por tanto tempo, mesmo sem resultados de avaliação ou então mudanças que oferecessem alternativas melhores para garantir o direito humano à alimentação adequada.

Quando surgiu, o Leve Leite prometia combater a desnutrição da população infantil da Rede Municipal de ensino e diminuir o índice de evasão escolar. Se as crianças tivessem frequência superior a 90%, as famílias tinham direito a dois quilos de leite em pó por mês.  Ou seja, não era só assistencialista, mas também compensatório. A comida figurava no projeto como uma ferramenta de controle. 

Além disso, segundo o estudo de Ekaterine, o desenho jurídico do programa permite a realização de atividades políticas corporativas dentro do ambiente escolar.  As empresas processadoras de leite ficavam livres para promover estratégias de marketing, lobby e ações jurídicas. 

Durante os trinta anos de execução, o programa passou pelas mãos de diferentes governos: Paulo Maluf, Celso Pitta, Marta Suplicy, José Serra, Gilberto Kassab, Fernando Haddad e Bruno Covas, sucedido por Ricardo Nunes. 


Moeda de troca

Houve um momento importante na trajetória do Leve Leite durante a gestão de Kassab, que, durante sua campanha de reeleição em 2008, prometeu entregar leite em pó da marca Ninho para a população. Em agosto de 2008, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem com o título “Kassab é proibido de usar marca de leite na propaganda na TV”

Foi a concorrente Marta Suplicy que fez uma representação ao Ministério Público do uso da marca leite Ninho. A reportagem conta que o Tribunal Regional Eleitoral decidiu punir o candidato e retirou parte do seu tempo de campanha. 

A Folha traz ainda a informação de que a gestão de Kassab fez uma compra emergencial, ou seja, sem licitação, de 2.200 toneladas de Leite Ninho por mês durante 90 dias. A negociação emergencial foi feita porque o Tribunal de Contas do Município havia pedido a suspensão de uma licitação por problemas que poderiam acabar restringindo a concorrência. 

Antes quem fornecia leite eram as marcas Itambé e Tangará. Elas suspenderam o fornecimento para pressionar a prefeitura a aumentar o preço. E tem mais. Sobre a segunda marca, Tangará, um texto escrito em 2006 pelo agrônomo e ex-deputado federal pelo PSDB, Xico Graziano, diz o seguinte, sob o título Monopólio do Leite :

“Quem vencia as licitações públicas para compra de leite em pó era sempre o mesmo empresário, primeiro com a Nutril, depois com a Tangará Importadora e Exportadora. Ninguém duvidava do jogo de cartas marcadas. Mesmo assim, ano após ano, as criancinhas paulistanas tomavam seu leite sujo pela desconfiança da corrupção.

No jargão do setor, a Tangará se caracteriza como uma “sem-fábrica”, quer dizer, uma empresa de fachada, que comercializa leite em pó sem processar leite natural. Parece mágica.

O truque se explica facilmente: a fábrica adquire sua matéria-prima de laticínios suspeitos e mistura leite em pó importado. Pronto, simples. No produto nacional, não paga imposto. No importado, compra por preço barato, visto a mercadoria ser de péssima qualidade.”

Fachada ou não, nos últimos anos a Tangará recebeu 114 milhões de reais do governo federal, segundo o Portal da Transparência. 

A empresa foi a única vencedora dos processos de licitação desde o governo de Paulo Maluf, passando por Celso Pitta até a gestão de Marta Suplicy, que foi antecessora de Serra e Kassab. 

Ekaterine enfatiza a complexidade logística do programa que distribui produtos na cidade inteira. “Então, é uma política de tamanho enorme, que envolve disputas, inclusive nos momentos de licitação”, diz. 

A Ekaterine destaca uma coincidência temporal interessante. As mudanças das regras do Leve Leite entre 2008 e 2009, que inclui a entrega dos produtos via Correios, coincidiram com a divulgação do leite Ninho nas propagandas eleitorais e institucionais durante o mandato de Kassab. Uma delas, um vídeo feito pela Prefeitura de São Paulo, mostra um funcionário com camisa amarela caminhando por ruas debaixo de sol e de chuva com uma lata também amarela nas mãos.

Essa alteração para entrega por Correios gerou reclamação por parte dos educadores, já que muitos estudantes viviam em lugares sem endereço oficial. Também houve um questionamento sobre a mudança de gastos públicos enquanto a Nestlé se responsabilizava pela entrega em apenas um ponto, não mais para as escolas. 

Além disso, quando reeleito em 2009, o prefeito assinou um contrato de 169 milhões de reais e passou a fornecer latas de 1kg. Isso significava a redução de 200g para crianças de 1 a 6 anos, já que antes a entrega era de três latas de 400g. Isso reverberou na imprensa como um corte de leite no ensino infantil. As mães reclamavam da diminuição e diziam que era pouco para a família e que por isso precisavam comprar mais leite para completar o mês. Ou seja, a demanda já tinha sido gerada, então a compra estava garantida. 

As latas dos contratos emergenciais, entre 2007 e 2008, quando a empresa oferecia pacotes de 400 gramas, eram iguais às que iam para o mercado, inclusive com o logo da Prefeitura. 

“Se o objetivo é combater a desnutrição, e a gente tem de 25, quase 30 anos de política e a desnutrição no município não foi combatida usando essa estratégia, por que essa estratégia ainda é mantida?”, questiona Ekaterine. “Um dos aspectos que o mantém fortemente é o interesse de empresas no geral num mercado consumidor enorme”, responde. Ela chama atenção para o descolamento entre o Leve Leite e as políticas de segurança alimentar e nutricional do Brasil. 

Desde o desenho inicial, não teve nenhuma referência expressa ao conceito de segurança alimentar e nutricional. Essa alusão só se deu em 2013, durante a gestão Haddad, por uma lei municipal que menciona a Lei Federal de segurança Alimentar e Nutricional, de 2006.

Mas foi só em 2016 que veio o primeiro Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional. Foi quando finalmente a prefeitura previu a necessidade de avaliar o programa Leve Leite, quase 30 anos mais tarde. Isso seria feito até 2021. Mas o prefeito, Fernando Haddad, não concluiu esses planos até o fim de seu mandato. “Mesmo naquele momento foi difícil bancar, porque aí chega sempre um momento de eleição e reeleição e qualquer atitude feita com esse programa naquele momento seria impopular, como já foi, simplesmente o fato de falar que poderia ser mexido”, diz a pesquisadora. 

O Legislativo também atuou para amenizar o peso do Executivo, com algumas normas e projetos. Uma proposta curiosa do vereador Laércio Benko, do PHS, intencionava assegurar a opção de troca às crianças beneficiárias do Leve Leite, dos 24 quilos anuais de leite em pó integral por um notebook. 

A influência da Nestlé e dos EUA

O leite foi um dos primeiros alimentos a ser objeto de pesquisa, legislação e políticas públicas e fiscalização sanitária. O consumo era uma das características de países ditos civilizados e desenvolvidos. Então, o governo buscava incentivar seu consumo. 

E o início da discussão sobre a importância do leite para alimentação infantil e sua recomendação como alimento essencial à dieta das crianças brasileiras coincide com a chegada da Nestlé no Brasil.

No mesmo ano em que a marca começou a operar no país, o governo do presidente Epitácio Pessoa criou novas regras para o Serviço de Indústria Pastoril do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, que divulgava estudos científicos e promovia cursos e mentorias para produtores, donas de casa, mães, médicos, entre outros. 

O objetivo era a mudança de hábitos em benefício da população e do progresso do país. “Ali, naquele contexto, de muito rural para um contexto mais urbano, em que a luz elétrica chegava, com a possibilidade de ter geladeiras e de conservar alimentos de outras formas… então, tirar leite de vaca e tomar o leite no campo era uma coisa errada”, conta Ekaterine. Saudável era consumir leite pasteurizado, processado, esterilizado e embalado pela indústria.  

Em 1925 foi realizada, na cidade do Rio de Janeiro, pela Sociedade Nacional dos Agricultores, a Primeira Conferência Nacional do Leite, com patrocínio do governo federal. O evento reuniu políticos, produtores, empresas e médicos em torno da discussão sobre a importância do consumo de leite para a saúde da população e o desenvolvimento infantil.

E foi pensando nas crianças que teve até peça de teatro. Uma delas chamada “Atraz [sic] do Pote de Leite [sic]”. O protagonista é Carlos, um menino curioso em relação ao processamento do leite. Na outra, chamada “Fada da Saúde”, a fala final anunciava: “se quer saber onde os seus companheiros encontraram a fórmula para a saudável alegria com que se agitam e aprendem os seus deveres, digo-lhe em duas palavras: no leite!”. E no fim, a mensagem principal: “Viva o leite!!!”. Daí o personagem pegava um copo de leite que estava sobre a mesa e bebia.

Mães e agentes da saúde sempre estiveram entre os principais alvos da empresa. Começaram a investir também em instituições de educação e de atendimento à criança. Segundo Ekaterine, trata-se de uma estratégia de “pulverizar” o consumo. “Então as crianças são as primeiras consumidoras, elas levam aquilo para suas casas e difundem o produto, aquele produto para de ser distribuído em algum momento, gera uma escassez, essa escassez faz com que as famílias procurem esse produto no mercado”, explica.

Numa edição de 1940 da ‘Revista da Semana’, a empresa divulgou informações sobre a entrega da chamada “Merenda Escolar Nestlé”. Um dos itens que os estudantes recebiam era Leite Moça, além do leite em pó. Em 1949, foram distribuídas 300 mil merendas. A Nestlé dizia ter o objetivo social de combater a mortalidade infantil e assegurar o desenvolvimento das crianças.

Reprodução: Revista da Semana/ memoria.bn.br

Nessa época, os programas de distribuição de leite ganharam força como política pública. No fim dos anos 40, ações pontuais eram destinadas à alimentação dos filhos de trabalhadores pelo Serviço de Alimentação e Previdência Social. Existia uma cobrança sobre o governo para a criação de uma “Lei do leite”, que fornecesse gratuitamente uma cota mínima às crianças escolares de cidades produtoras, além da criação de um programa de alimentação escolar.

Em 1950, o governo federal fez um acordo com o fundo das Nações Unidas de apoio à infância, que hoje é o Unicef, para fornecer alimentos e outros suprimentos para crianças, adolescentes, gestantes e mães lactantes. Foi o pontapé inicial para um plano de distribuição de leite em pó desnatado a mães e crianças com necessidade de suplementação alimentar: 18 toneladas que vinham dos Estados Unidos. O Brasil entrava com a parte do transporte e distribuição. 

Além disso, o governo brasileiro se comprometeu a pagar por um complemento para cota enviada, com o objetivo de atender novos beneficiários, construir usinas e transformar o então plano de emergência em um programa permanente de assistência.

Josué de Castro, o médico e geógrafo que foi fundamental para alertar que a fome é um fenômeno político, era deputado federal em 1961. Ele alertou que o objetivo desses programas não era alimentação coisa nenhuma, e sim o escoamento do leite que tava sobrando mundo afora. Ele sabia que a dependência de ajuda externa, a formação de hábitos alimentares para o consumo dos produtos enviados e a retração da produção nacional podiam gerar crises de abastecimento por aqui, como aconteceu em 1959 com a falta de leite em pó. 

Um programa de âmbito federal que também foi criado à imagem de seu criador foi o Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes. Em 1986, o presidente José Sarney instituiu o programa, popularizado como o “leite do presidente” ou o “leite do Sarney” e que foi alvo de denúncias de fraudes, tráfico de influência, corrupção e desvio de recursos. O período era o início do Plano Cruzado, marcado por alta inflação, instabilidade econômica, congelamento de preços e falta de produtos.

Durante a apuração desta matéria, estava sendo lançado em Maceió o programa Leite é Massa. Em um vídeo publicado no Instagram do Prefeito de Maceió João Henrique Caldas, a primeira-dama fala em programa de aleitamento materno, mas anunciava a entrega de oito pacotes de leite e seis caixas de Cremogema por mês para crianças de 6 meses a 3 anos de idade.

Faltam instrumentos de avaliação

Esses programas são frequentemente tema de notícia, seja por promessa de campanha de candidato, lançamento, corte de recursos ou qualidade do produto entregue. Pouco se fala sobre resultados de mecanismos de monitoramento ou avaliação, como diz  André Teixeira Vessoni, pesquisador na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

“Muitas delas sequer fazem algum tipo de ação de monitoramento”, afirma. Em seu trabalho de conclusão de curso, orientado por Patrícia Jaime, professora titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP, André estudou os programas de suplementação alimentar com leite e a agenda de segurança alimentar e nutricional brasileira. 

Foram mapeados programas em 14 estados e cinco capitais. Com exceção do VivaLeite, do estado de São Paulo, que prevê avaliações quadrimestrais a partir da análise de peso, altura e outras medidas das crianças beneficiárias, os outros programas não preveem qualquer procedimento de avaliação.

Já um dos únicos exemplos que implementou algum tipo de avaliação dentre os programas analisados por André foi o PAA Leite de Minas Gerais, cujo relatório foi produzido a partir de dados do CadÚnico.

Segundo a pesquisa de André, o programa municipal de Manaus parece ser o mais distante dos pressupostos da agenda atual de segurança alimentar e nutricional dentre os avaliados. “Quando a gente olha para o programa do Leite do Meu Filho, a gente não observa, por exemplo, nenhum dado de critério relacionado à vulnerabilidade social ou qualquer outro tipo de vulnerabilidade que não seja o critério idade para distribuição das fórmulas ou do leite integral de vaca”, conta. Pelas descrições que teve acesso, todas as crianças com idade entre 0 e 4 anos seriam elegíveis para receber os produtos. 

O estado do Amazonas faz parte da região com os maiores índices de desnutrição infantil do país. Chama a atenção do pesquisador o fato de o programa acontecer também dentro das Unidades Básicas de Saúde, que, segundo ele, “seriam os espaços que deveriam estar protegendo e promovendo o aleitamento materno, que a gente sabe que é uma prática que, além de estar relacionada ao desenvolvimento adequado dessas crianças, protege em relação a uma série de adoecimentos”.

O Leve Leite, de São Paulo, também distribui fórmulas a crianças de até 2 anos. Esse tipo de ação vai na contramão das diretrizes do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 anos, documento do Ministério da Saúde. 

André observa que, quanto mais regionalizado ou municipalizado, mais distante estavam os programas analisados do conceito de segurança alimentar e nutricional. Faz um paralelo com um exemplo positivo de âmbito federal, o Programa Nacional de Alimentação Escolar.  

O PNAE é antigo, vem dos anos 40, mas teve uma série de reformulações justamente no mesmo período de criação do Leve Leite. Mudanças que foram amplas e mais efetivas no sentido de garantir acesso a serviços públicos de saúde, alimentação, educação e assistência social e melhoria de renda. “As compras da agricultura familiar em âmbito federal foram drasticamente reduzidas, senão quase zeradas, então com certeza esses programas foram praticamente interrompidos, e a gente vai pensando nos impactos que isso tem, tanto para aqueles beneficiários que poderiam usufruir desses alimentos quanto para aqueles produtores rurais”, reflete. 

Para saber mais, ouça o episódio do Prato Cheio:

Por Redação

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