Há oito anos, um instituto ligado à OMS colocou as carnes processadas na categoria de produtos “comprovadamente” associados ao câncer. Mas não há previsão de retirar do mercado essas substâncias
A velha máquina de encher linguiça estava largada em um canto da cozinha da minha avó. Foi preciso lavar, lixar e passar óleo nas engrenagens enferrujadas. Parecia uma boa maneira de aprender a fazer algo que os antigos haviam feito durante boa parte da vida, antes que eu nascesse, num tempo em que eles também se lançavam a fabricar o próprio vinho, a criar as próprias galinhas e a costurar parte das blusas que nós usamos durante a infância.
Depois de algum trabalho, só faltava encontrar os ingredientes certos. No Mercado Municipal de São Paulo, o açougueiro me vendeu a carne de porco, a tripa seca para encher a linguiça e um ingrediente que ele rotulou como imprescindível: o sal de cura. Naquele tempo (por volta de 2010), na minha vida, existia uma preocupação difusa com alimentação saudável e uma preocupação mais concreta com cultura alimentar.
Eu não sabia, mas já naquele tempo a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, na sigla em inglês), que faz parte da Organização Mundial da Saúde (OMS), havia concluído que os nitritos e os nitratos de sódio, sob determinadas condições, tornavam-se um composto “provavelmente carcinogênico”.
Cinco anos depois, em 2015, a Iarc colocou todo um grupo de alimentos sob a categoria de “comprovadamente” associado ao câncer: as carnes processadas, no Brasil conhecidas pelo título genérico de embutidos – mortadela, linguiça, peito de peru, presunto, salame e companhia. Era um fato inédito na história da Iarc.
Soube disso uns dois anos depois. Foi então que decidi pesquisar o que era o sal de cura que o açougueiro indicara. E, sim, eram os tais nitritos e nitratos. Ou melhor, uma mistura de sal comum com nitritos e nitratos. Por sorte, minha experiência como charcuteiro não sobreviveu às primeiras linguiças: o cheiro forte de porco escorrendo pelas mãos logo me desanimou. Mas essa história não acaba e não termina por aí: são décadas e décadas de controvérsias, lobby, desinformação científica e danos à saúde.
O que são
Nitritos e nitratos de sódio e de potássio são compostos derivados do nitrogênio. Entre outras, são usados para curar pedaços de carne, em especial de porco. No Brasil, dificilmente se encontrará uma carne processada que não tenha esses aditivos.
Por que são um problema
Porque no processo de cura ocorre uma transformação desses aditivos em compostos nitrosos que se tornam carcinogênicos. Segundo a Iarc, o câncer colorretal é o terceiro tipo de câncer mais comum globalmente, e o segundo mais letal. Nas palavras da organização, “ao mudar sua dieta para incluir mais frutas e vegetais e menos carne, particularmente carne processada, você pode reduzir seu risco de câncer colorretal”. Em resumo, considera-se que existe uma “forte, porém ainda limitada” evidência científica de que carnes processadas causem câncer colorretal. Há ainda evidências de associação com câncer pancreático e de próstata.
Para que servem
Atualmente, a legislação brasileira reconhece nitritos e nitratos como “conservadores”, ou seja, oficialmente são aditivos que aumentam o tempo de vida dos produtos e evitam o surgimento de bactérias capazes de causar doenças. Regulamentos técnicos do Ministério da Agricultura definem que, em algumas categorias, é obrigatória a adição de nitritos e nitratos de sódio ou de potássio.
Mas a realidade quanto ao uso é mais complexa. Inicialmente, esses aditivos foram adotados para uma função cosmética. O livro Who poisoned your bacon [Quem envenenou seu bacon?, de 2021], do documentarista francês Guillaume Coudray, reconstitui o histórico de uso de nitritos e nitratos.
E esta é uma boa hora para dizer que a discussão sobre os nitro-aditivos nos leva a uma discussão mais ampla, crescente nos últimos anos, sobre o uso de aditivos alimentares. À medida que se avolumam as evidências que associam ultraprocessados a uma série de problemas de saúde, aumenta também a necessidade de entender melhor por que há tantos aditivos liberados para uso, que papéis cumprem e que problemas podem causar quando se somam em nossa ingestão diária.
Como começou
Os nitratos de sódio foram desenvolvidos no século 19. E deslocaram geograficamente a produção de carnes processadas, da Europa para os Estados Unidos, onde os primórdios da industrialização massiva criaram uma demanda por padronização. Chicago se autoproclamou “o açougueiro de porco do mundo”. Na virada do século, 40% dos porcos do planeta eram mortos no país. Nesse momento, os nitratos eram oficialmente usados como corantes.
Já os nitritos de sódio passaram a ser adicionados no começo do século 20, e logo se descobriu que uma pequena dose, de 2 a 4 gramas, o equivalente a uma colher de sopa, poderia ser letal per se.
O ponto-chave dessa soma de fatores é um só: perda de qualidade. Nitritos e nitratos representam uma economia de tempo de criação e de métodos de criação dos animais.
Como essa história continua
Toda essa vantagem competitiva dos nitro-aditivos criou pressões sobre os fabricantes europeus, que logo repassaram essa pressão aos governos para que liberassem o uso de forma a poder fazer frente aos Estados Unidos. Alguns países cederam; outros, não. Curiosamente, são esses países que não desaprenderam a fazer embutidos usando os métodos tradicionais, e hoje oferecem produtos caríssimos, como os presuntos de Parma, da Itália, e Pata Negra, da Espanha.
Linha do tempo
Um histórico de problemas
Toxicologistas do Reino Unido alertam que nitritos e nitratos podem ser carcinogênicos.
Crescem as evidências, e os fabricantes reagem, tentando rebater os dados científicos.
Departamento de Agricultura dos EUA admite que pode haver associação entre nitro-aditivos e câncer.
Iarc produz primeiras monografias a respeito.
Food and Drug Administration, agência de alimentação e saúde dos EUA, e Departamento de Agricultura dão três meses para a indústria comprovar que nitritos e nitratos não são nocivos.
World Cancer Research Fund reforça os alertas e declara: “evite carnes processadas”.
A OMS adota a recomendação para que se limite o consumo de carnes processadas.
Iarc revisa 400 estudos epidemiológicos, e conclui que as carnes processadas devem ser colocadas no Grupo 1, ou seja, no grupo para o qual há evidência suficiente de associação com câncer. Esse grupo é povoado também por tabaco e amianto, o que não significa que sejam substâncias igualmente nocivas e letais.
Uma campanha de desinformação
Nos anos 70, diante de evidências cada vez mais robustas, a indústria de carnes processadas lança uma campanha de contra-informação. É então que aparece a alegação de que os nitro-aditivos não são meramente cosméticos: seriam conservantes importantes para evitar a ocorrência de botulismo.
“Essa alegação é recente. A indústria da carne se lançou a isso desde que foram levantadas questões sobre a segurança dos nitritos. Anteriormente, a indústria dizia utilizar nitritos primariamente para dar a suas carnes o sabor e a cor avermelhada característicos.”
Jornal The Washington Post, 1976
O livro Who poisoned your bacon? busca historicamente a origem desse argumento. Até 1970, vasculhando os registros de Estados Unidos, França, Alemanha e Reino Unido, o autor não encontra qualquer menção à prevenção de botulismo. Mas, diante da pressão crescente, criou-se uma narrativa a partir de uma crise de saúde ocorrida em 1815 em Württemberg, na Alemanha.
A indústria diz que mortes foram causadas pela ausência de conservantes. “Como os autores não mencionam sua fonte, essa alegação é difícil de verificar. De toda maneira, esses autores deixam de lado o ponto essencial. Em seus escritos, Kerner [um médico da região] não menciona salpetra. Em vez disso, demonstra que a causa do ‘envenenamento do sangue pela salsicha’ é a falta de cuidado e o uso de carne podre”, escreve Guillaume Coudray. Havia um tipo específico de salsicha dando problema: era feita com leite e outros itens perecíveis, em péssimas condições de higiene e de preservação.
Nos Estados Unidos dos anos 70, diante do aumento das evidências contrárias aos nitro-aditivos, o Congresso abriu uma investigação. “Nos 40 anos cobertos pelo relatório, não houve um único caso de botulismo conectado a presuntos, bacon, salsichas, salame ou carne enlatada: nenhum caso em uma imensa produção de carne processada”, continua Who poisoned your bacon.
“Meu avô comia um monte de embutido e nunca teve problema” Nos tempos do seu avô…
- não havia dados específicos sobre câncer
- não havia estudos sobre nitritos e nitratos vs câncer
- possivelmente os embutidos eram produzidos sem nitro-aditivos
O consumo no Brasil
Os dados populacionais mais recentes são da Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE, coletados em 2017 e 18. Em comparação com o levantamento anterior, de 2007 e 08, a frequência de consumo de salsicha, mortadela e presunto havia recuado consideravelmente, ao passo que a linguiça apresentava um ligeiro aumento.
Porém, vale uma enorme ressalva: os dados foram coletados antes do combo de Jair Bolsonaro, inflação e pandemia. Antes que o Brasil tivesse ao menos 33 milhões de pessoas em situação de fome. É possível que o consumo de algumas carnes processadas tenha aumentado, em especial considerando a perda de renda da população e os altos preços das carnes bovinas.
Como funciona a fiscalização no Brasil
A fiscalização do uso de nitro-aditivos no Brasil é regulamentada por um ofício de 2009 do Ministério da Agricultura. Como se dá em outras searas de atuação da pasta, esse setor opera na base do “autocontrole“, ou seja, as corporações monitoram a si mesmas. Caso ocorra alguma violação, pode-se optar pelo recall dos produtos, pela suspensão da comercialização ou, por fim, pelo cancelamento do registro do produto.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, nós questionamos o Ministério da Agricultura sobre relatórios de fiscalização. E não há: “O Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal não faz um controle ou consolidação sistemáticos voltados ao uso de aditivos conservantes nos produtos cárneos.” O que não significa que violações não ocorram.
Alguns trabalhos acadêmicos buscam mapear esse problema. Em 2020, docentes do curso de Ciência e Tecnologia dos Alimentos da Universidade Federal do Pampa publicaram um artigo. Nesse trabalho, eles analisaram se a quantidade de nitritos e nitratos presente nas marcas-líderes de embutidos estavam dentro da legislação e do declarado no rótulo.
Os autores concluem que “isso demonstra que não existe um cuidado pelas empresas na padronização das quantidades de aditivos adicionados durante a fabricação de um produto”. Em resumo, mesmo no cenário atual, as empresas poderiam fazer muito melhor com um pouco mais de cuidado.
Para que se tenha uma ideia, em um dos casos de salsicha, bastaria consumir 18 gramas para extrapolar o limite de nitrito estabelecido pela legislação. A concentração era de 244,69 miligramas por quilo – o máximo permitido é de 150 miligramas.
O que fazer?
Durante a produção dessa reportagem, ao longo de semanas, tentamos contato com diferentes charcutarias. Ninguém quis conceder entrevista. No geral, mesmo entre charcutarias artesanais, predomina a ideia de que a retirada de nitritos e nitratos é inviável e representaria um enorme risco sanitário.
O autor de Who poisoned your bacon? aponta que a adição de zinco, historicamente, tem dado melhores resultados. Porém, esse método, usado na Espanha e na Itália, representaria alguns problemas em termos de custos: se a maturação não é bem-feita, o produto final tem um sabor ruim, o que não acontece tão facilmente na adição de nitritos e nitratos; e a cura é muito mais lenta.
Em resumo, por agora seguir a orientação da OMS de limitar o consumo de carnes processadas é o melhor caminho. Enquanto isso, a produção de novas evidências científicas pode esclarecer dúvidas sobre alternativas e problemas, e os governos podem ser pressionados a mudar as regras para garantir o uso de aditivos comprovadamente seguros.