O Joio e O Trigo

Sob Bolsonaro, valor da terra dobra em capitais do agronegócio

Mercado aquecido das commodities e real desvalorizado impulsionam o preço da terra no Mato Grosso, que já se multiplicou em 18 vezes desde o começo do século. No bolsonarismo, soja avança o equivalente ao Sergipe, inclusive sobre áreas de produção de alimentos

Quilômetros e quilômetros de plantações de soja, cidades planejadas, caminhões, caminhonetes, placas de corporações do agro, lojas de grife: o cenário das rodovias e dos municípios de Mato Grosso é de pujança. E o preço da terra acompanha. A nova realidade é a seguinte: fazendas vendidas a R$ 200 milhões, R$ 500 milhões e até R$ 1,5 bilhão. O real depreciado e o boom das commodities levaram o valor da terra a um novo patamar durante o governo de Jair Bolsonaro.

Só entre 2019 e 2021, o preço do hectare entre dez das principais cidades do agronegócio no estado saltou de uma média de R$ 20 mil para R$ 43 mil. Nos últimos vinte anos, o aumento foi de 1.700% – o que representa uma multiplicação por dezoito vezes no período. 

Nessa mesma janela, a inflação foi de 240%, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA/IBGE), e o preço da soja, um dos principais fatores de valorização dessas terras, cresceu em 489%, de acordo com dados do Cepea/Esalq/USP. 

Os dados são da consultoria IHS Markit e foram compilados a pedido do Joio pelo pesquisador Junior Aleixo, do Grupo de Estudos sobre Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a UFRRJ. 

Doutorando em Ciências Sociais na UFRRJ, ele aponta que o aumento de projetos de infraestrutura relacionados ao agronegócio pode explicar parte dessa dilatação no valor das terras. “Quando se indica que vai haver um projeto, há um aumento substancial no valor dessas terras. É a busca pelo que se chama de ‘fluidez territorial’”, diz. 

Para o levantamento, foram selecionadas as fazendas com produtividade “média” e que tenham como finalidade “cultivo de grãos”, conforme as categorias de análise da IHS Markit. 

O mapeamento abrange cidades-chave do agronegócio: Brasnorte, Canarana, Campo Novo dos Parecis, Diamantino, Lucas do Rio Verde, Nova Mutum, Querência, Sapezal, Sinop e Sorriso.

Segundo a pesquisa Produção Agrícola Municipal (PAM), do IBGE, esses municípios produziram o equivalente a R$ 56 bilhões em produtos agrícolas e 24 milhões de toneladas de soja e milho em 2021. 

Apoio a Bolsonaro e alta produtividade

Essas cidades têm estado no centro das atenções nos últimos anos não apenas pela pujança econômica. Do ponto de vista político, forneceram apoio entusiasmado a Jair Bolsonaro. Em 2021, o produtor rural Antonio Galvan, então presidente da Associação dos Produtores de Soja de Mato Grosso (Aprosoja), chegou a ser investigado por financiar atos golpistas. Em 2022, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou o bloqueio de contas de dezenas de empresários do agronegócio de Mato Grosso envolvidos em uma nova onda de atos golpistas.

O período de Bolsonaro marcou também uma forte expansão do cultivo de soja em Mato Grosso. A área de produção mato-grossense aumentou em dois milhões de hectares – equivalente ao tamanho de Sergipe. 

Nas projeções do Ministério da Agricultura, Mato Grosso ainda viverá em expansão durante muito tempo: até 2032, a área de produção de soja crescerá 30%, chegando ao dobro do segundo estado produtor, o Rio Grande do Sul. O mercado aquecido reflete também a convicção de que o país, na soma, ultrapassará os Estados Unidos como maior fornecedor global de commodities – nesse sentido, a terra brasileira seria, ainda, relativamente barata. 

Como o Joio mostrou, parte desse avanço se dá sobre assentamentos que antes eram utilizados para a produção de alimentos. No Assentamento 12 de Outubro, em Cláudia, um importante corredor de produção de commodities, vimos lotes da reforma agrária tomados pela soja. E entrevistamos o paranaense Jacir Cadore, que planta em “quatro ou cinco” lotes arrendados no local. 

Já em Sorriso, capital oficial do agronegócio, os moradores do assentamento Jonas Pinheiro orgulham-se da produção de mandioca e têm até uma pequena fábrica onde a transformam em farinha. Mas convivem com a incerteza. “Aqui no assentamento, mesmo, tem gente que planta soja, mas não sei nem como é que vende essa soja”, disse Marcio Manoel da Silva, morador do assentamento. 

“E aí, quando a gente quer fazer uma cultura legal, sem produto químico, a gente não consegue recurso. E esse povo consegue, não sei como.” Naquele momento, o assentamento tinha 1.777 hectares tomados pela soja, segundo a plataforma MapBiomas, o equivalente a um quarto da área total. Foram 200 hectares a mais em apenas um ano, e 600 hectares ao longo dos três primeiros anos de Bolsonaro. 

Algumas das maiores altas no preço da terra se dão justamente nessa região. Entre 2020 e 2021, o valor do hectare dobrou em Sorriso, de R$ 25.500 para R$ 51.450, e em Lucas do Rio Verde, de R$ 26.500 para R$ 51.717. Sinop, cidade tida como a capital do chamado Nortão de Mato Grosso, registrou uma valorização ainda mais expressiva, de R$ 17.500 para R$ 43.500. 

Boom no valor das terras

O boom das commodities claramente tem reflexos nas áreas urbanas. Como mostramos no Joio, bairros planejados, com nomes em alusão à Europa, são construídos em áreas valorizadas, enquanto favelas nascem às margens de cidades como Sorriso e Sinop. 

O processo de ocupação reflete, também, a prioridade em termos de obras de infraestrutura. Ao circular pelas cidades com terras mais valorizadas, é difícil ignorar as promessas de chegada de ferrovias e rodovias. 

É o caso justamente do Nortão mato-grossense, que recebeu a bênção do governo federal para abrigar a Fato, Ferrovia Autorizada de Transporte Olacyr de Moraes. Nascido como empreendimento privado da Rumo, maior operadora logística do Brasil, o ramal pretende conectar as cidades-chave do Nortão à ferrovia que vai de Rondonópolis, no sul de Mato Grosso, ao porto de Santos. O Ministério Público Federal contesta a obra, que afetaria duas terras indígenas do povo Bororo. Tanto a Funai como o Ibama, sob o bolsonarismo, ignoraram apelos das áreas técnicas por um maior cuidado com o empreendimento.

Não é uma situação isolada: uma série de ferrovias conectarão o estado a corredores de exportação via Norte, Nordeste e Sudeste. 

Se os planos do agronegócio derem certo, o Brasil será cortado por uma extensa e inédita malha ferroviária e a empresa Rumo é central nesse processo.

O clima político criado pelo bolsonarismo, aliás, também se transforma em valor de mercado. Fontes ouvidas pelo Joio confirmam que o aval para grilagem, desmatamento e avanço sobre terras públicas se reflete em um aquecimento da corrida fundiária. 

Na série “Muito além da porteira”, mostramos como o atrelamento entre mercado financeiro e agronegócio havia atingido um novo patamar durante o governo Bolsonaro. As maiores lideranças do setor projetavam que os instrumentos privados ultrapassassem o Plano Safra, de dinheiro público, como principal meio de financiamento do setor – o que de fato ocorreu. 

A Lei do Agro, sancionada em 2020, facilitou investimentos em Letras de Crédito do Agronegócio e Certificados de Recebíveis do Agronegócio. Logo em seguida, o Congresso aprovou um projeto de lei que regulamentou os fundos de investimento do agronegócio, os Fiagro. Naquele momento, conforme o Joio mostrou, os picos de movimentação do mercado financeiro acompanhavam os acontecimentos políticos de Brasília favoráveis ao ambiente de desmatamento, grilagem e exploração econômica de florestas públicas e terras indígenas. 

Junior Aleixo acredita que os novos meios de financiamento da produção via mercado financeiro possam ter contribuído para a explosão no valor da terra, na medida em que facilitam o fracionamento das propriedades – dadas como garantia nos empréstimos – e a transmissão do título de propriedade, sem a necessidade de arbitragem judicial, pois representam “uma garantia jurídica para os investidores”.

Atrelamento ao mercado financeiro 

A explosão no valor das terras nos últimos anos também consta de relatórios do mercado financeiro. Em 2021, uma incorporadora de terras argentina com atuação no Brasil chamou a atenção. A Brasil Agro, que é uma das maiores empresas do setor, anunciou a venda de uma parte de sua propriedade em Alto Taquari, na região sul de Mato Grosso, pelo valor recorde de R$ 218,6 mil por hectare. Era o dobro de uma negociação na mesma área apenas um ano antes, e 24 vezes mais que o valor de compra, em 2007. 

Este ano, um relatório enviado ao mercado financeiro pela Brasil Agro mostra que a empresa comprou uma fazenda em Querência (MT) pelo valor de R$ 26 mil por hectare. O valor é cerca de 70% do indicado pelas projeções da IHS para o município.

O comunicado “Valor das Terras 2022”, de outra grande incorporadora de terras, a SLC Agrícola, indica que as fazendas que a empresa já detinha em 2007 sofreram uma valorização de 700% de lá para cá. O mesmo documento mostra também que, entre 2021 e 2022, o portfólio – ou seja, o conjunto de terras detido pela empresa – sofreu uma valorização de 34%. 

A desvalorização do real também entra nessa equação, ao tornar os produtos brasileiros mais competitivos no exterior. Com ocrescimento das exportações, “houve altos ganhos para o setor do agronegócio”, explica o engenheiro agrônomo Abelardo Gonçalves, diretor da Associação Paulista de Extensão Rural, a Apaer. “Quando há uma atividade que está dando altos ganhos, ela é valorizada. Se o principal fator de produção para entrar nesse mercado é a terra, então a terra vai se valorizar.”

O analista Lucas Uehara, da Agrotools, uma consultoria que presta serviços de avaliação de terras para bancos e seguradoras, analisa que, além da desvalorização cambial e do preço das commodities, incrementos na produtividade do plantio de grãos podem ter ajudado a puxar o preço da terra para cima. 

“As multinacionais trouxeram produtos comerciais e princípios ativos [de agrotóxicos] novos, houve a adoção do plantio direto [técnica de manejo diferenciado da terra] e aperfeiçoamentos na análise química, física e biológica do solo”, argumenta ele. “Isso tudo também pode contribuir para aumentar o valor da terra.” 

A tendência de aumento no preço das terras deve se manter, ainda que haja uma queda nas exportações para a China, como prevêem documentos da Confederação Nacional da Agricultura. “Uma queda nas importações da China vai ser compensada com a busca europeia, por conta da Guerra na Rússia/Ucrânia [dois grandes exportadores de grãos]”, argumenta Abelardo Gonçalvez, da Apaer. 

Uehara, da Agrotools, é da mesma opinião. “Ainda que não haja uma explosão tão grande como a que vimos nos últimos anos, a tendência é que os valores permaneçam nesse patamar alto”.  

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