Áreas de produção de soja na Terra Indígena Utiariti, em Mato Grosso. Foto: Fellipe Abreu

Governo Lula mantém norma inconstitucional de Bolsonaro sobre terras indígenas

Instrução normativa libera exploração agropecuária por não indígenas, o que viola Constituição. “Medida deve ser revogada urgentemente”, diz movimento indígena

Prestes a completar cem dias, o governo Lula mantém vigente uma norma do governo Jair Bolsonaro que libera exploração agropecuária dentro de terras indígenas em parceria com não indígenas. 

O “revogaço” prometido durante a campanha eleitoral do ano passado abarcou medidas relativas aos povos tradicionais, como a norma igualmente inconstitucional que liberava a exploração de madeira dentro das terras indígenas. Mas poupou a Instrução Normativa Conjunta nº 1, editada em fevereiro de 2021 por Funai e Ibama.

A norma trata de procedimentos a serem adotados no processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organizações indígenas.

No seu primeiro artigo, o documento prevê o licenciamento quando o empreendedor é o próprio indígena por meio de associações, organizações de composição mista de indígenas e não indígenas, cooperativas ou diretamente via comunidade indígena.

A manutenção da norma preocupa o movimento indígena. “A medida deve ser revogada urgentemente pelo atual governo federal”, afirmou, por meio de nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A organização disse que “tem alertado lideranças e organizações regionais indígenas sobre os impactos da instrução normativa que permite exploração dentro dos Territórios Indígenas”. Na nota, a organização indígena lembrou que a norma está presente na lista de  sugestões de atos normativos a serem revogados pelo governo, apresentada no relatório final do GT Povos Indígenas do governo de transição, da qual a APIB fez parte. 

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) também se manifestou. Disse, em nota, que a reestruturação da Funai deve alcançar a revogação dos atos administrativos da gestão Bolsonaro que fragilizam os direitos indígenas, “a exemplo da Instrução Normativa Conjunta nº 1. Não se sustenta, portanto, diante da perspectiva de que o novo governo e a nova gestão da Funai estejam comprometidos com o regular exercício dos direitos indígenas, a manutenção da referida IN considerando que é claramente inconstitucional e fere tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e que protegem os territórios e a autodeterminação dos povos”. Um governo que preza pela democracia, disse, “não deve admitir uma medida eivada de vícios e que desconsidera o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado dos sujeitos que direta e irreversivelmente sofrerão seus impactos”.

À época da edição da IN, Apib e Coiab emitiram notas criticando a norma e pedindo sua revogação. Em uma nota pública, a Apib “alerta suas bases, povos e organizações indígenas para não se iludirem com as proposições falaciosas da norma […], uma vez que a artimanha implica na real intenção de, por um lado, burlar as garantias constitucionais da autonomia e do usufruto exclusivo dos povos indígenas, e por outro, na flexibilização das regras do licenciamento ambiental, ao grau de o Ibama não exigir o licenciamento em alguns casos”.

De acordo com a Apib, “no desespero de abrir os territórios para quaisquer tipos de empreendimentos, não apenas agropecuários”, o governo atropela o direito de consulta livre, prévia e informada previstos na Constituição e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. 

No mesmo mês, a Coiab também se posicionou por meio de nota, expressando “veemente repúdio e revolta” com a IN. Na teoria, diz o documento, a norma tem o objetivo de disciplinar o licenciamento das atividades em TIs.  Na prática, porém, “vai dar amparo legal para a invasão, nesses territórios, de estradas, fazendas, hidrelétricas, monoculturas e outros projetos que colocam em extremo risco os recursos naturais, a biodiversidade, a segurança e os modos de vida próprios dos povos indígenas”.

Fazendas de produção de monocultura na Terra Indígena Utiariti, em Mato Grosso. Legendar. Foto: Fellipe Abreu

Ação por violação de terras

Em abril daquele ano, o Ministério Público Federal (MPF) havia recomendado à Funai a revogação da instrução normativa. Sem sucesso, meses depois, em setembro, o procurador da República Ricardo Pael Ardenghi ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP) contra a Funai e o Ibama para que seja retirado do artigo 1º da Norma a expressão “organizações de composição mista de indígenas e não indígenas”, assim como a exclusão do parágrafo 1º do mesmo artigo. 

O procurador é titular do Ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais em Mato Grosso. Ele também pede ao Ibama que, nos processos de licenciamento ambiental realizados com base na norma, seja realizada a consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas atingidos. 

O pedido do MPF argumenta que a norma viola o princípio do usufruto exclusivo das terras indígenas pelos próprios indígenas, previsto na Constituição Federal e na lei de criação da Funai, além de constar do Estatuto do Índio e da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Pngati).

De acordo com o artigo 231 da Constituição Federal, “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

Na ação, Pael afirma que “o discurso de que os indígenas encontram-se em situação de ‘miserabilidade’ e ‘são impedidos de produzir’ tem sido usado como elemento legitimador de uma política indigenista mais voltada aos interesses do agronegócio praticado por não-índios que propriamente dos indígenas”. E afirma que, com isso, a Funai vem se utilizando “de sua própria omissão, dos malefícios causados pela deficiência na sua atuação, para justificar a adoção de medidas ilegais que beneficiam setores específicos da economia, como o agronegócio”. 

Antes de ingressar com a ação, o MPF havia feito uma recomendação à Funai, mas foi ignorado.

Em agosto de 2022, a Justiça Federal do Mato Grosso, por meio do juiz Raphael Casella de Almeida Carvalho, negou o pedido de liminar da Ação Civil Pública do MPF. O órgão entrou com recurso, mas o juiz manteve a decisão. Em novembro do mesmo ano, o MPF apresentou réplica à contestação. Atualmente, o andamento da ACP está em “concluso para julgamento” desde o dia 1º de março.

A instrução normativa fez parte de uma série de medidas tomadas pelo governo Jair Bolsonaro para favorecer os interesses do agronegócio. 

No Planalto, a ofensiva teve como ponta de lança a escolha de Marcelo Xavier para a presidência da Funai.delegado da Polícia Federal é próximo dos ruralistas e tinha como histórico haver atuado numa CPI contrária à própria fundação. 

Entusiasta da produção de monoculturas dentro de terras indígenas, o governo Bolsonaro apoiou a criação do projeto “Agro Xavante”, de produção de monocultura dentro da Terra Indígena Sangradouro, em Mato Grosso, retratado na série de investigações “Os Parceiros do Rio das Mortes”, do Joio.

Em 16 de janeiro deste ano, logo após a posse de Lula, o governo federal revogou a Instrução Normativa Conjunta nº 2, que regulamentava a exploração de madeira em terras indígenas e que havia sido publicada pouco antes do final da gestão de Bolsonaro. 

Por meio de sua assessoria, o MPF disse que ainda não teve a oportunidade de tratar da norma com a nova gestão da Funai ou do Ibama, “logo, qualquer opinião sobre a sua não revogação seria mera suposição, o que o MPF não faz.

A reportagem procurou o Ibama, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas, mas não houve retorno até a publicação deste texto.

Em janeiro, pedimos entrevistas com a presidenta da Funai, Joenia Wapichana e com a Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, mas as solicitações não foram atendidas.

Por Tatiana Merlino

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