No início do governo Bolsonaro, uma antiga demanda da fabricante do Lucky Strike e do Kent entrou na pauta no Ministério da Justiça de Sergio Moro. O Joio teve acesso a documentos que ajudam a entender essa história
Menos de três meses após tomar posse como ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro, Sergio Moro assinou uma portaria que deixou de cabelos em pé quem atua no controle do tabagismo no país: o documento, de 23 de março de 2019, instituía um grupo de trabalho (GT) para avaliar a “conveniência e a oportunidade” de uma redução da tributação de cigarros fabricados no país. O ministério queria ver se isso poderia diminuir o consumo de produtos contrabandeados do Paraguai, ao tornar o concorrente brasileiro mais barato.
Mas quem está familiarizado com a discussão não demorou a desconfiar que houvesse um dedo da indústria do cigarro na criação do grupo de trabalho. Os novos tempos do bolsonarismo eram o cenário propício para reabilitar no debate público as mesmas corporações que, ao longo de décadas, fraudaram evidências científicas sobre os problemas causados pelo cigarro.
Oficialmente, os trabalhos durariam três meses. Logo de cara, chamava a atenção o fato de que não haveria ninguém da Saúde nem da Receita Federal no núcleo duro do GT. Sua composição incluía apenas representantes da Polícia Federal, da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos – todas subordinadas ao Ministério da Justiça. Segundo a portaria, os ministérios da Economia e da Saúde seriam convidados depois para participar dos estudos.
Entre pesquisadores da área é ponto pacífico a importância de ter impostos altos para cigarros. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que essa é uma medida altamente eficaz para reduzir a prevalência de tabagismo. De outro lado, o contrabando é o argumento preferido da indústria do cigarro para tentar frear o aumento da carga tributária.
O GT seguiu seu curso e, no fim, acabou deixando de lado a ideia de mexer nos impostos. O relatório final concluiu que não havia elementos suficientes que indicassem a eficácia dessa estratégia.
Mas nunca houve muitas informações sobre o que aconteceu entre a criação do grupo de trabalho e a publicação do relatório, nem sobre o que precedeu o surgimento desse GT. Por isso, o Joio acionou a Lei de Acesso à Informação (LAI) para obter os documentos relacionados ao caso e entender melhor essa história.
Por que as coisas são assim
Antes de entrar no GT propriamente, a gente precisa entender como funciona a tributação dos cigarros no Brasil. “É importante taxar o cigarro por conta de sua externalidade negativa: é um produto cujo consumo se quer reduzir, e esse consumo tem implicações não só para a saúde das pessoas, mas para o poder público: são gastos com saúde, impactos na Previdência devido à redução da vida laboral de quem adoece, etc. Ou seja, é um problema de saúde pública que gera custos para o Estado. Então, tributando, você ao mesmo tempo desestimula o uso e traz recursos ao Estado por meio da arrecadação, para bancar o prejuízo que o cigarro causa”, resume o economista Alan Towersey, auditor da Receita Federal.
Estima-se que, em média, um aumento de 10% no preço dos cigarros pode diminuir o consumo em 4% nos países de alta renda e 5% em países de renda média e baixa. Não é por acaso que a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco – um tratado internacional do qual o Brasil faz parte – diz que os países signatários devem adotar políticas tributárias que contribuam com a redução do consumo.
Grandes mudanças
Mas o percentual do preço de venda dos cigarros que vai para o pagamento desses tributos mudou várias vezes ao longo da história, como já contamos aqui. Desde os anos 1990, vários estudos têm demonstrado que aumentar o preço dos cigarros é uma forma eficaz de reduzir o consumo. Só que no fim daquela década essa carga tributária no Brasil foi reduzida, em vez de aumentada.
É que o país enfrentava um problema de contrabando de cigarros, e fabricantes brasileiras alegavam que, se os impostos dos cigarros fossem reduzidos, os preços também cairiam. Assim, os cigarros legais poderiam ocupar o mercado que estava sendo abocanhado pelo contrabando. Qualquer semelhança com o objetivo do GT criado pelo Ministério da Justiça em 2019 não é mera coincidência.
Em 1999, a Receita Federal resolveu de fato reduzir o IPI. Os cigarros foram separados em categorias, e as marcas mais baratas pagavam menos imposto. Se isso tivesse realmente levado os cigarros legais a ocupar o lugar dos ilegais, a arrecadação tributária teria aumentado. Mas aconteceu justamente o contrário – e o problema do contrabando tampouco foi resolvido.
Mais de uma década se passou antes de uma lei virar o jogo. Até 2011, o IPI tinha valores fixos de acordo com cada categoria de preço, variando de R$ 0,76 a R$ 1,35. Quanto mais barato o cigarro, menor era o imposto. A partir da nova lei, o IPI passou a ser dividido em duas partes: uma varia com o preço de venda; a outra é fixa, e desde 2016 está em R$ 1,50 por vintena (maço ou box). Isso significa que, quanto mais caro é o cigarro, menor o peso do IPI. Além disso, foi estabelecido um preço mínimo por vintena, que começaria em R$ 3,00 e deveria ser aumentado a cada ano.
Até 2016, as mudanças levaram a carga tributária dos cigarros a crescer. Em conjunto com outras medidas – como as campanhas de saúde pública promovidas contra o fumo –, o aumento progressivo nos impostos ajudou a reduzir a prevalência do tabagismo no Brasil, que caiu de 14,8% para 10,1% entre 2011 e 2017. Só que desde 2016 o governo federal nunca mais reajustou os impostos sobre cigarros, e o preço mínimo da vintena ficou estacionado em R$ 5.
De onde veio?
A origem do GT criado pelo Ministério da Justiça é incerta. Mas demandas pela redução dos impostos do cigarro volta e meia apareciam nas reuniões do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP), segundo as atas a que o Joio teve acesso.
Esse é um órgão consultivo do ministério que reúne os setores público e privado: há representantes de secretarias, polícias, agências reguladoras, outros ministérios e cinco entidades do setor privado. A indústria do fumo é representada em duas cadeiras do Conselho: pelo Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) e pelo Grupo de Proteção à Marca (BPG). O Fórum tem a BAT Brasil (antiga Souza Cruz) entre suas associadas, enquanto a Philip Morris faz parte do BPG.
Um dos membros do Conselho é defensor de longa data da redução de impostos de cigarros: Edson Vismona, fundador e presidente do FNCP e também diretor-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) – outra entidade da qual a BAT Brasil faz parte. Em 2018, por exemplo, o ETCO publicou um caderno especial inteiro – pago – no Correio Braziliense sobre tributação. O texto diz que o “governo errou na mão ao seguir a tendência internacional e taxar, pesadamente, a indústria do tabaco, na tentativa de reduzir o consumo”, argumentando que essa prática “deixou de atingir o objetivo por abrir caminho ao mercado ilegal”.
Vismona nega que o ETCO, o FNCP ou o CNCP tenham pedido ao Ministério da Justiça a criação de um Grupo de Trabalho para se debruçar sobre esse tema. Em entrevista ao Joio, ele apenas disse que essas entidades estão “sempre prontas” para fomentar as discussões sobre o mercado ilegal em cada governo, e também para mostrar que estão presentes: “Agora nós vamos levar o assunto ao novo ministro da Justiça [Flávio Dino], mostrar a importância do Conselho, mostrar como o Conselho age com a sociedade. Isso nós fizemos e faremos agora com o novo ministro”, anuncia. Ele afirma, porém, que o debate sobre a questão tributária em 2019 partiu do próprio governo.
No entanto, fontes ouvidas pela reportagem contam que a questão chegou ao Ministério da Justiça por meio do lobby promovido pelo setor, mais precisamente pelo ETCO.
Logo no comecinho do governo Bolsonaro, entidades ligadas ao tabaco conseguiram ao menos três reuniões no Ministério da Justiça, como revelou na época o jornal Folha de S. Paulo. Ainda em janeiro, Sergio Moro recebeu representantes do ETCO e do FNCP – embora na agenda oficial só constasse encontro com o então deputado Efraim Filho, coordenador da Frente Parlamentar Mista de Combate ao Contrabando e à Falsificação.
Em 25 de fevereiro, a BAT Brasil e a Japan International Tobacco (JTI) tiveram reunião com o advogado Luciano Timm, que em janeiro havia sido nomeado secretário Nacional do Consumidor. Dois dias depois, Timm assumiu a presidência do CNCP. Na mesma ocasião, ele pautou no Conselho a criação de uma Comissão Especial do Cigarro – voltaremos a ela adiante.
Ainda segundo a Folha, em 25 de março o secretário-adjunto de Operações Integradas do Ministério, José Washington Luiz Santos, também se reuniu com entidades ligadas ao tabaco. Na mesma época, foi publicada a portaria que criou o GT. Seu relator viria a ser Luciano Timm.
Figura controversa
O hoje senador Sergio Moro (União Brasil-PR) não atuou como juiz em nenhum processo envolvendo empresas de fumo, e duas pessoas com conhecimento sobre o GT disseram ao Joio que, quando ele assumiu o ministério, seu maior interesse era aprovar no Congresso o “pacote anticrime”. Assim, Moro deu pouca atenção ao GT, e as discussões foram de fato comandadas pelo segundo escalão — mais especificamente por Luciano Timm.
Especialista em Direito Empresarial, Timm é sócio do escritório Carvalho, Machado e Timm Advogados (CMT). O escritório não tem como prática defender diretamente as grandes empresas de tabaco em tribunais, embora atenda a muitas empresas do agronegócio.
É curioso que, em 2017, Moro tenha tido uma participação em evento da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), que foi presidida por Timm entre 2016 e 2017. O evento também contou com falas de Pery Shikida – pesquisador que defende a redução dos preços dos cigarros. Seu estudo a esse respeito foi usado pelo GT como subsídio às discussões.
Apesar desse contato prévio, aparentemente Timm não possuía nenhum laço mais forte com Sergio Moro até assumir a Senacon. “Ninguém sabe direito como ele ganhou essa importância no Ministério da Justiça”, conta uma fonte que conviveu com Timm em algumas audiências públicas. “Mas o fato é que ele soube aproveitar muito bem esse relacionamento depois que entrou.”
A própria passagem de Timm pela secretaria é no mínimo controversa. Isso porque seu escritório assessora empresas nas relações com autoridades relacionadas à defesa do consumidor, como os Procons e a própria Senacon. O advogado se licenciou do escritório no período em que comandou o órgão. Mas o escritório, evidentemente, não deixou de representar empresas em conflitos com consumidores.
“Enquanto o Procon de São Paulo estava multando empresas de supermercados, esse escritório estava entrando com ação na Justiça para anular a multa. Timm comandava a Senacon – estava licenciado como advogado, mas seu nome ainda aparecia nas petições, já que faz parte do próprio nome do escritório”, exemplifica a fonte ouvida pelo Joio. “Isso não é um problema legal, mas certamente entra no campo da moralidade. Era muito óbvio que ele estava ali na secretaria para poder ampliar seu networking na advocacia empresarial.”
Timm deixou a Senacon em agosto de 2020 – e voltou a advogar para empresas logo em seguida. “Ele não cumpriu quarentena. Começou a participar de reuniões, como advogado de empresas, no órgão que chefiava até semanas antes.” Não bastasse isso, no ano seguinte ele foi convidado para ser o relator de mudanças nas leis da Comissão de Serviço de Atendimento ao Consumidor. “Ele seguiu à risca a cartilha da porta giratória. Conseguiu firmar relações fortes em Brasília. Tanto que, logo depois que saiu da Senacon, seu escritório abriu uma filial na capital”, conta a mesma fonte.
A reportagem procurou Luciano Timm para comentar sua atuação à frente do GT e do CNCP, mas ele não quis dar entrevista.
Imposto na curva
Um dos estudos que patrocinaram a ideia da redução dos tributos é “Uma alternativa de combate ao contrabando de cigarro a partir da estimativa da curva de Laffer e da discussão sobre a política de preço mínimo”, de Mario Antonio Margarido, Matheus Nicola e Pery Shikida.
A ideia básica da curva de Laffer é a de que aumentar os impostos de um produto gera aumento das receitas tributárias, mas só até determinado valor. Haveria um ponto de inflexão – um valor de alíquota a partir do qual a arrecadação cairia. Por isso mesmo, esse é um modelo normalmente usado para defender a redução de impostos.
Esse trabalho foi apresentando em 2017 em um encontro da Associação Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos. E, de acordo com as atas das reuniões do CNCP, os autores participaram de reunião no Conselho para falar sobre o tema em abril de 2019, já com o GT em curso. Mais tarde, o trio publicou outro artigo sobre o mesmo tema. Nenhum dos três autores havia escrito nada sobre o assunto antes de 2017.
Mas a tática de usar a curva de Laffer para pleitear a redução de impostos do tabaco já vinha sendo usada pelo ETCO desde outros carnavais: em 2015, o então presidente-executivo do instituto, Evandro Guimarães, publicou artigo na Gazeta do Povo trazendo justamente esse embasamento.
Margarido e seus colegas estimaram a curva de Laffer para o cigarro no Brasil, calculando qual seria a “alíquota ótima” para o IPI do produto. Chegaram a um valor de 32,46% – muito próximo do que já é praticado. Mas eles dizem que, como o Brasil tem uma política de preços mínimos, os cigarros brasileiros são muito mais caros do que os contrabandeados, o que levaria a um maior consumo dos ilegais.
Eles defendem, então, a eliminação da política de preço mínimo no país e a segmentação do mercado de cigarros, com o IPI aumentando proporcionalmente ao preço de venda. Haveria assim um segmento de cigarros baratos que competiria com o mercado ilegal. É a mesma estratégia que já foi tentada no Brasil, sem sucesso.
Os autores argumentam que o aumento no consumo de cigarros legais elevaria a arrecadação de tributos e a disponibilidade de recursos “para programas que coíbem o hábito de fumar nos mais jovens”. Em resumo, um aumento no consumo de cigarros para poder promover mais campanhas antifumo.
Tem mais uma pérola: eles dizem que a medida teria efeitos benéficos para a saúde pública, porque as pessoas deixariam de consumir “cigarros de baixa qualidade e passariam a consumir produtos que respeitam as normas exigidas por instituições que regulam esse mercado no Brasil”. Mas o argumento é contestado por pesquisadores. Um estudo da Fiocruz concluiu que não existe nenhuma evidência de que cigarros ilícitos tenham maior impacto na saúde do que os legais.
O trabalho de Margarido, Nicola e Shikida recebeu muitas críticas. A pedido da ONG ACT Promoção da Saúde, a LMV Consultoria Econômica fez uma revisão técnica e análise crítica do artigo e concluiu que “carece de rigor teórico e técnico, não apresentando conclusões robustas e que possam sobreviver a questionamentos mais elaborados”. Segundo a análise, não há consenso a respeito dos estudos de curva de Laffer, e o estudo não traz referências bibliográficas que tenham previamente empregado essa metodologia para o setor de cigarros e de mercados ilegais.
Os economistas responsáveis pela revisão também fizeram vários apontamentos acerca da qualidade questionável dos dados utilizados no estudo e sobre a falta de análise das políticas públicas de saúde.
A voz da indústria
Fazendo coro com o estudo da curva de Laffer, a redução da carga tributária dos cigarros também é defendida em documentos enviados por fumageiras ao GT.
O ETCO (do qual a BAT Brasil faz parte) encomendou um estudo à Fundação Getulio Vargas (FGV), e o documento afirma que a política brasileira de preços e impostos “contribuiu decisivamente para a expansão da ilegalidade”. A proposta é justamente segmentar o mercado e ter produtos mais baratos pagando menos imposto. Já o estudo enviado pela própria BAT Brasil cita a curva de Laffer para argumentar que uma alta incidência de impostos pode significar redução da arrecadação.
A ideia de reduzir impostos e segmentar o mercado favorece a BAT Brasil por duas razões. Em primeiro lugar, porque a empresa tem marcas baratas, que hoje pagam proporcionalmente muito imposto, e passariam a pagar menos. Em segundo, porque ela também tem marcas um pouco mais caras, que poderiam ser colocadas no limiar entre dois segmentos. Desse modo, poderiam competir pelo público-alvo dos produtos mais caros, mas pagando os impostos de produtos de preço intermediário.
Esse não é o caso da Philip Morris, cujo carro-chefe é o Marlboro. Em caso de segmentação do mercado, esse cigarro estaria definitivamente no estrato superior, pagando mais imposto. Não por acaso, o estudo submetido pela empresa concluiu que a redução do preço mínimo e da tributação do cigarro não seriam suficientes para fazer com que o mercado legal abocanhasse o ilegal, e as medidas ainda teriam impactos negativos sobre a arrecadação do governo.
Em suas apresentações ao GT, tanto a Polícia Rodoviária Federal (PRF) como a Polícia Federal (PF) usaram dados de contrabando provenientes de entidades ligadas à indústria do fumo. A PRF não se posicionou em relação à questão tributária. Mas, ao apresentar suas atribuições em relação ao problema do contrabando, utilizou apenas dados do ETCO e do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf), parceiro estratégico da BAT Brasil.
No documento apresentado pela PF, os números do contrabando são os estimados pelo Fórum Nacional de Combate à Pirataria e à Ilegalidade (FNCP): quase 60% do cigarro vendido no Brasil seria proveniente do contrabando. Como veremos, os dados apresentados pela indústria do tabaco não batem com os oficiais.
No texto assinado pelos delegados Ronaldo de Góes Carrer e Allan Dias Simões Maia, a PF se coloca como favorável à criação de uma faixa de “cigarros populares” e diz “não se tratar de incentivo, mas de estratégia”. O documento afirma que “se 60% do mercado consumidor prefere cigarros paraguaios, certamente não o faz pela sofisticação, qualidade ou status social entregue por aquela mercadoria. O fator de escolha é, exclusivamente, o preço”.
Também afirma que “o combate efetivo ao contrabando de cigarros deve ser feito no preço” e conclui, sem qualquer base, que os “efeitos incidirão em 60% dos cigarros comercializados no Brasil, que se tiverem preço competitivo, deixará de ser contrabandeado e passará a ser nacional (sic)”.
Os argumentos se confundem com a posição de Edson Vismona, que comanda o ETCO e o FNCP. De acordo com ele, não adianta enfrentar o problema do contrabando atacando só a oferta – ou seja, reprimindo essa oferta com busca e apreensão de produtos e desbaratamento de fábricas clandestinas.
“Não podemos esquecer da demanda, e demanda é preço, impactado pelos impostos”, disse ao Joio. “Não precisa ser economista para entender isso. É lógico: aumentou o preço, eu vou procurar o mais barato. Especialmente o fumante de baixa renda. Ele não tem escolha. Ele vai escolher o mais barato. E o barato tá aonde? Na mão do contrabando. Então é por isso que domina o mercado.”
Clima estranho
“Na minha primeira reunião no GT, senti uma certa pressão para se aprovar o entendimento de que a redução da tributação diminuiria o contrabando”, comenta uma fonte que participou do grupo, mas pediu para não ser identificada. Essa pessoa diz que não se tratava de pressão por parte de uma entidade ou uma pessoa específica, mas uma espécie de clima geral – que, no entanto, começou a mudar depois que a Receita Federal fez suas contribuições, representando o Ministério da Economia.
E a apresentação da Receita desmontou a ideia de que reduzir o preço dos cigarros legais teria algum efeito benéfico sobre o contrabando: “[Somando-se o custo de aquisição, mais o custo do contrabando, chegaremos ao valor de R$ 0,94 por maço de cigarros [paraguaios]. Como o preço médio de venda de cigarros contrabandeados no Brasil é de R$ 2,50, vemos que a margem de manobra (‘lucro’) do contrabandista hoje é de 165,96%”, estima o documento do órgão, em trecho que entrou no relatório final do GT. Ou seja: mesmo que houvesse uma drástica redução dos preços dos cigarros legais, os paraguaios continuariam sendo muito mais baratos.
O documento também se opõe à segmentação do mercado, porque “não existem critérios objetivos suficientemente íntegros para a fixação das faixas de preço, ou seja, não há bons critérios para estabelecer quais marcas devem estar em determinado segmento”. Além disso, o órgão alerta que as empresas podem posicionar seus produtos nos limites de cada intervalo – aproveitando-se dos impostos de um segmento mais baixo, mas praticando preços de venda próximos ao de um segmento mais alto.
Em vez de mudanças nos tributos, a Receita sugeriu outras medidas, como igualar o crime de contrabando de cigarros ao de tráfico de drogas, suspender a CNH de motorista com carga apreendida e desapropriar imóveis usados para a fabricação ou acondicionamento dos cigarros clandestinos.
Fernanda Villares, que representou a Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, diz que a resistência da Receita a mudanças na política de tributação dos cigarros teria sido motivada por algum ressentimento. “A Receita Federal se ofendeu, porque entendia que o tema não poderia ser tratado sem sua opinião.”
Porém, a participação da Receita na discussão não era um capricho. O órgão é responsável tanto pela administração dos tributos federais quanto pelo combate ao contrabando.
O mesmo pode ser dito do Ministério da Saúde. Assim como a Receita Federal, a pasta não foi incluída na composição do GT na portaria que estabeleceu sua criação. Sua chegada ao grupo se deu após um alerta da própria Receita: “Quem nos falou sobre isso foi um representante da Receita Federal na Conicq que atuou no GT. Ele nos disse que achava um absurdo não haver ninguém da Saúde no Grupo”, diz Tânia Cavalcante, médica aposentada do Instituto Nacional do Câncer (Inca), e que na época era secretária-executiva da Conicq – a Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, que foi extinta por Bolsonaro em 2019, mas continuou funcionando informalmente.
Aí a Comissão contactou o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e ele solicitou que a pasta tivesse representação no GT. Foi assim que o Ministério da Saúde – por meio do Inca – apresentou suas considerações, num documento que Tânia ajudou a construir.
Assim como a apresentação da Receita, o texto do Inca ajudou a desbancar o mito de que reduzir impostos melhoraria alguma coisa. O Instituto também se opôs à ideia de que mudanças na tributação combateriam o contrabando: lembrou que países que diminuíram impostos sobre o tabaco com essa finalidade acabaram experimentando o crescimento do tabagismo, sem nenhum efeito sobre o contrabando de fato.
O texto ainda refuta a ideia de que os cigarros contrabandeados seriam mais prejudiciais à saúde do que os legais: “Qualidade não é um atributo que se aplica a nenhum tipo de cigarro, sejam os vendidos legalmente, sejam os vendidos ilegalmente. Todos são altamente letais, independente de sua origem.”
Além disso, o documento ressalta a importância de se usarem fontes oficiais para estimar o mercado ilegal de cigarros. Enquanto o ETCO alega que mais de metade do mercado de cigarros estaria nas mãos do contrabando, os dados oficiais apresentados pelo Inca dizem que, em 2018, os cigarros ilegais ocupavam 31,4% desse mercado.
O Ministério das Relações Exteriores também enviou contribuição ao GT, mas não trata sobre a questão tributária – limitando-se a abordar as relações entre Brasil e Paraguai no que diz respeito ao contrabando.
O fim da linha
A fonte que disse ter percebido uma mudança no clima do GT após a apresentação da Receita avalia que não houve nenhuma pressão por parte desse órgão ou do Ministério da Saúde para encerrar o assunto. “Ninguém bateu o pé, não houve uma grande briga. Mas houve as discussões, e os membros perceberam quais eram os dados mais aprofundados sobre o comércio ilícito de cigarros no Brasil. Diante disso, é aquela velha máxima: contra fatos não há argumentos.”
Ao mesmo tempo, a mera proposta de avaliar a redução de tributos para cigarros havia pegado muito mal fora do Ministério da Justiça. A reação de entidades ligadas à Saúde após a instituição do GT foi forte. Mais de 60 organizações nacionais e internacionais – entre elas, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) – publicaram uma carta aberta se posicionando contra qualquer proposta de redução dos tributos. A bancada do Psol protocolou um Requerimento de Informações pedindo explicações a Sergio Moro.
Fora que, como já apontamos, o Brasil faz parte da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, e assumiu, portanto, o compromisso de ter uma política tributária em consonância com as diretrizes desse tratado.
O fato é que, mesmo que no começo o Grupo de Trabalho parecesse querer comprar a ideia da mudança nos tributos, no fim das contas isso não aconteceu. No relatório final, publicado em agosto de 2019, o grupo concluiu não haver elementos suficientes que indicassem a eficácia da estratégia. A sugestão de criar cigarros “populares” também foi descartada.
O relatório assinado por Luciano Timm sugere outras medidas:
- o aumento da cooperação entre os órgãos governamentais responsáveis pela prevenção e repressão ao contrabando de cigarros;
- o endurecimento das penas aplicáveis a esse crime;
- o fortalecimento do diálogo com o Paraguai;
- e a recriação do Comitê para Implementação do Protocolo da Convenção Quadro para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos do Tabaco.
Fernanda Villares, do Ministério da Justiça, lamenta que não tenha havido “avanços a uma situação que origina comportamentos criminosos e que causa um problema de saúde pública”.
Com o encerramento do Grupo de Trabalho, o relatório foi enviado para os participantes da PF, do Inca e da Receita Federal. Em 30 de setembro, Luciano Timm comunicou a Sergio Moro que havia aberto um prazo de 30 dias para que os órgãos enviassem contribuições para dar continuidade ao trabalho do GT.
No mesmo ofício, Timm aponta que o CNCP estava em “contato permanente” com o Inca para recriar a Conicq. Depois disso, seria retomado o Comitê para implementação do Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco, conforme sugestão do Grupo de Trabalho. A previsão era retomar a Conicq até o fim daquele ano – mas isso só foi possível em janeiro de 2023, após a posse de Lula, quando foi revogado o decreto que extinguira a Comissão.
Pelos documentos fornecidos ao Joio, aparentemente o Ministério da Saúde e a Polícia Federal não enviaram as contribuições solicitadas por Timm. Já a Receita Federal respondeu, apenas reforçando seu posicionamento.
Linha do tempo
Participação de Sergio Moro em evento da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), então presidida por Luciano Timm. Houve também a participação do pesquisador Pery Shikida.
Apresentação Pery Shikida, Matheus Nicola e Mario Antonio Margarido em encontro da Associação Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos. O trio de pesquisadores defendia a eliminação dos preços mínimos de cigarros e a segmentação do mercado.
ETCO publica caderno especial no Correio Braziliense sobre tributação e desenvolvimento econômico. O texto diz que o “governo errou na mão ao seguir a tendência internacional e taxar, pesadamente, a indústria do tabaco, na tentativa de reduzir o consumo”.
Luciano Timm é nomeado secretário da Senacon
Luciano Timm assume a presidência do CNCP em reunião ordinária do Conselho. Na mesma reunião, aprovou-se sobre a criação de uma Comissão Especial de Cigarro.
Ministério da Justiça cria Grupo de Trabalho para avaliar a “conveniência e a oportunidade” de uma redução da tributação de cigarros fabricados no país: Portaria no 263/2019
Comissão Especial de Cigarros se torna Comissão Especial de Combate ao Contrabando
Pery Shikida, Matheus Nicola e Mario Antonio Margarido, que defendem mudanças na tributação dos cigarros, fazem apresentação ao CNCP.
O GT recebe contribuções de Philip Morris; BAT Brasil; JTI; ETCO; Ministério das Relações Exteriores; Receita Federal; Polícia Federal; Polícia Rodoviária Federal; e Ministério da Saúde
Fim do Grupo de Trabalho: relatório final conclui não haver elementos suficientes que indicassem a eficácia de mudar a tributação dos cigarros
Um tema que não morre
É verdade que o relatório final do GT não chega a jogar uma pá de cal no assunto. Afirma que “é importante não haver preconceitos a estudos e análises sobre o tema, sob qualquer prisma”, apontando que deve haver mais pesquisas para analisar as boas práticas para a eliminação do comércio ilícito.
No dia 21 de agosto de 2019 – dias após a publicação do relatório final do GT –, o ETCO já estava promovendo em Brasília, com o Poder360, o seminário “Combate ao mercado ilegal – muito além da repressão”. Esse “além da repressão” incluía, evidentemente, propostas de alterações nas regras de tributação.
Com a chegada do novo governo – e a promessa de uma reforma tributária como prioridade –, Vismona está atento. “As pessoas compram cigarros ilegais porque eles são mais baratos, e eles são mais baratos porque não pagam imposto. Então, qualquer proposta de reforma tributária que desonerar o consumo é interessante. A gente precisa avaliar e ver quais serão as consequências. Que setor vai pagar menos imposto e que setor vai pagar mais imposto? Toda empresa quer saber quanto vai pagar de tributo para ver se o negócio é viável ou não, se vai entregar de vez o mercado para o contrabando ou não. E em 2023 devemos intensificar esse debate”, prevê.
Em paralelo
Entre as discussões do CNCP presentes nas atas de reuniões obtidas pelo Joio, chama a atenção um assunto que correu em paralelo ao Grupo de Trabalho. Foi a criação de uma Comissão Especial do Cigarro – deliberada menos de um mês antes da criação do GT.
A decisão foi tomada na primeira reunião do Conselho tendo Luciano Timm na presidência, em fevereiro de 2019. Mas os trabalhos não tiveram relação com o GT, e suas discussões não envolveram a tributação. Em vez disso, eram propostas de combate ao contrabando que incluíam a criação de um sistema integrado de inteligência e o fortalecimento de medidas punitivas, por exemplo.
Também em reunião do CNCP, decidiu-se ampliar o escopo da comissão, que passou a se chamar Comissão Especial de Combate ao Contrabando. Como toda comissão especial, ela deveria ter um prazo máximo de atuação. Mas os membros do Conselho decidiram torná-la um espaço perene – em 2021, foi transformada em Núcleo de Acompanhamento do Contrabando.
Mas só em março daquele ano alguém apontou um problema: “O relator da comissão era Edson Vismona, representante da iniciativa privada. Eu levantei a questão: ‘Olha, contrabando e descaminho são assuntos notoriamente de interesse público, e o órgão que detém as informações e as principais prerrogativas de combate ao contrabando é a Receita Federal’”, lembra o auditor Alan Towersey. A partir desse momento, o órgão passou a conduzir os trabalhos do núcleo – primeiro, com o próprio Towersey na relatoria, e depois com o auditor Thiago Morello nesse papel.
O núcleo acompanha números relacionados ao contrabando em geral, como prisões em flagrante e apreensões, e apresenta seus relatórios e sugestões de encaminhamentos ao CNCP.